A Economia do Intervencionismo

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17. Arremesso de Anões

Em algumas localidades o arremesso de anões (dwarf tossing) é proibido. Embora nessa “modalidade esportiva” os anões utilizem capacetes e outros equipamentos de segurança e aterrissem em plataformas acolchoadas, a proibição invoca a preservação da dignidade humana, a despeito do protesto de um anão francês, que achava que dignidade mesmo estaria relacionada à manutenção de seu emprego perdido.Com frequência nos espantamos com a popularidade das regras que proíbem trocas voluntárias, desde as atividades mais exóticas, como as proibições ao arremesso de anão e ao uso de carne de cavalo para consumo humano, até coisas mais fundamentais, como as restrições ao comércio internacional e a condenação moral da cobrança de juros, passando pela rejeição à venda de ingressos por cambistas[1].

Tudo isso sem dúvida se relaciona com a ideologia de nosso tempo. As artes e o sistema educacional moderno nos bombardeiam, da pré-escola à pós-graduação, com valores coletivistas, gerando na arena política uma pressão constante pela redução do espaço da liberdade individual, a ponto de que nas eleições brasileiras temos com frequência apenas candidatos de esquerda, inimigos daquilo que denominam “capitalismo”. Nesse ambiente, dois fenômenos chamam a atenção pela sua persistência: (a) apesar de universalmente odiados, os mercados continuam existindo e (b) apesar do fracasso das alternativas, os instintos contrários à liberdade econômica permanecem poderosos.

O primeiro desses fenômenos é mais fácil de explicar: apesar da falta de aliados políticos (existe algum candidato liberal para vereador ou prefeito em sua cidade?), a liberdade tem um aliado poderoso – o mundo real. Como nos mostrou Ludwig von Mises, tanto o socialismo quanto o intervencionismo não são alternativas viáveis aos mercados. Um socialismo que funcione é estritamente impossível, pois na ausência de um sistema de preços de mercado não há como alocar recursos de forma econômica. O intervencionismo, por sua vez, é instável, já que as intervenções desencadeiam um processo de acúmulo de erros que leva em última análise a crises econômicas que requerem reformas liberalizantes, contra a vontade dos próprios governos que são obrigados a efetuar essas reformas. Por isso, um político intervencionista só é bem sucedido na medida em que consegue empurrar as consequências indesejáveis de suas decisões para mandatos seguintes, exercidos por políticos de partidos rivais, embaralhando causas e efeitos das políticas econômicas. Pelo mesmo motivo, os partidos socialistas, conforme conquistam o poder no mundo real, estão condenados eternamente a adquirir o rótulo de “neoliberais”, esse espantalho inexistente, fruto da própria desonestidade intelectual. Ambos só terão sucesso em erradicar os mercados se junto com estes eliminarem a própria civilização. Assim, a liberdade econômica tem condições de sobreviver, mesmo sem defensores.

O segundo fenômeno é mais complexo. A tenacidade da mentalidade antimercado não pode ser reduzida apenas a fatores ideológicos próprios à cultura moderna. Em toda sociedade que ultrapassou o estágio tribal, em qualquer época, nos deparamos com as mesmas falácias econômicas que levam ao protecionismo, controles de preços, defesas de monopólios, condenação do comércio e lucro. Essa tenacidade deve levar o pesquisador liberal a buscar a origem desses instintos na própria natureza humana. Afinal, os liberais, em especial os economistas, sempre ridicularizaram os cientistas sociais que viam o ser humano como umatabula rasa, modelável pelo ambiente social. Como discutimos no último capítulo, basta uma pequena dose de nature, ao lado do nurture, para que os esquemas utópicos desses cientistas sociais caiam por terra. As acusações fantasiosas de darwinismo social dirigidas contra os biólogos não foram capazes de acobertar o fato de que esse modelo básico das ciências sociais foi refutado pela biologia evolucionária. Os pesquisadores liberais, por seu turno, devem evitar o mesmo erro e honrar sua tradição smithiana de considerar o ser humano com suas propensões naturais, ao lado dos fatores culturais.

