“A doença do capitalismo” – um vermelho-e-preto com Denis Russo Burgierman

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Tempo estimado de leitura: 8 minutos

gomorra_cenaDenis Russo Burgierman é um blogueiro de VEJA. Possui uma coluna que se chama Sustentável é pouco, atualizada semanalmente. Eu não o conhecia. Passei a conhecer por indicação de um leitor, que me pediu para comentar um texto dele intitulado A doença do capitalismo.

Aparentemente, Russo leu o livro Gomorra, do jornalista italiano Roberto Saviano, ficou empolgado com algumas informações nele contidas e delas tirou uma série de ideias precipitadas – não o fez por malícia, creio eu, mas por simples desconhecimento da teoria econômica.

Por que vale a pena comentar o texto dele? Porque Russo aborda um assunto importante e cada vez mais comentado pela imprensa, e incorre no mesmo erro cometido por aqueles que o analisam superficialmente.

É imprescindível que o leitor clique aqui e leia o texto por completo (não é grande) para melhor se contextualizar sobre o assunto, antes de passarmos à análise. Por motivos que ficarão claros ao final, vou comentar apenas da primeira parte do texto. Por isso a importância de lê-lo todo.

Leu? Então vamos lá. Ele vai de vermelho, eu vou de preto.

Tem algo profundamente errado no nosso modelo econômico. O problema não é o “capitalismo”, é uma doença do capitalismo: um pensamento financeiro criminosamente insustentável que se espalhou por toda a economia (inclusive em países comunistas). Precisamos erradicar essa doença se queremos ver a luz no fim do túnel. Neste post eu quero tentar explicar que doença é essa. Vou partir de um exemplo concreto para deixar essa discussão mais clara.

Vejamos.

O exemplo é do livro Gomorra, do jornalista italiano Roberto Saviano, transformado num filme com o mesmo nome. Saviano revela que as grandes grifes de moda italianas, para diminuir seus custos, tercerizaram os seus serviços de tecelagem. Para reduzir mais ainda os custos, eles criaram um sistema de concorrência. É assim: as grifes fazem o desenho das roupas e entregam para várias pequenas empresas de costura. Quem conseguir produzir mais em menos tempo ganha a concorrência e é pago. Quem perde a concorrência não ganha nada – trabalhou de graça e pode ficar com as roupas produzidas.

Até aqui, nada de mais nesse arranjo. Ele é totalmente voluntário e só participam dele as empresas de costura que se apresentarem para o serviço. Ao que consta, elas não são obrigadas a tal. Da mesma forma, a regra do jogo, ao que tudo indica, é pré-estabelecida: ganha aquela empresa de costura que for a mais rápida. Quem não for, não ganha. Ninguém é forçado a nada. E quem acha que o arranjo é injusto, não precisa participar dele.

Ademais, a última informação é interessante. As empresas perdedoras podem ficar com o material produzido – algo totalmente justo, dado que todo o capital e trabalho empregado foi delas (não sei, mas acho que as grifes não fornecem os tecidos para essas empresas de costura).

Sendo assim, não se pode reclamar que esse arranjo voluntário não seja bom para essas empresas: afinal, como elas agora estão livres para revender esses seus produtos, e estes inevitavelmente serão semelhantes ao produto final escolhido pelas grandes grifes, há aí uma boa garantia de rentabilidade.

Do ponto de vista estritamente financeiro, esse sistema é um grande sucesso. O incentivo da concorrência garante preços baixíssimos e uma produção muito veloz. Desde que o sistema foi implantado, os custos de produção baixaram e as margens de lucro cresceram. Ou seja, o sistema funciona.

E nem poderia ser diferente.

Mas ele tem um monte de consequências, das quais Saviano (que está jurado de morte pela Camorra, a máfia napolitana) fala em seu livro.

Vejamos quais e de quem realmente é a culpa.

Algumas dessas consequências afetam as próprias grifes. Exemplo: a pirataria cresce, gerando competição desleal para os produtos originais. É que as empresas que perdem a concorrência sobram com um monte de roupas. Óbvio que eles vão tentar reduzir o prejuízo vendendo o encalhe aos “comerciantes informais”. O resultado é que o mercado é inundado por roupas e acessórios piratas que custam várias vezes menos que as originais, mas têm um padrão de qualidade parecidíssimo, às vezes até superior (porque a concorrência seleciona apenas rapidez, fazendo com que produtores mais caprichosos saiam em desvantagem).

