A Economia do Intervencionismo

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9. Alienação: Marx e Hayek

Dentre os inúmeros conceitos marxistas que ainda fazem parte da forma de pensar da maioria das pessoas no presente, o conceito de alienação do trabalhador tem um papel de destaque, como atesta o poder da imagem do personagem de Chaplin, girando como peça integrante das engrenagens de uma fábrica. A despeito da forte associação da palavra “alienação” com os ideais socialistas, o que explica a sua rejeição por autores liberais, existe na obra destes uma concepção rival sobre o termo, cuja discussão é fundamental para a filosofia política liberal. Neste texto trataremos desse conceito liberal de alienação.Em Marx, a alienação se manifestaria de forma mais intensa com a divisão do trabalho (especialização) existente na situação que esse autor considera ser o “modo capitalista de produção”. Nesse ambiente, seria imposto ao trabalhador um conjunto de tarefas específicas que prejudica o seu desenvolvimento como indivíduo, reduz sua capacidade de enxergar os diferentes aspectos do processo produtivo em questão e o sujeita a exploração por parte dos detentores do capital. Sob a fragmentação do trabalho, o produto se transforma em um “poder objetivo sobre nós que ultrapassa nosso controle, atravessa as nossas expectativas e anula nossos cálculos”[1]. A racionalização da atividade produtiva sob o socialismo, pelo contrário, envolveria o controle consciente, não alienado, do processo produtivo, viabilizando o sonho marxista do trabalhador que ordenha vacas de manhã e realiza crítica literária à noite.

Como boa parte dos conceitos marxistas, sobretudo aqueles originários do hegelianismo, a ideia de alienação não é muito bem definida, de modo que qualquer crítica poderia ser dispensada com o argumento de que o “verdadeiro” sentido do conceito não foi entendido. De qualquer modo, os ataques socialistas ao ideal de economia de mercado que tinham como base o conceito de alienação foram repelidos de forma consistente por vários autores liberais ao longo da história. Em essência, esses autores mostraram que o aprofundamento da divisão do trabalho é condição necessária para o aumento da capacidade produtiva de uma sociedade, de modo que o preço que teríamos que pagar pela eliminação da alienação seria a volta à sociedade tribal, na qual apenas uma fração minúscula da população atual teria condições de sobreviver.

Como mostrou Hayek, isso ocorre porque a especialização, necessária para manter ou aumentar a produtividade da economia, implica em progressiva complexidade da tarefa de coordenação das atividades dos diversos agentes econômicos, complexidade essa que supera a capacidade cognitiva dos seres humanos, caso esses queiram compreender os diferentes aspectos do funcionamento da atividade econômica. A única maneira conhecida de expandir essa complexidade é contornar a limitação do conhecimento através de sistemas descentralizados de coordenação, como aquele fornecido pelo sistema de preços de mercado.

Adam Smith, antes de Marx, já contrastava, na Riqueza das Nações, a ação descentralizada, guiada pelo sistema de preços (a mão invisível) com a atuação do “homem de sistema”, que pensa que pode comandar os indivíduos do mesmo modo que o enxadrista manipula as peças de um tabuleiro. Smith chama a atenção para o fato de que este não imagina que as peças do tabuleiro humano possam ter seus próprios princípios de funcionamento, diferentes daqueles imaginados pelo jogador. O autor aponta assim para o caráter eminentemente totalitário do socialismo: diante da ignorância a respeito dos dados do problema, ou o plano é abandonado ou as peças são forçadas a se comportar segundo a concepção prévia do planejador, com resultados catastróficos.

Não basta afirmar que Marx negava o estado e consequentemente o planejamento central: como veremos na segunda parte deste volume, o problema alocativo, em toda sua complexidade, também deve ser resolvido de alguma forma no socialismo. Um século e meio depois de Smith, Mises[2] solicita então dos marxistas uma explicação sobre a maneira como os recursos escassos seriam alocados nesse sistema, sem o guia fornecido pelo sistema de preços de mercado. Abolida a propriedade privada dos bens de capital, o socialismo não teria como resolver tal problema, de modo que teríamos o caos, não a racionalização da produção prometida por Marx.

Esse desafio foi refinado por Hayek[3], que formula o problema explicitamente em termos da limitação do conhecimento de cada agente a respeito de todas as variáveis que devem ser levadas em conta para que a coordenação dos esforços individuais seja levada a cabo. Na ausência de alguma entidade onisciente que conheça a maneira como as vontades humanas, as tecnologias e a disponibilidade dos recursos mudam continuamente, é necessário o uso de algum mecanismo de correção dos erros inerentes aos planos de ação informados pelo conhecimento localizado e disperso dos agentes.

Hayek nota que em diversas áreas além da economia o desenvolvimento de sistemas complexos não avança conforme tenhamos conhecimento consciente a respeito dos seus detalhes, como requer a condenação marxista à alienação. Pelo contrário, essa complexidade crescente depende de mecanismos descentralizados de correção de erros, que contornam as limitações do conhecimento dos indivíduos.

