A Economia do Intervencionismo

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35. O Moralismo Social

O uso da palavra doninha[1] “social” no título deste capítulo não é acidental: além de identificar o moralismo que cada vez mais acompanha as discussões dos problemas políticos modernos, indica também a vacuidade desse mesmo moralismo. Quando a política não mais é vista como o embate entre opiniões diferentes sobre o que é o melhor a se fazer e passa a ser encarada como o conflito entre, por um lado, a opinião correta do justo e, pelo outro, a superstição do ignorante ou do mau caráter, abandonam-se gradualmente os alicerces de uma sociedade livre.Durante os três primeiros quartos do século XX — a era do totalitarismo — a sensação de superioridade moral era patente entre os ideólogos de esquerda, a despeito do desprezo formal por esse “valor burguês”: eles se viam como “os” defensores dos trabalhadores, dos pobres e desfavorecidos. Opiniões contrárias eram, por definição, esposadas por defensores do capital, dos ricos e privilegiados. Jamais passou pela cabeça dessas pessoas o pensamento de que talvez houvesse outras opiniões sobre o que é melhor para a população em geral e para os pobres, em particular. Na melhor das hipóteses, pessoas com opiniões diferentes eram tidas como vítimas de propaganda; mas, de qualquer modo, deveriam ser tratadas como “inimigos do povo”.

Mas será que o maniqueísmo era característico de toda doutrina política? Considere, como contraexemplo, a postura de dois dos mais importantes economistas liberais do período, Mises e Hayek. Eles atribuíram boas intenções aos seus oponentes socialistas, acreditando apenas que estes tinham concepções equivocadas. E eles criticaram duramente essas concepções. Esse é em geral o modo de pensar do economista: seus argumentos indagam se os meios defendidos são compatíveis com os fins almejados. Estes últimos não são discutidos: toma-se como algo óbvio que a grande maioria das doutrinas políticas almeja o melhor para todos.

Depois que o marxismo foi traído pela história, não era mais possível manter com facilidade as certezas que nutriam o discurso maniqueísta (e moralista) do período. Mas, embora o edifício explanatório marxista tenha se esfacelado, dissolvendo-se a consistência interna parcial que alimentava seu fascínio, cada um de seus tijolos sobreviveu individualmente, pulverizado em miríades de causas defendidas pela esquerda atual. Cada um dessas causas carrega ainda o DNA do iliberalismo político de seu antecessor e, em conjunto, contribuem para o novo moralismo social que discutiremos neste texto.

Onde podemos encontrar esse moralismo? Grosso modo, em qualquer discussão associada ao discurso “politicamente correto”, seja o assunto reciclagem de lixo, conservação do meio ambiente, relações de trabalho, criação de filhos, educação em geral, criminalidade, relações entre gêneros, segurança de produtos, hábitos alimentares ou de saúde. Duas características marcam esse discurso: por um lado, a ausência de discussão de ideias e, por outro, um sentimento de superioridade moral daqueles que se veem como defensores de “causas” associadas a esses tópicos.

A ausência de discussão de ideias pode ser detectada se notarmos que, nos discursos sobre qualquer um dos assuntos listados acima, novamente ocorre a associação automática entre a opinião do ativista e os verdadeiros interesses dos grupos atingidos. Nunca ocorre a detecção e análise de hipóteses rivais sobre as causas do problema em questão. Assim, existiriam apenas pessoas “contra” ou “a favor” da natureza, dos mais pobres, das crianças, dos doentes ou dos criminosos e nunca diagnósticos diferentes sobre essas questões, o que levaria naturalmente ao debate.

Esse estado de coisas, em larga medida, pode ser atribuído à “lei” da desutilidade marginal crescente associada ao trabalho, em especial ao trabalho intelectual: o ativista, para desenvolver uma opinião mais sofisticada, teria que pesquisar e estudar teorias rivais, lidando com argumentos de natureza lógica e empírica. Mas isso seria cansativo.

Isso nos leva à segunda característica mencionada. O ativista, se de fato tivesse a curiosidade de pesquisar explicações rivais, teria que se despir da sensação de superioridade moral resultante de sua visão de mundo simplista. Ao perceber alguns tons de cinza entre o branco e o preto de suas certezas anteriores, sumiria de vista a divisão fácil entre heróis e vilões e com ela a satisfação de pertencer ao primeiro grupo. Mas isso aparentemente faria mal à autoestima.

Note que, a partir do exposto acima, podemos inferir que as duas características do fenômeno estão intimamente relacionadas: ignorância e presunção se reforçam mutuamente, nutrindo o moralismo social moderno. Vejamos agora alguns exemplos desse moralismo, deixando para o leitor a tarefa de identificar suas características em qualquer outro dos temas listados anteriormente.

Considere o tema da criminalidade e posse de armas. De tempos em tempos é veiculada na televisão campanha com atores que se dizem a favor da paz, o que implica que quem não concorda com a proposta de proibição de armas seria então defensor da violência. Os críticos são retratados ora como boçais, como nos filmes de Woody Allen, ora como desonestos, pagos pela indústria de armamentos. Mas, do alto de sua posição esclarecida, pouquíssimos defensores da proibição se dão ao trabalho de examinar argumentos ou evidência empírica.