Ou seja, o mesmo mercado “selvagem” que garante baixos custos e altas margens de lucro para as grandes grifes é capaz de gerar uma competição desleal para essas mesmas grifes, que agora têm de concorrer com produtos com “um padrão de qualidade parecidíssimo, às vezes até superior”.

Nada como um mercado livre para corrigir seus próprios excessos – isso para quem acha que houve algum excesso até aqui.

Outras consequências afetam a sociedade inteira. As regras da concorrência são um incentivo para contratar imigrantes ilegais (que topam trabalhar dia e noite, inclusive no fim-de-semana, num regime que só pode ser descrito como de escravidão).

Russo dá a entender que imigrantes são como escravos que são amontoados em navios negreiros e levados a contragosto para trabalhos compulsórios. Falso. Um imigrante, por definição, sai de um lugar para ir a outro a procura de trabalho. Sua intenção sempre é melhorar de vida. Ele faz isso porque quer; porque a situação em seu país de origem não lhe é atraente. Se ele está disposto a “trabalhar dia e noite, inclusive no fim de semana”, é porque ele acha que assim ficará em situação melhor do que aquela em que se encontrava até então. A menos que Russo comprove que o imigrante ilegal está sendo obrigado a trabalhar para essas empresas de costura, sem a opção de sair do emprego quando quiser, tal escolha sempre será benéfica para o imigrante.

Diante desses escravos ilegais, profissionais italianos que prezam a qualidade (uma tradição do país) perdem seus empregos, o que desestrutura famílias.

Aqui, Russo incorre no já manjado truque de apelar para o sentimental para tentar tornar seu argumento mais emotivo. Afinal, quem será o desalmado que irá defender a desestruturação de famílias?

Mas as coisas são um pouco mais diferentes do que o senso comum nos ensina. Veja só: partindo do princípio de que essas informações são genuínas – isto é, que as empresas de costura que contratam imigrantes ilegais estão destruindo empregos dos profissionais de tradição, aqueles que até então faziam o serviço e cobravam um preço maior -, então isso significa que os serviços desses profissionais de tradição não mais estão em alta demanda pelo público. O público migrou para os produtos da concorrência, cujos bens – pelo menos de acordo com o público consumidor – estão sendo ofertados de maneira mais eficiente.

Se o público migrou para os produtos da concorrência, é porque ela está utilizando melhor seus fatores de produção – ou seja, ela está ofertando produtos com melhor custo-benefício para os consumidores. E contra isso, lamento dizer ao Russo, nada se pode fazer. Qual seria a solução proposta? Proibir o público de comprar o que ele quer e forçá-lo a comprar aquilo que ele deixou de querer? E por que fazer isso? Para garantir que a renda dos profissionais de tradição se mantenha inalterada? Não parece ser uma receita eficiente e nem duradoura. É como se quisessem proibir que o computador fosse inventado, pois isso levaria à extinção dos mecanógrafos (profissional que consertava máquinas de escrever). Aliás, não existem mais mecanógrafos. Devem estar com as famílias desestruturadas – pelo menos de acordo com Russo.

Sendo assim, a única opção que resta aos profissionais de tradição é se aprimorar. Alterar seus métodos de produção, cortar custos, vender um serviço mais barato, nem que isso signifique uma ligeira queda na qualidade do produto. No extremo, ele terá de se adaptar a outra profissão. Por que não? Isso, aliás, já é coisa corriqueira em vários setores da economia, que surgem e desaparecem da noite pro dia. Por que seria diferente na área de grifes?

Quanto ao argumento emotivo, ele pode ser invertido e, com isso, ganhar uma conotação ainda mais emotiva: se o profissional de tradição está decaindo, o imigrante pobre e até então infeliz está agora melhorando de vida, dado que as preferências do público migraram para os bens por ele produzidos. Logo, como pode alguém ser contra essa melhora no padrão de vida do infeliz?

Todo esse ambiente ilegal atrai gangsters armados que se dedicam a extorquir as empresas. O dinheiro dos produtos de grifes acaba então sendo usado para comprar armas para o crime organizado.

Permita-me contextualizar melhor a afirmação de Russo, que parece meio perdida. O que ele quis dizer é que os mafiosos da Camorra se aproveitam desse ambiente da capitalismo “desregulamentado” para extorquir essas empresas de costura e utilizar o dinheiro para comprar armas.

À primeira vista, parece uma conclusão irrefutável – afinal, trata-se de um fato, e não de uma opinião de Russo. A Camorra realmente faz tudo isso que foi dito. Parece que um ambiente de capitalismo desregulamentado estimula esse tipo de crime, não? Ou seja, o capitalismo desenfreado, a busca pelo lucro, tudo isso leva à lei do mais forte. Ou pelo menos é o que Russo deixa claro.