Na Economia moderna, Hayek foi o principal autor a efetuar esse tipo de análise, em sua teoria da evolução das instituições[2]. Para Hayek, o sistema de normas que torna possível o desenvolvimento de ordens econômicas complexas (com extensa divisão do trabalho e produtividade alta, necessária para sustentar civilizações com milhões de pessoas) foi fruto de um processo de evolução cultural, no qual os agrupamentos humanos que adotaram regras compatíveis com o desenvolvimento econômico, como aquelas relativas à propriedade privada, superaram os demais, sem que no entanto as consequências de tais regras fossem compreendidas pelos membros das sociedades que as desenvolveram.

Para esse autor, a ideologia socialista e os sentimentos antimercado em geral seriam derivados de dois fatores, a razão e o instinto: em primeiro lugar, o racionalismo ingênuo ou construtivista que, ao ignorar ao mesmo tempo as limitações do conhecimento humano e a complexidade do problema alocativo, nutre a ilusão de que é possível controlar os detalhes de funcionamento de ordens espontâneas complexas e, em segundo lugar, os instintos tribais derivados do passado de nossa espécie. Da mesma forma que a predileção moderna por alimentos doces e gordurosos, herdada do passado evolutivo, se tornou disfuncional na sociedade moderna, o desdém pela atividade comercial impessoal, o protecionismo xenofóbico e a crença de que o comércio é um jogo de soma zero seriam sentimentos disfuncionais, herdados de nosso passado tribal, sentimentos esses incompatíveis com as normas abstratas necessárias para um ambiente econômico minimamente complexo, normas essas que emergiram durante o processo de evolução cultural.

Além de sentimentos tribais disfuncionais herdados do passado, a moral abstrata e impessoal que viabiliza a civilização também convive com a moral personalista derivada de grupos pequenos existentes na sociedade moderna, como as regras das famílias e grandes firmas, complicando sobremaneira o estudo da interação entre esses dois tipos de normas: as regras dos grupos pequenos simultaneamente dificultam a compreensão das regras abstratas relativas aos grupos grandes e funcionam como resistência ao impulso coletivista derivado do estado.

Apesar de contrastar a tradição evoluída com instintos naturais, a análise hayekiana se concentra na evolução cultural, atribuindo papel menor para a evolução biológica propriamente dita. Se a primeira for significativa, uma moral compatível com a civilização pode algum dia se consolidar. Porém, se os instintos derivados da segunda forem de fato importantes, o problema da tenacidade dos instintos antimercado pode ser mais sério. Passamos então a considerar essa possibilidade.

Tomemos como ponto de partida a investigação das preferências políticas sob a ótica evolucionária, realizada por Rubin[3]. Para esse autor, as preferências ideológicas modernas refletem propensões adquiridas durante a evolução dos homens e de seus ancestrais no pleistoceno. Instintos que hoje contrariam a razão seriam explicados por atitudes úteis naquele ambiente, no qual encontramos bandos de caçadores-coletores cujo tamanho varia entre 25 e 150 pessoas. Nesse ambiente, com tecnologia e recursos constantes, de fato a interação entre bandos seria um jogo de soma zero, definido pela disputa pelos recursos escassos. Como Hayek, Rubin conclui que a moderna dificuldade de compreensão da teoria ricardiana das vantagens comparativas do comércio internacional pode ser derivada dessa herança tribal. De fato, como qualquer professor que tenha alguma experiência lecionando cursos introdutórios de Economia bem sabe, os alunos, embora não consigam argumentar contra a teoria, instintivamente se recusam a aceitá-la, por mais detalhada que seja a discussão dos argumentos contrários e de suas críticas.

O enriquecimento de um indivíduo, no ambiente no qual nossas preferências políticas foram moldadas, por sua vez, poderia com razão ser visto com desconfiança – um caçador pode se recusar a dividir o excedente de caça obtido em um momento de sorte. Não surpreende, pois, nesse cenário a evolução do instinto da inveja e o julgamento de ações baseado em motivações e não em resultados. Esse tipo de análise ilustra como podemos estudar os incentivos existentes durante a evolução de nossos instintos, abrindo caminho para o estudo da evolução da hostilidade em relação aos mercados.