Nesse sentido, Hayek cita com aprovação a observação de Whitehead de que “a civilização avança através do aumento do número de operações importantes que podemos realizar sem pensar nelas.[4]“. Em outros termos, o progresso depende do aprofundamento da alienação no sentido marxista. O mesmo resultado pode ser encontrado na obra do filósofo Gilbert Ryle[5], que critica o racionalismo cartesiano que requer a fundamentação explícita de todo conhecimento, em favor de uma concepção de mente que leva em conta a importância do conhecimento tácito, não articulado, como aquele necessário para se aprender alguma habilidade, como nadar ou tocar um instrumento musical: não dá para concentrar a atenção no aspecto artístico de uma obra se antes o aspecto técnico do dedilhado não se tornar automático, ou “alienado”.

Bartley[6], por fim, generaliza o insight hayekiano, unindo-o com a filosofia popperiana. Para esse autor, a alienação é inevitável, pois a) se o conhecimento tiver consequências imprevisíveis, como ensina Popper, e b) a ação humana baseada nesse conhecimento tiver consequências não intencionais, como ensina Hayek, nunca poderemos antecipar completamente as consequências de nossos pensamentos ou ações e, portanto controlar nosso destino. Devido ao seu caráter insondável, o conhecimento e a ação necessariamente “fogem ao nosso controle e anulam nossas expectativas”. O conhecimento científico, bem como o conhecimento prático dos agentes econômicos, progride por meio de mecanismos descentralizados de variação e seleção de erros.

A tese a respeito da progressiva alienação humana conforme o grau de complexidade da economia aumenta, além de servir como base para a crítica ao conceito marxista de alienação, sugere também um novo sentido, liberal, para o termo.

A nossa tese pode ser enunciada do seguinte modo: a maior complexidade que acompanha o crescimento econômico – o grau maior de divisão do trabalho, o uso da moeda e a expansão e sofisticação dos mercados – progressivamente aliena parcela significativa da população não sobre os detalhes da atividade econômica, mas sim sobre o que diz respeito ao entendimento dos princípios de funcionamento dos mercados. Vejamos alguns exemplos que corroboram essa tese.

Condillac[7], em seu Comércio e Governo, publicado no mesmo ano da Riqueza das Nações de Smith, se queixa de que a compreensão do fenômeno do valor e a apreciação da importância das trocas são prejudicadas pela introdução da própria moeda que facilita essas mesmas trocas. Em uma sociedade limitada ao escambo, é evidente que cada parte de uma transação abdica de algo que vale pouco para si em troca de algo que vale mais, de modo que ambas ganham com a troca. Essa compreensão, contudo, tende a ser obscurecida pelo uso da moeda, já que a expressão do valor dos bens em termos monetários induz as pessoas a pensar que as trocas envolvem valores idênticos. Esse erro, cometido por Aristóteles e popularizado por Marx[8], está na base da má compreensão sobre os ganhos de bem-estar derivados do comércio.

A introdução da moeda, além disso, possibilita o uso da cortina de fumaça que a macroeconomia utiliza para bloquear a compreensão sobre os fenômenos econômicos fundamentais. A crítica àquilo que ficou conhecido como “lei de Say”, ao dissociar o poder de compra da capacidade produtiva, por meio da possibilidade de entesouramento do dinheiro, permite que a escassez de recursos passe despercebida, nutrindo a ilusão de curto prazo de que certas ações não teriam custos de oportunidade. Desse modo, macroeconomistas, políticos e jornalistas econômicos podem alegremente se dedicar à arte de criticar preços, em particular juros e taxa de câmbio, sem que se discutam os fundamentos que fazem com que esses preços tenham os valores criticados[9].

A divisão do trabalho, por seu turno, limita significativamente a compreensão das pessoas sobre os princípios de funcionamento dos mercados, como mostra a obra de Bastiat. Esse autor mostra como o fenômeno da alienação no sentido liberal do termo surge da tendência de analisar o impacto de certas políticas governamentais apenas em alguns setores da economia, sem que suas consequências sejam traçadas em todo o sistema econômico. Concretamente, defende-se uma intervenção para estimular um setor sem levar em conta o custo de oportunidade relativo aos setores desestimulados pela transferência de recursos necessária para financiar o estímulo. Esse erro gera uma série de falácias, como a crença de que guerras, desastres naturais, gastos públicos e subsídios estimulam a economia ou de que progresso técnico causa aumentos na taxa de desemprego.

A crítica de Bastiat a essas falácias emprega o recurso tão desprezado por Marx: o gedankenexperiment da economia isolada de Robson Crusoé. Na ilha desse personagem, é impossível dissociar fins e meios: um progresso na técnica pesqueira melhora a situação de Robson e ele emprega o tempo em outra atividade. Em uma sociedade com avançada divisão do trabalho, pelo contrário, é muito fácil afirmar a última falácia mencionada acima, devido à ignorância do mecanismo indireto de coordenação: o progresso técnico barateia o produto, liberando recursos para a fabricação de outros bens, cuja demanda é originária da renda antes gasta com a produção mais custosa do bem original.

