A Economia do Intervencionismo

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33. A Causa Traída: por que os piores chegam ao poder

Leio agora na imprensa mais um daqueles artigos que descrevem como o partido atualmente no poder abandonou seu suposto compromisso original com a ética para se dedicar com entusiasmo a toda sorte de prática política pouco louvável que antes denunciava. Esse tipo de artigo geralmente elogia o idealismo daqueles que deram origem ao partido e que o repudiaram depois de sua transformação. O propósito do presente texto é criticar essa manifestação da velha tese da “causa traída”, argumentando que a corrupção observada é de fato uma consequência lógica do projeto de poder advogado pelo tipo particular de idealismo em questão.A tese da causa traída surge com bastante frequência quando examinamos as opiniões políticas da população. Desse exame, podemos de fato extrair a sensação de que existem dois tipos de políticos: aqueles que têm experiência na área e já sabemos que são corruptos e aqueles novatos, que apesar de recebem nossos esperançosos votos, se revelarão corruptos no futuro, traindo seus eleitores. Algumas explicações possíveis para esse fenômeno são as seguintes: (a) os eleitores são azarados na escolha dos políticos, (b) o comportamento dos políticos reflete a falta de ética do resto da população (a falta de ética aparentemente nunca caracteriza a pessoa que expõe esse raciocínio…), (c) o povo é ignorante e não sabe votar, ou (d) existe algo inerente ao sistema político que transforma idealistas em corruptos e oportunistas. A primeira ‘explicação’, evidentemente improvável, é a melhor resposta para quem acredita na tese da traição da causa. A segunda explicação, quase tão ingênua quanto a primeira, ignora os incentivos gerados pelas instituições, induzindo a esperança vã no surgimento de um líder moralmente superior. A terceira, por seu turno, tem um elemento correto, explorado pela Escola da Escolha Pública, que mostra como é racional para um eleitor se manter ignorante a respeito do desempenho dos políticos (um voto não muda o resultado da eleição e ao mesmo tempo se informar a respeito dos candidatos envolve considerável custo), permitindo que políticos autointeressados impunemente ofertem privilégios a grupos minoritários em troca de financiamento de campanha. A quarta hipótese, que exploraremos ao longo deste capítulo, supõe para fins de argumentação que os políticos são originalmente idealistas, fiéis às suas preferências ideológicas. Mas, apesar disso, ainda assim os piores chegam ao poder.

Esta última explicação se filia à tradição do iluminismo escocês, com sua ênfase no estudo das consequências não intencionais da ação humana. Do mesmo modo que a virtude destruiu a prosperidade na colmeia de Mandeville, precisamos explicar como certa forma de idealismo leva necessariamente à predominância dos piores aspectos da atividade política. A nossa explicação é inspirada pela obra do herdeiro moderno dessa tradição, o economista austríaco F. A. Hayek, que, no seu Caminho da Servidão, mostra como no sistema político de um regime totalitário os piores chegam ao topo. Embora o argumento trate de regimes totalitários, podemos adaptá-lo às democracias existentes nas economistas mercantilistas modernas. Vejamos antes o argumento original do autor.

Para Hayek, enquanto em uma sociedade livre as pessoas têm liberdade para se associar voluntariamente em busca de seus próprios objetivos, numa sociedade totalitária os objetivos individuais devem ser submetidos aos propósitos coletivos estabelecidos centralmente. Embora os coletivistas concordem com a necessidade dessa hierarquia, não existe em absoluto consenso em relação ao conteúdo concreto que as diretrizes centrais deveriam ter. Devido à impossibilidade de se encontrar uma agenda mínima que a maioria concorde, o poder central é obtido na prática pelo maior grupo relativamente homogêneo que tenha objetivos comuns e os valores desse grupo serão então impostos ao resto da sociedade. Mas, na disputa pelo poder absoluto, ocorre um processo de ‘seleção natural’ que premia líderes com características opostas ao humanismo que inspirou os idealistas em sua campanha pelo coletivismo: quanto mais instruído um grupo, maior a diversidade de opiniões, de modo que o consenso tende a emergir em grupos que acreditam em visões de mundo pouco elaboradas. Isso é reforçado pela necessidade de que, para se tornar quase consensual, a causa vencedora deve ser transmitida eficazmente para a maioria crédula. Por outro lado, é muito difícil obter apoio para alguma agenda sobre o que deve ser feito: um político terá muito mais sucesso unindo as pessoas em torno de uma causa negativa. De fato, todo político é um virtuoso na arte de explorar o sentimento de ódio ao estranho, derivado da herança tribal da humanidade que aludimos em capítulos passados.

