A Economia do Intervencionismo

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15. Espantalhus œconomicus

Os detratores da Economia a apelidaram de “ciência lúgubre”, sem imaginar que tal alcunha seria aceita pelos economistas. Afinal, ela funciona de fato como um estraga prazeres: o seu estudo permite desmascarar as falhas contidas nas promessas demagógicas dos políticos de criar riqueza a partir do nada. Uma de suas melhores definições a vê como a ciência que estuda as consequências não intencionais da ação humana. Em particular, mostra como um conjunto de políticas bem intencionadas (populares em todos os tempos e lugares) gera resultados opostos do almejado, em geral por desconsiderar o fenômeno da escassez (ignorando os custos de oportunidade das ações propostas) ou ainda por não levar em conta como os agentes reagem a incentivos. A aplicação da teoria econômica à história de fato revela incontáveis vezes como certos grupos (como os pobres, os trabalhadores, os consumidores ou ainda os empreendedores) foram prejudicados por medidas tomadas em seu nome, resultando em ganhos para grandes firmas estabelecidas e grupos de interesse organizados, que enriqueceram à custa da maioria dos pobres, trabalhadores, consumidores e firmas.Se políticas bem intencionadas podem dar errado, a visão de mundo simplista e intolerante que divide as posições políticas entre “contra” ou “a favor” dos interesses dos trabalhadores (ou de qualquer outra causa) não se sustenta, dando lugar a visão mais complexa e liberal que vê as diferentes opiniões como crenças sinceras, porém distintas, a respeito de qual seria o meio mais adequado para melhorar o bem estar de todos. O reconhecimento disso, contudo, frustra as certezas que alimentam a paixão ideológica. Essa é a explicação básica da antipatia que a Economia desperta entre os intelectuais em geral.

Boa parte desses intelectuais, em vez de se dedicar à árdua tarefa de se inteirar dos debates, preferem em vez disso uma saída mais fácil, acreditando na irrelevância das teorias econômicas. A forma mais eficaz para se chegar a essa conclusão tem sido o apelo à figura do Homo oeconomicus. O argumento em geral assume a seguinte forma:

·      premissa 1: a teoria econômica supõe que a humanidade seja composta por indivíduos egoístas, pautados apenas pela busca de prazeres mundanos e acúmulo de riqueza material;

·      premissa 2: a premissa 1 só seria válida no “capitalismo”;

·      conclusão: os resultados da teoria não se aplicam a outras épocas ou formas de organização social.

Criado o espantalho, fica fácil atacá-lo e segue-se naturalmente disso que não vale a pena estudar tal disciplina. No entanto, cada aspecto do argumento é falho. No capítulo anterior, partindo da definição do problema alocativo enfrentado por toda sociedade, criticamos a conclusão do argumento – a ilusão historicista de que a Economia só trata dos fenômenos referentes às “sociedades comerciais”. No presente, atacaremos o mito do Homo economicus, tal como exposto na primeira premissa. No próximo, abordaremos a busca por um novo homem contida na segunda premissa. No restante deste texto, além de argumentar que a ideia de Homo economicus não passa de uma caricatura de um pressuposto postulado pela economia clássica (a tradição que se inicia com A. Smith e vai até J. S. Mill), mostraremos que a teoria moderna dispensa totalmente o conceito.

Se um pesquisador for buscar a origem do Homo economicus na literatura, ficará bastante decepcionado pelo fracasso da empreitada. O termo raramente é utilizado por algum economista[1]. Isso de fato é sintoma de que tal conceito é ferramenta retórica empregada pelos seus detratores. Embora a contraposição entre a mesquinhez e o egoísmo associada à atividade comercial e os valores mais elevados atribuídos a classes mais nobres seja recorrente ao longo da história[2], a crença de que a Economia supõe que as pessoas sejam egoístas surge inicialmente na Inglaterra do século XIX, nas obras de alguns intelectuais vitorianos, como Charles Dickens, John Ruskin e Thomas Carlyle. Este último, aliás, cria o epíteto “ciência lúgubre” em um texto[3] no qual ataca os defensores do livre-mercado e abolicionistas, que criticavam os privilégios tarifários e de manutenção da escravidão usufruídos pelos produtores de açúcar das colônias britânicas. Em uma típica ilustração do tipo de política que resulta da “moralidade superior” que desdenha as “vis relações mercantis”, o autor acredita que os negros precisariam não de liberdade, mas de proteção paternalista na forma de servidão rural.

É de Charles Dickens, porém, a personificação mais conhecida do Homo economicus, na forma da figura egoísta e avarenta do tio Scrooge de Um Conto de Natal. Recontada na forma de desenhos animados, filmes e peças teatrais escolares no final do ano, a história ensina às crianças do mundo todo a diferenciar a moral solidária do egoísmo que impera entre os homens de negócio. O personagem Tio Patinhas (Uncle Scrooge, no original inglês), mergulhando em sua pilha de dinheiro, é o espécime mais representativo do Homo economicus.

Quando os detratores da Economia saem da ficção e procuram por um fóssil da espécie na literatura econômica, a área de escavação preferida é a obra de John Stuart Mill. Mas, como mostra Machlup[4], o que se obtém no lugar é um esqueleto falsificado de Espantalhus economicus. Esses autores encontram em Mill a crença que a única motivação humana seria econômica e essa seria ainda identificada com satisfação de desejos materiais ou de ganho pecuniário. Encontram-se alusões à defesa do egoísmo e hedonismo – a teoria postularia “máquinas de prazer”.