Quanto mais avançada a sociedade, quanto mais aprofundada for a divisão do trabalho, quanto mais sofisticados forem os mercados envolvidos, mais provável que essas relações sejam ignoradas. Afinal, se o sistema de preços permite a interação sem que ninguém conheça os detalhes que deveriam ser notados conscientemente no caso de planejamento central, como argumenta Hayek, o uso do mecanismo de preços também dificulta a percepção por parte dos agentes a respeito do ganho concreto obtido pelo uso de tal mecanismo.

Da mesma forma, como nota Mises, condena-se a atividade especulativa nos mercados financeiros sem que se percebam as funções desempenhadas por esses mercados ou mesmo que se note que toda ação econômica é especulativa por natureza, devido à incerteza implicada por toda ação humana. Essas ideias levaram Hayek a investigar a fundo as razões da mentalidade antimercado. Essa mentalidade, para esse autor, pode ser atribuída ao caráter disfuncional, na sociedade moderna, das regras de conduta social que evoluíram durante o passado tribal da humanidade. A sociedade avançada, devido à complexidade das inter-relações pessoais nos mercados, requer regras abstratas de conduta para lidar com a limitação do conhecimento. Essas regras, por sua vez, entram em choque com os valores tribais que demandam que toda relação seja semelhante às relações pessoais praticadas no contexto familiar. Explicam-se assim fenômenos como condenação do lucro e o desprezo pela atividade comercial: o lucro é associado à ganância e não ao barateamento do custo de vida derivado da atividade de arbitragem. A atividade comercial, por sua vez, é associada à trapaça, um ganho à custa dos demais, não algo que gera valor em si.

Esse caráter disfuncional da moral tribal se manifesta explicitamente no desconforto suscitado pela vida civilizada, assumindo as formas de saudosismo por uma vida simples do passado, queixas relativas à alienação do trabalho ou ainda se manifesta nas diversas formas de romantismo rousseauniano[10].

A progressiva alienação gerada pela civilização se manifesta de muitos modos. Com efeito, apenas um residente de uma grande metrópole, cercado pelas facilidades proporcionadas pela liberdade econômica relativa, é capaz de se alienar (no sentido liberal) em grau elevado a respeito do funcionamento dos mercados ou mesmo sobre a natureza. Ao contrário do campo, onde rotineiramente torcem-se os pescoços das galinhas para se preparar refeições, apenas na cidade a alienação resultante da vida urbana é capaz de gerar uma doutrina como o vegetarianismo baseado no direito dos animais ou a crença infantil na harmonia na natureza, quando a única regra que lá impera afirma claramente: “devorai-vos uns aos outros!”

Do mesmo modo, apenas um funcionário de uma grande firma, fruto do progresso trazido pelos mercados, consegue manter-se completamente ignorante sobre o funcionamento dos mercados. Como notou Hayek[11], a crescente burocratização nas empresas e o isolamento da maioria desses funcionários dos mecanismos pelos quais as firmas adaptam suas atividades às condições cambiantes dos mercados fazem com que tais funcionários sejam mais alienados do que os pequenos comerciantes, mais familiarizados com o funcionamento do sistema de preços. Longe da atividade competitiva, demandam na esfera política controles centrais como aqueles existentes nas firmas que trabalham. Schumpeter[12], de maneira semelhante, resvala no conceito liberal de alienação quando expõe sua controversa tese de que o socialismo surgiria não dos fracassos do capitalismo, mas justamente de seu sucesso, devido à progressiva burocratização que substituiria a atividade empresarial.

Admitida a tese da progressiva alienação no sentido liberal, a única revolução que poderia se contrapor a esse fenômeno é de natureza educacional. Da mesma forma que os habitantes das cidades grandes teriam muito a ganhar se alguma vez na vida fossem caçar sua própria comida, faria bem ao intervencionista e ao socialista algumas visitas a sociedades menos livres do que aquelas que vivem, com o intuito de mitigar os efeitos da alienação a respeito das regras de conduta que viabilizam as sociedades livres.

 



[1] MARX, K. The German Ideology. Part IA: Idealism and Materialism. Texto disponível na internet. <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1845/german-ideology/ch01a.htm> Acesso em 16/04/2012>

[2] Mises (1935 [1920]).

[3] Hayek (1945).

[4] Whitehead (1911).

[5]  Ryle (1984).

[6] Bartley (1990) e Bartley e Radnitzky (1987).

[7] Condillac (1871).

[8] Utilizando sua errônea teoria do valor, Marx é da opinião de que Condillac teria confundido valor de uso com valor de troca. A teoria moderna, contudo, ao avaliar a utilidade na margem, dissolve essa distinção e dá razão ao autor francês.

[9] Veja o texto intitulado “Os preços não têm culpa”.

[10] Hayek (1988), apêndice D: “Alienation, Dropouts and the Claims of Parasites”.

[11] Hayek (1982), vol. 2, p. 134-5.

[12] Schumpeter (1961).

 

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