Porém, não sei se por desleixo ou por desatenção, Russo deixou escapar um detalhe importantíssimo que o próprio Roberto Saviano revela abundantemente em seu livro: a Camorra possui estreitos laços com várias figuras do estado na região em que opera. E isso explica muita coisa.

Por exemplo, se uma empresa de costura está sendo coagida por mafiosos, então ela teria de buscar proteção nos sistemas legais – polícia e tribunais, ambas instituições estatais. Porém, se essas instituições estão em conluio com a máfia local, então é óbvio que não resta alternativa para as empresas a não ser cooperar com os mafiosos. Portanto, o que acontece é que a Camorra pratica seus crimes em um ambiente altamente estatizado, e não em um ambiente de livre mercado. Um livre mercado requer respeito à propriedade privada, liberdade de empreendimento e de trocas, e plena autonomia contratual do indivíduo. E o que temos nessa região da Itália? Uma organização criminosa que, justamente por estar em conluio com as autoridades políticas locais, conseguiu garantir para si o monopólio da violência e construiu seu próprio sistema de tributação.

Ou seja, é o estado que está estimulando toda essa situação, e não um livre mercado. É o estado que está gerando um ambiente propício para que gangsteres armados possam confortavelmente se dedicar a extorquir as empresas e utilizar o dinheiro – pago pelas grandes grifes – para comprar armas para o crime organizado.

Se isso realmente fosse capitalismo, Denis Russo teria toda a razão em dizer que ele está doente. O problema é que estamos frente um evidente excesso de estatismo. Logo, Denis Russo faria bem em condenar os reais fomentadores do crime – os membros do estado.

Entendidas essas questões cruciais, todo o resto do texto de Russo perde o sentido, uma vez que ele está atacando uma coisa achando que é outra. (A parte final do seu texto é uma verdadeira maçaroca de achismos e ilações sobre o “pessoal de financeiro”, PIBs, bancos e bolsas, algo que não nos interessa aqui e que pouco tem a ver com a ideia central do texto).

Sim, ele está certo em condenar as grifes italianas que utilizam o serviço dessas empresas de costura dominadas pela máfia. Eu também acho moralmente condenável alguém utilizar as roupas de alguma grife cujo processo de produção envolve empresas controladas por quadrilhas de assassinos (por mais que, em última instância, inocentes imigrantes estejam melhorando de vida no processo).

Qualquer propaganda contra essas grifes e qualquer discriminação contra as pessoas que utilizem roupas dessas grifes são totalmente válidas. Mas é preciso ter honestidade intelectual: se é para apontar os culpados, que estes sejam claramente identificados. O que temos nesse arranjo não é um capitalismo de livre mercado, mas sim um conluio entre mafiosos, governos e grandes empresas inescrupulosas.

Aí já se ouve a gritaria: “Ah, mas e tudo o que você havia dito até então sobre as empresas de costura operarem sob liberdade total de contrato com as grandes grifes? E os profissionais de tradição? Devem se estrepar mesmo assim?”

Tudo o que foi dito sobre as empresas continua sendo válido. A relação entre as grandes grifes e as empresas de costura é de fato essencialmente livre. O problema todo está no fato de tais empresas serem extorquidas pela máfia local, que está em conluio com o estado. Também mantenho tudo o que disse sobre a questão dos imigrantes.

Já em relação aos profissionais de tradição, restaria apenas uma saída, que seria a moralmente correta: os consumidores dos produtos das grandes grife, por saberem do envolvimento da Camorra, deveriam exigir alguma atitude delas – por exemplo, que elas parassem de lidar com as empresas de costura controladas pela Camorra até que algo fosse feito (sendo que os imigrantes é que se estrepariam nesse processo). Isso inevitavelmente voltaria a produção para os profissionais de tradição.

Porém, se os consumidores querem que tudo continue como está, se não houver boicotes e discriminação contra quem utiliza tais produtos, e se o estado continuar em conluio com a Camorra, então realmente nada pode ser feito. (O objetivo principal, obviamente, deveria ser o de eliminar a Camorra. Mas isso é algo em que aparentemente o estado local não está interessado.)

A situação continuará totalmente imoral. Mas vale repetir: quem está estimulando toda essa situação é o estado, que concedeu o monopólio da violência à Camorra. Isso não é capitalismo de livre mercado.

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