Justificações da Teoria Legal Libertária

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propriedade-privadaIntrodução

Neste trabalho, pretendo esclarecer os conceitos chaves envolvidos na teoria libertária e mostrar como podemos, partindo deles, concluir dedutivamente o arcabouço legal libertário.

Toda a teoria libertária do direito tem a seguinte missão: resolver os conflitos que se originam da nossa realidade de escassez. Aqui, conflito significa precisamente duas ou mais reivindicações antagônicas de posse de um mesmo bem escasso. Então, a única maneira de solucionar o nosso problema é desenvolver uma regra especificando qual pessoa é dona de – isto é, tem o direito de controlar – vários recursos escassos em determinada região ou jurisdição. Naturalmente, existe uma infinidade de maneiras pelas quais podemos fazer tais especificações. Vamos contudo, mostrar que uma – e apenas uma delas – pode ser justificada racionalmente, ou seja, apenas um conjunto específico de regras de delimitação de direitos de propriedade pode ser considerado justo no sentindo em que existe uma reivindicação especial à posse que se sobrepõe perante as outras como a mais nítida e a mais objetiva.

Propriedade de bens tangíveis

O leitor atento já deve ter percebido que o nosso problema surge com a questão da posse e termina com a questão da propriedade. De fato, a distinção é fundamental nesse texto pois, seu correto entendimento contém, em última análise, o germe de nossas respostas. Embora muitas vezes possessão e propriedade são considerados sinônimos, para nós, no presente artigo, adotaremos a seguinte distinção: Posse é estar sob o controle de um bem econômico, já a propriedade é definida como o direito exclusivo de controlar tal bem, i.e., a propriedade tem um caráter normativo de exclusão sendo então o direito legal de possuir e excluir as demais reivindicações de controle.

Consideremos a seguinte situação hipotética: uma pessoa B toma um bem pela força da pessoa A. Isso não pode por si só fazer de B um legítimo proprietário. Por quê? Porque se o fizesse, isso significaria que, outra pessoa, ou seja, C poderia levá-la a partir de B, e assim, se tornaria proprietária. Mas, isso apenas significa que não há possibilidade de tal coisa como propriedade; há apenas a posse. Essa hipótese caracteriza a lei do mais forte, jamais podendo ser usada para justificar uma posse, pois, tal regra apenas ampliaria conflitos ao invés de evitá-los. Mais ainda, isso contradiz o pressuposto de que propriedade e posse são diferentes. Dessa ideia muito simples vemos que toda a ideia de Locke da primeira utilização, o primeiro proprietário, segue. Com efeito, se tomar algum bem pela força de seu possessor anterior não é suficiente para fundamentar uma reivindicação de propriedade, em seguida, por reductium ad infinutum, torna-se óbvio que só o primeiro possuidor/usuário pode ter uma reivindicação de propriedade. Cada pessoa que tomá-lo a partir de um possuidor anterior é, portanto, um mero possuidor não-proprietário. O primeiro possuidor, i.e., a pessoa que arranca o recurso de seu estado sem dono, é o único possuidor a não retirá-lo de posse de uma outra pessoa; e é por isso que a primeira posse impregna o homesteader com o status único de proprietário.

Resumidamente, esse raciocínio ainda pode ser expressado de forma contrapositiva: Se o primeiro possuidor não tem a reivindicação legítima de propriedade do bem, então quem terá? Aquele que o tomar pela força? Ora, mas se a tomada de posse à força de um proprietário anterior dá o direito ao novo possuidor do objeto, então não há tal objeto como propriedade, mas apenas como mera posse. Além do mais, tal regra jamais será capaz de evitar conflitos, e sim, apenas de perpetuá-los.