Mas o verdadeiro teste do político em um regime totalitário surge quando é necessário lidar com os inevitáveis fracassos do planejamento central. Como um plano central não pode dar conta das complexidades do mundo real[1], ele gera inevitavelmente consequências não intencionais, em geral opostas ao desejado por seus idealizadores. Isso leva o líder totalitário a um dilema: ou reconhece seu fracasso e abandona o plano ou aumenta ainda mais os esforços para controlar o resto da sociedade e ao mesmo tempo atribui o fracasso a imaginários sabotadores, inimigos do povo. A primeira opção é barrada pela infinita sede de poder, derivada das certezas inerentes à doutrina dos idealistas. Estes, no entanto, não têm o estômago necessário para impor toda a violência que a manutenção de seu projeto de poder requer. Novamente, a lógica desse processo requer que os piores assumam o poder: ideólogos sofisticados como Bukharin dão lugar a tipos violentos e sem escrúpulos como Stalin. Explica-se assim a diferença entre a moral que gera o totalitarismo e a moral requerida pela prática do totalitarismo. Na explicação hayekiana, a segunda segue-se necessariamente da primeira: não há assim traição da causa.

Da mesma forma que a tese da impossibilidade de cálculo econômico no socialismo é útil para analisar a lógica da intervenção nos mercados, a explicação sobre como os piores chegam ao poder também no totalitarismo pode ser empregada na análise das sociedades altamente intervencionistas que encontramos no presente. Se uma parcela significativa dos recursos em uma sociedade é alocada por critérios políticos e não através de trocas voluntárias nos mercados, todo movimento inicialmente idealista que defenda essa forma de alocação será corrompido se de fato buscar o poder a todo o custo.

Vejamos o caso da suposta traição da causa que mencionamos no começo deste capítulo. Se o projeto de poder de um partido inclui a progressiva estatização da economia, poderíamos perguntar como isso pode ser conciliado com um pretenso compromisso com a ética na política, se essa estatização implica no aumento das oportunidades de enriquecer via ação política e diminuição das oportunidades na esfera puramente voluntária? Em outros termos, qual é o sentido do compromisso com a ética de um partido estatista se o argumento de que a corrupção é proporcional ao tamanho e influência do estado não for confrontado?

Como se dá o esvaziamento da causa e como os piores chegam ao poder? Por um lado, o partido tem que lidar com o choque entre a utopia e a realidade. Seus crentes aprendem que não existe almoço grátis: o mel não passou subitamente a jorrar nas fontes das praças. Por sua vez, as intervenções na economia geram sistematicamente resultados opostos aos desejados. Embora as falhas de governo sejam atribuídas ‘aos mercados’ e paradoxalmente gerem demanda por mais intervenções, o acúmulo de fracassos ao longo do tempo deteriora o orçamento público, diminuindo a margem de manobra do governo. O amor ao poder faz então que as teses originais sejam pragmaticamente abandonadas em favor de políticas ditas ‘neoliberais’[2]: os bolcheviques reintroduzem preços durante a NEP e os políticos de esquerda no Brasil se preocupam em algum grau com o déficit público. Enquanto os políticos são forçados a adotar esse padrão duplo de pensamento, apenas os intelectuais podem se dar ao luxo de continuar acreditando nas ideias originais, buscando refúgio na ilusão de que essas concessões são necessárias apenas enquanto se atua no ‘modo de produção capitalista’.