Se lermos o autor[5], contudo, em vez de uma descrição realista de como é o homem em sua totalidade, encontramos explicitamente a formulação de um modelo teórico, que, como tal, adota a simplificação analítica de isolar uma motivação econômica entre tantas outras motivações humanas, sem negar a essas últimas, existência ou importância. A motivação econômica, por seu turno, é caracterizada pelo autor em termos da busca por riqueza material. De posse de um pressuposto comportamental simplificado, que pondera benefícios e sacrifícios de cada ação, o modelo pode ser utilizado para explicar o modo como as pessoas reagem a mudanças na estrutura de incentivos causadas pelas normas que regulam a atividade econômica, a fim de avaliar se tais mudanças são desejáveis ou não em termos de maior ou menor prosperidade resultante disso. Isso permite avaliarmos as políticas em termos de sua eficácia (se são meios adequados para atingir os fins desejados), de modo que a discussão não fica circunscrita apenas à esfera moral, ou, mais apropriadamente para este caso, moralismo barato. Mas, como indicamos no início deste texto, é difícil para certas mentes não liberais conceber a política como um embate de ideias e não entre o bem e o mal.

Embora vítima de distorções grosseiras, a formulação de Mill apresenta de fato uma limitação importante, que de certa forma confere um fundo de verdade à caricatura do Homo economicus. Se a Economia tratasse de fato apenas do aspecto de enriquecimento das pessoas, a relevância da disciplina seria realmente limitada. Contudo, com o advento da nova teoria econômica a partir da revolução marginalista em 1871, o postulado comportamental milliano pôde ser totalmente abandonado.

Se tomarmos a definição moderna de Economia, formulada por Lionel Robbins – a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios escassos que têm usos alternativos[6] – percebemos que a natureza dos propósitos perseguidos pelos indivíduos é um dado externo, irrelevante para o problema. Sendo assim, Robbins não deixa de atacar no mesmo texto o que ele denomina do mito doHomo economicus. Não importa se um agente é egoísta ou altruísta, se movido por nobres ideais abstratos ou pelos mais básicos impulsos fisiológicos, enquanto os meios necessários para obter esses fins forem insuficientes, o agente terá que fazer escolhas que envolvem custos e benefícios e a teoria continua relevante.

Como nota Kirzner[7], a Economia deixa de ser uma disciplina preocupada apenas com certo tipo de atividade, como na definição de Mill, tornando-se explicitamente uma disciplina preocupada com certo aspecto de qualquer tipo de atividade. Se houver pessoas ou grupos com propósitos e meios insuficientes para alcançá-los, o problema possui um aspecto econômico. Desse modo, um músico que decide se deve estudar mais escalas ou se dedicar ao estudo de uma peça, o monge que considera empregar a próxima hora de seu tempo ao cultivo de hortaliças em vez de rezar mais um rosário, o militar que aloca uma divisão de infantaria em numa frente de batalha, desguarnecendo outra, o empresário que decide empregar mais recursos na aquisição de certo equipamento ou na contratação de mais funcionários ou o gerente de uma associação de caridade que decide se investe mais em publicidade ou em reforma de suas instalações, todos eles, se deparam com problemas que contêm aspecto econômico. Apesar disso, quase nenhuma dessas pessoas se encaixa com facilidade no papel de Homo economicus.

Tendo em vista esse argumento, a extinção do Homo economicus ocorreu a mais de 100 anos. Porém, como sua principal função é distorcer, fornecendo uma desculpa fácil para desconsiderar as teorias econômicas, o conceito sobrevive como Espantalhus economicus até hoje. Alguns, ainda acreditando que a teoria pressupõe uma população formada por tios Patinhas, usam o conceito de forma intocada, contrastando seu espantalho predileto com conceitos como Homo sociologicus, Homo ethicus ou algum outro ser tirado de uma interminável lista de opções. Outros, mais sofisticados, preservam o termo, mas evoluem a criatura de modo a incorporar pressupostos sobre a racionalidade do agente. A análise dessa mudança no significado do termo, porém, é assunto para outra ocasião.

O importante é notar, como conclusão, que embora a teoria econômica não diga nada sobre os propósitos dos agentes, ela diz muita coisa sobre a eficácia dos meios. A discussão mais importante então deve dissociar a dicotomia egoísmo/altruísmo da dicotomia individualismo/coletivismo[8] e concentrar a análise nessa última.

 



[1] Para uma tentativa fracassada de encontrar a origem da expressão, ver Persky (1995).

[2] Hayek (1988).

[3] Carlyle (1849): “..mas uma [ciência] pesarosa, que vê o segredo do universo na oferta e demanda, … Não é uma ciência alegre, eu diria, …, não, uma triste, desolada, abjeta e aflitiva; que poderíamos chamar, …, a ciência lúgubre.”.[4] Machlup  reúne uma amostra de críticas ao Homo economicus , baseadas na distorção das ideias de Mill. Ver Machlup (1972).

[5] Mill (1874).

[6] Robbins (1932), pg. 15.

[7] Kirzner (1975)

[8] Popper (1998).

 

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