Uma questão relevante e natural que emerge dessa discussão é a seguinte: qual a maneira de delimitarmos a propriedade do primeiro possuidor? Ou seja, que tipos de atos são suficientes para a apropriação, já que certamente uma mera e qualquer alteração de um bem previamente em estado natural não pode dar origem a um proprietário? A resposta a essa questão é dada a posteriori e estará embutida na ação do homesteader. O filósofo e economista Hans-Hermann Hoppe usa o termo fronteiramento para se referir à natureza do homesteading pois, de fato, o que ocorre no processo é o desenvolvimento de um elo objetivo entre o homesteader e o bem, que, por sua vez, irá estabelecer uma fronteira intersubjetivamente verificável. Assim, a natureza física de um determinado recurso escasso e a maneira pela qual os seres humanos usam esses recursos, irá determinar a natureza das ações necessárias para “controlar” ele e excluir outros de modo que diferentes tipos de recursos escassos são homesteaded (e controlados) de diferentes maneiras. Por exemplo, a terra é apropriada por fronteiramento e/ou transformação; outras coisas, como bens móveis, coisas que podem ser “encontradas, tomadas, e escondidas ou utilizadas exclusivamente”, por “encontrar e manter” o bem em questão.

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Amazônia: apropriada por decreto verbal

Finalmente, resta-nos considerar o caso de reivindicação de posse por vias indiretas, i.e., sob a ausência de algum elo objetivo, intersubjetivamente controlável, entre uma pessoa particular e um recurso escasso particular. Chamaremos esse caso, genericamente, de reivindicação (de posse) por decreto. É geralmente assim que os estados se “apropriaram” de terras hoje tida como suas propriedades – é o caso, por exemplo, do Tratado de Tordesilhas e do Tratado Antártico; a floresta amazônica também é tida como propriedade do “governo brasileiro” sem este ter tido nenhum elo objetivo com ela, configurando um típico caso de decreto verbal[1]. São tais apropriações justas? Obviamente que não, e o motivo é bastante simples: Decretos verbais, não tendo – por definição mesmo – vínculos objetivos com o recurso a ser apropriado, não podem servir como critério isento de conflitos. Ao contrário, pois uma vez que eles sirvam como regra para especificar direitos de propriedade, qualquer um poderá em qualquer momento decretar uma mesma propriedade como sua e, na ausência de um elo objetivo, conflitos se perpetuarão, pois a separação entre “meu e seu” não se baseia em declarações verbais, mas na ação propositada. A delimitação de propriedades baseia-se em algum determinado recurso escasso que foi transformado em uma expressão ou materialização da vontade própria do indivíduo — de modo que qualquer um possa ver e verificar, pois existem indicadores objetivos para tal. O termo propriedade privada não é muito correto exatamente por isso, já que, os direitos de propriedade são necessariamente públicos, e não privados, no sentido de que as fronteiras ou limites de propriedade devem ser publicamente visíveis, de modo que não proprietários podem evitar transgressão. Somente assim, a delitimitação de direitos será eficaz e a agressão poderá ser corretamente definida e identificada. Sem um elo objetivo, perdemos a noção de justiça, e as declarações verbais acabam implicando no vigor da lei do mais forte – como é o caso em que o estado reivindica uma propriedade sob domínio legítimo de um cidadão.

O caso de corpos

Nosso corpo é um bem escasso no mesmo sentido dos outros bens tangíveis discutidos acima. Assumindo que, em uma determinada jurisdição, mais de uma pessoa existe, as amplitudes de suas ações se sobrepõem, e que não há nenhuma harmonia e sincronização de interesses pré-estabelecidos entre essas pessoas, conflitos sobre o uso do próprio corpo seriam inevitáveis. Uma pessoa pode, por exemplo, querer usar seu corpo para ler um jornal, enquanto uma outra pessoa qualquer poderia reivindicá-lo para uma relação amorosa, assim, impedindo-a de ler o jornal e também reduzindo o tempo deixado para perseguir seus próprios objetivos por meio de seu corpo. Para que se evitem tais possíveis confrontos, regras de propriedade exclusiva sobre corpos devem ser formuladas.