Se a estada no poder se prolongar o bastante, além do pragmatismo, outros critérios seletivos orientam a escolha dos políticos. Conforme os planos fracassam e o acerto de contas não pode ser transferido para o mandato da oposição, é necessário que o político seja proficiente na arte de esconder as relações de causa e efeito no que se refere às políticas econômicas. Demagogia, fabricação de inimigos do povo (as elites…), pouco apreço pela liberdade de imprensa e pelo debate de ideias se tornam atributos importantes do político.

A lógica do estatismo impõe ainda mais um traço de personalidade que se requer dos políticos: a arte de distinguir entre corrupção ruim (levada a cabo pela oposição) e corrupção boa (em nome da causa). Entre os intelectuais, basta um pouco de dialética para justificar essa distinção. Mas entre os políticos que exercem o poder, vista grossa a corrupção é uma questão de sobrevivência. Uma consequência não intencional do estatismo é a criação de uma clientela dependente dos privilégios legais concedidos pelo estado, que inclui funcionários públicos, sindicatos, empresários já estabelecidos, com acesso privilegiado ao crédito e, ironicamente, os bancos, que lucram com o financiamento do estado grande como jamais poderiam sonhar em lucrar se intermediassem apenas financiamento de projetos privados em mercados livres. Mas, se sob o estatismo crescente a busca por privilégios (atividade de rent-seeking) na margem dá um retorno esperado superior à atividade voluntária, o que aconteceria com um político que repudiasse a troca de favores e a corrupção? Dada a motivação ideológica, o sacrifício da ética pela manutenção do poder se torna um pequeno sacrifício pela causa maior. Ocorrem assim os primeiros passos rumo ao lado negro da força… A lógica do intervencionismo leva então a seleção de líderes que são, colocando de forma delicada, insensíveis à ética na política. Os idealistas originais se sentem traídos, mas se recusam a detalhar seus planos de transformação da sociedade caso eles mesmos ou seus preferidos sejam os dirigentes. Os antigos militantes, por sua vez, se desinteressam pela política: são aqueles que tinham coração na juventude e cérebro na maturidade.

Em resumo, contemplamos uma ideologia que pretendia inicialmente acabar com os privilégios, mas o exercício concreto do poder em uma economia estatizada fez com que a mesma ideologia alimente a maior máquina de geração de privilégios que se possa conceber. Devemos então levar mais a sério o significado do estudo das consequências não intencionais da ação humana. Como? A principal conclusão que podemos extrair dessas ideias enfatiza a futilidade da tese (b): aulas de catecismo não resolveriam o problema. Não se trata de escolher a pessoa certa ou errada, o que importa são os incentivos gerados pelo conjunto das instituições. Enquanto não existirem políticos liberais, que pretendam mudar a qualidade das regras do jogo, diminuindo a esfera da ação não voluntária, não importa o quão ético seja um político estatista, no longo prazo sua ação bem intencionada resultará no oposto de sua intenção e nos restará lamentar causas aparentemente traídas.

 

 

 



[1] Ou, nas poéticas palavras de Adam Smith na Riqueza das Nações: “Ele [o planejador] imagina que pode arranjar os diferentes membros de uma grande sociedade com tanta facilidade quanto a mão que arranja as diferentes peças em um tabuleiro de xadrez. Ele não considera que tais peças não têm outro princípio de movimento além daquele que a mão impõe sobre elas; mas que, no grande tabuleiro da sociedade humana, cada peça individual tem um princípio de movimento próprio, inteiramente diferente daquele que a legislação possa escolher impor sobre ela.”

[2] Nota novolinguística: obviamente, neoliberal é empregado aqui no seu sentido original – o espantalho criado pela esquerda. Diante da crise do estado grande, o verdadeiro liberal defenderia uma diminuição do tamanho e papel do estado. O ‘neoliberal’, por outro lado, se refere ao estatista inteligente o bastante para entender que o estado deve ser financiado de algum modo e que defende então outras formas de financiamento: aumento da carga tributária e mais endividamento para aliviar a necessidade de financiamento via inflação.

 

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