Porém, nada garante na explicação evolucionária que as preferências emergentes sejam consistentes entre si. Não se deve esperar, portanto, que esse tipo de estudo gere algum tipo de falácia naturalista, que argumente que o homem seja naturalmente libertário ou hierárquico. Rubin, de fato, argumenta que paralelamente aos instintos antimercado, evoluíram propensões favoráveis à liberdade. Nos pequenos agrupamentos de nossos ancestrais, emergiu a atividade política de aliança entre machos em busca de acesso a mais fêmeas, ao mesmo tempo em que surgiram alianças dos demais para barrar essas alianças. Para o autor, antes da formação dos estados e impérios, na maior parte da história da humanidade a quantidade de relações de comando seria bastante reduzida e o caráter descentralizado dos bandos teria resultado em preferências fortes pela manutenção da liberdade de opressão política.

Por outro lado, o autor apresenta a hipótese interessante de que preferências estritamente libertárias não sobreviveriam no ambiente no qual evoluímos, pois a ausência de regulações (de natureza ética ou religiosa) do comportamento dos machos dominantes poderia levar à formação de agrupamentos hierárquicos, disseminando os genes dos machos agressivos e eliminando as preferências por não regulação do comportamento, além da pressão externa dada pela guerra entre grupos, que requer que os jovens machos se dediquem em algum grau a atividades de predação em vez de produção.

Como comportamentos não são entidades ósseas que possam se transformar em fósseis observáveis e não existem genes que regulem inequivocadamente cada tipo de comportamento, esse tipo de análise é altamente especulativo. Os mesmos indivíduos, com as mesmas propensões, postos em situações diversas, respondem com a adoção de estratégias diferentes. Scott[4], por exemplo, estuda a distinção entre a lógica de expropriação estatal praticada nas sociedades baseadas na cultura do arroz no sudeste asiático, em contraste com os agrupamentos na mesma região cujas relações sociais podem ser entendidas como estratégias de fuga desse tipo de exploração, por meio de coleta ou cultivo de raízes em regiões montanhosas. Nessas regiões, os custos de transporte fazem com que o custo da expropriação estatal supere o valor expropriado. Nesse caso, as mesmas propensões inerentes à natureza humana geram sociedades hierárquicas e anárquicas, respectivamente, sem que o modelo suponha etnias com preferências políticas intrinsecamente diferentes. A despeito da complexidade do problema, o estudo da evolução das preferências políticas é crucial. Basta transcender um pouco a discussão política contemporânea e examinar a história das ideias para atestar o fato de que certos instintos antimercados são de fato onipresentes, o que nos convida a mais pesquisa e discussão nessa área.

Uma das tarefas analíticas que devem ser levadas a cabo é a introdução desse tipo de análise na teoria austríaca dos ciclos intervencionistas, discutida nesta segunda parte do livro. Nessa teoria, a lógica das intervenções gerava um processo de acumulação de erros que culminam em crises do intervencionismo, que se manifestam na forma de recessões, baixo crescimento econômico por longo períodos e déficits públicos crônicos, requerendo reformas liberalizantes. Conforme essas começam a ser realizadas, assim que ocorrer algum alívio na situação, o processo de expansão estatal tende a ser retomado.

As causas desse último fenômeno são múltiplas. No limite (teórico) oposto do ciclo intervencionista – a volta do crescimento do estado – não basta explicar a instabilidade do estado mínimo em termos da retomada das forças de rent-seeking, como querem os economistas da Escola da Escolha Pública, nem em termos de falhas de governo na provisão de bens públicos, derivadas do problema do conhecimento, como quer Ikeda, ou ainda reduzir a mentalidade anticapitalista a um sentimento de inveja, como quer Mises. A tudo isso devemos acrescentar os instintos coletivistas presentes na natureza humana tal como estudado por Hayek e Rubin. O desafio intelectual dos libertários consiste então em investigar mais a fundo a natureza e força desses instintos coletivistas e também indagar sobre a forma de sobrepujá-los por meio da educação, levando em conta que o estudo envolve desutilidade. Sem isso, mais instável do que o estado mínimo será o estado nulo. Em outros termos, deve-se investigar se, dada a estrutura da mente humana, será possível que pelo menos uma fração da população, diante do desconforto com o arremesso de anões, tenha como primeiro instinto debater com os adeptos de tal prática em vez de demandar uma lei proibindo tal comportamento?

 

 



[1] Para um inventário das trocas voluntárias que suscitam reprovação moral, ver Roth (2007)

[2] Hayek (1988).

[3] Rubin (2002).

[4] Scott (2009).

 

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