Como já vimos, para recursos previamente sem dono, o elo objetivo é o primeiro uso e tem de ser assim pela própria natureza da situação. Contudo, uma pessoa não é de fato a “primeira usuária” de seu corpo da mesma maneira que uma pessoa é a primeira usuária de um objeto previamente sem dono que se torna sua posse. Não é como se o corpo estivesse lá, a esmo e sem uso, solitário, esperando que um ocupante se apropriasse dele. Outro ponto diferenciador é a questão de uso e de controle, em que, enquanto no caso de objetos é bastante clara, não o é para o caso de corpos. Tomemos o exemplo clássico de uma cadeira. Naturalmente, pode-se perfeitamente sentar-se em uma cadeira (usá-la) e não ser o dono da mesma. O que caracteriza o seu proprietário é ser o tomador de decisões últimas acerca do controle da cadeira. No caso de um corpo isso claramente não vale: se você faz uso de um corpo, então você é o tomador último de decisões sobre ele e reciprocamente. É inconcebível que uma pessoa não possua a si própria. O uso do corpo e sua propriedade (mesmo sendo logicamente distintos) têm a mesma extensão ou, em outras palavras: no caso de um corpo, “uso” e “propriedade” se sobrepõem. Contudo, ainda assim, podemos estabelecer uma regra universal para sua posse. Bastando, como no caso de objetos, identificar em retrospectiva aquele que cumpriu o elo objetivo com o corpo. Ou seja, a questão chave que nos guia é a mesma: quem tem a melhor reivindicação de posse de um determinado corpo?

Comecemos portanto pelo início de sua formação, o momento do nascimento da criança. Dado que os pais foram os produtores da criança, eles têm um elo objetivo ao corpo da criança, um elo que anula qualquer reivindicação por parte de estranhos. Ou seja: os pais têm mais direitos sobre a criança do que quaisquer estranhos, por causa de seu elo natural com a criança. E na medida em que a criança vai crescendo, ela simultaneamente vai desenvolvendo uma relação única entre ela e o “seu” corpo — seu controle direto e imediato sobre o corpo – e o fato que, pelo menos de alguma maneira, seu corpo a representa. Esse estágio, apesar de contínuo, deve ser intersubjetivamente apurável assim que a pessoa é capaz de expressar ou materializar suas vontades. Mais precisamente, Hans-Hermann Hoppe descreve que tal reivindicação se torna objetiva, “quando eu anuncio que agora irei levantar meu braço, virar minha cabeça, relaxar na minha cadeira (ou qualquer outra coisa) e essas notificações se tornam verídicas (são executadas), então isso mostra que o corpo que faz essas ações foi de fato apropriado pela minha vontade.” Mais ainda, “se, ao contrário, meus anúncios não mostrarem nenhuma relação sistemática com o comportamento efetivo do meu corpo, então a sentença “esse corpo é meu” teria de ser considerada uma declaração vazia e objetivamente infundada. É isso que faz o elo objetivo ser suficiente para dar àquela pessoa — e não a qualquer outro reivindicante — um melhor título de propriedade sobre seu corpo. Nem mesmo seus pais superariam esse pressuposto.”[2]

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Escravos em luta pela autopropriedade

Portanto, inicialmente, os pais, como um tipo de tutor temporário, têm a guarda da criança, pois como produtores da criança, têm um elo objetivo ao corpo da criança, um elo que anula qualquer reivindicação por parte de estranhos. Contudo, por ser um adulto em potencial, a criança tem o absoluto direito de não ser agredida, pois uma vez que um direito é algo inalienável e dado que um adulto certamente tem autopropriedade – i.e. direito absoluto sobre o próprio corpo -, ele na verdade sempre o teve, inclusive na condição de bebê. O elo objetivo dos pais com a criança pode, portanto, ser rompido caso eles violem os direitos dela, abusando de sua posição de zeladores temporários. Quando a criança se “apropriar” de seu corpo, estabelecendo o elo objetivo suficiente para estabelecer a auto-propriedade, a criança se torna um adulto, por assim dizer, e agora passa a ter uma melhor reivindicação sobre seu corpo em relação a seus pais.

Podemos também fornecer um argumento em favor da autopropriedade por reductium ad absurdum, considerando que as únicas soluções que nos restam, ao negá-la, são: (a) o corpo das pessoas pertencem a um seleto grupo de governantes (estatismo) e (b) todos os corpos pertencem a todos (comunismo universal). O primeiro caso é facilmente refutável, já que sob essa regra, duas classes categoricamente distintas de pessoas são constituídas – governo e demais pessoas – para as quais diferentes “leis” se aplicam. Assim sendo, tal regra deve ser descartada por não ser uma ética humana igualmente aplicável a todos os seres humanos. Para uma regra ser considerada uma lei — uma regra justa — é necessário que essa regra se aplique igual e universalmente a todos. O segundo caso, (b), passa no filtro da universalidade, mas não permite a sobrevivência humana. De fato, se todos os corpos fossem copropriedade de todos, então ninguém, em momento ou lugar algum, teria permissão de fazer qualquer coisa, a menos que, tenha obtido previamente o consentimento de todos os outros coproprietários; indo mais a fundo na lógica, como alguém poderia dar tal consentimento se ele não é o dono exclusivo de seu próprio corpo, o que inclui suas cordas vocais através das quais seu consentimento é expressado? Na verdade, ele iria precisar primeiro do consentimento dos outros para poder expressar o seu próprio, mas esses outros não podem dar seus consentimentos sem ter o dele primeiro, etc. Todos não poderiam sequer agir, sendo condenados à miséria perpétua.

Da justiça das normas libertárias

Nesse ponto, concluímos que as únicas regras justas para evitar conflitos de escassez são o homesteading e a autopropriedade, todas elas dentro da lógica do “o-primeiro-que-usa-é-o-primeiro-que-possui”. Mas serão essas regras justas? Aqui, para ser “justo” precisa atender aos seguintes requisitos: (i) a regra de delimitação não precisar de violência para ser efetivada e (ii) satisfazer a condição do movimento superior de Pareto – geram bem-estar sem prejudicar nenhuma outra pessoa, envolvida ou não na ação. O item (i) é claramente satisfeito, pois, está implícito na própria argumentação em prol dessas normas – onde negamos a lei do mais forte e regras não universais. A autopropriedade também passa claramente pelo item (ii), por um motivo simples: as preferências são sempre subjetivas e variam de pessoa a pessoa.

Em última análise, nenhuma imposição forçada a uma pessoa pode ser justificada em prol de seu bem, já que, suas preferências são objetivamente detectadas pelas suas ações voluntárias. O homesteading é um movimento superior de Pareto, em virtude da lógica da ação (e inação) do homem. Se ele usa seu trabalho para apropriar algum recurso natural, então ele necessariamente valoriza essa coisa. Portanto, ele deve ter obtido utilidade em sua apropriação. Ao mesmo tempo, a sua ação não faz com que ninguém fique em situação pior, pois, com a apropriação de recursos previamente sem dono, nada é tirado de outrem. Além disso, a inação das outras pessoas, que comprovadamente não se apropriaram de tais bens, mostra uma preferência de não usufruí-los. Assim, elas não perdem utilidade no processo.

As normas libertárias emergem portanto como únicas candidatas justas a resolver os conflitos humanos sob a nossa realidade de escassez. E uma vez tendo essas normas em mente, podemos consistentemente definir a agressão em termos de invasão de fronteiras de propriedade, onde os direitos de propriedade são entendidos para serem atribuídos sobre a base da autopropriedade no caso dos corpos; e no caso de outros bens, os direitos são entendidos como a base da possessão prévia ou homesteading e transferência contratual de um título. Com a noção de agressão, podemos então formular uma teoria de punição,[3] e assim, completar as bases para um sistema legal libertário. A importância deste reside na próprias bases civilizatórias da humanidade, uma vez que, o homem civilizado é justamente aquele que procura justificativas racionais para o uso de violência interpessoal. Como o teórico legal libertário, Stephan Kinsella, pontuou, “quando a necessidade inevitável em se engajar em violência surge – para defesa de sua vida ou propriedade – o homem civilizado procura justificativa. Naturalmente, já que essa procura por justificativas é feita por pessoas que são inclinadas à razão e à paz, o que elas procuram são regras que sejam justas, potencialmente aceitas por todos, fundadas na natureza das coisas e universalizáveis, e que permitam que o uso de recursos seja livre de conflitos. O conjunto de normas libertárias é o único candidato que satisfaz esses critérios. Portanto, se o homem civilizado é aquele que procura justificativa para o uso da violência, o libertário é aquele que é sério sobre esse empreendimento.”[4]

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Notas

[1] Para uma análise mais detalhada da floresta amazônica, veja esse texto do libertário brasileiro Fernando Chiocca.

[2] Tradução informal de Hans-Hermann Hoppe, Eigentum, Anarchie und Staat (Manuscriptum Verlag, 2005; originalmente publicado em 1985).

[3] Para um esboço inicial de uma teoria libertária da punição, recomendo a abordagem de estoppel de Stephan Kinsella.

[4] Citação tirada deste artigo, onde inclusive pode-se tirar mais informações, inclusive históricas, dos temas tratados aqui.

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