Quantos ouviram falar que estatísticas baseadas em boletins de ocorrência policial consistem no exemplo mais grotesco de amostra estatística enviesada (praticamente só as tentativas fracassadas de autodefesa são registradas em B.O.)? Quantos examinaram os estudos estatísticos sérios, que estimam a influência que diferentes níveis de proibição exercem na criminalidade, controlando-se variáveis como desemprego, nível e desigualdade de renda, idade, etc.? Quantos sabem que esses estudos mostram que proibição não reduz violência e que alguns deles mostram até mesmo uma fraca relação positiva entre proibição e criminalidade? Quantos conhecem a argumentação econômica que de fato esperaria que essa relação ocorresse?

Note que para nosso argumento, não importa no final das contas qual posição seja correta: o problema consiste em converter o debate — a demanda por argumentos e evidências — em algo imoral. Isso só não seria um problema no longo prazo apenas se alguém realmente acreditar na infalibilidade de seus instintos. Já para aqueles que contemplam a hipótese remota de estarem errados de vez em quando, o perigo inerente à tendência moderna de moralizar o debate é óbvia.

Note, como outro exemplo, a violenta indignação moral suscitada por qualquer tentativa de discutir as opiniões correntes a respeito de conservação do meio ambiente. Nas escolas e na televisão, as crianças pequenas aprendem que são responsáveis por “salvar o planeta”, através da adoção de atitudes como urinar no chuveiro, tomar banhos curtos e reciclar todo o lixo. Os pequenos, apavorados pela responsabilidade, reprovam seus pais por falta de zelo conservacionista. Mas todo lixo deveria ser reciclado? No jargão do economista, essa solução de canto seria adequada? Onde estão os estudos de viabilidade econômica que mostram isso? Mesmo considerando no cálculo apenas valores relacionados à conservação, quem seria mais escasso: a água necessária para lavar e retirar rótulo de embalagem plástica a ser reciclada ou a economia obtida por essa reciclagem? Não sei. Mas perguntar se tornou extremamente ofensivo. Reciclar se tornou um mandamento moral e não necessariamente algo relacionado à conservação.

Por que a professorinha se entusiasma com a divisão do mundo entre os ignorantes que tomam banho normalmente e os esclarecidos que urinam durante seus banhos curtos; mas, ao mesmo tempo, ela não tem interesse nenhum em investigar quais são os incentivos que fazem com que as empresas estatais de água desperdicem quase metade da água em vazamentos de tubulação por falta de manutenção do capital? Por que a discussão sobre a duração do banho das famílias, responsável por fração pequena do consumo de água, seria mais importante do que discutir a ausência do mecanismo de preços regulando a escassez do recurso precioso no que se refere à demanda industrial e agrícola, responsáveis por parcela substancial do consumo? Novamente, argumentos e dados são ignorados em favor da sensação de pertencer a uma elite esclarecida, moralmente superior à massa ignorante.

O que responder aos filhos quando a professora sugere que o tipo de questionamento mencionado acima seria fruto de ignorância e falta de “consciência social”? Explicar para as crianças pequenas o que é “tragédia dos comuns”? Discutir o papel das instituições e da propriedade privada como solução da tragédia? Explicar os fatores que afetam a taxa de desenvolvimento tecnológico e discutir os problemas econômicos e políticos derivados da alternativa, ou seja, a diminuição do padrão presente de consumo? Essa situação absurda ilustra perfeitamente a nossa falta de sensibilidade ao gradual abandono de valores liberais: doutrinar criancinhas com questões econômicas e políticas, até algumas décadas atrás, era visto com horror: cartilhas usadas em ditaduras que ensinavam a contar “uma bomba contra o grande satã imperialista, duas bombas…” em vez de “uma, duas maçãs” chocavam a maioria, com exceção dos marxistas que viam nos quadrinhos do Tio Patinhasa mesma coisa. Mas, se assistirmos hoje uma emissora de TV a cabo, voltada para a pré-escola, podemos observar o mesmo grau de lavagem cerebral, pretensamente a serviço de causas políticas, sem chocar ninguém. Mas será que os ditadores acreditavam que serviam causas ignóbeis com o mesmo instrumento de propaganda?

O moralismo social é fácil de identificar no ramo de entretenimento televisivo. Em que lugar ele prosperaria mais do que em um ambiente marcado por pessoas populares e, digamos, pouco inclinadas à leitura? Nesse ambiente, encontramos a todo instante “artistas” dando lição de moral sobre assuntos que nunca estudaram, como a viabilidade econômica da usina de Belo Monte. Nas novelas, com frequência, nos deparamos com alguns personagens que sofrem de uma espécie de “Complexo de Madre Tereza de Calcutá”, esposando todo tipo de causa nobre, para servir de exemplo de bom comportamento para os telespectadores. Nos programas de entrevistas, os atores disputam para ver quem é o mais altruísta. No recém-extinto programa da apresentadora americana Oprah Winfrey, ela e seus convidados, cercados por uma aura de beatitude, se dedicavam a um ritual de autoelogio constante, exortando a massa a mudar o mundo, inspirados por seu exemplo. Não precisa ser um economista neoclássico para entender o absurdo dessa proposição: qualquer marxista minimamente competente perceberia como Marx ridicularizaria uma proposta de mudar o mundo por meio da caridade! Discutir o papel do altruísmo e egoísmo em sistemas econômicos comparados? Nem pensar! No entanto, dificilmente um candidato a um curso de MBA conseguiria sua vaga se em seu currículo não constar alguma atividade como distribuição de sopa para mendigos, atestando quão altruísta e sensível às “questões sociais” ele é.

O moralismo social se manifesta, de forma cômica, nos “jantares inteligentes” descritos por Luiz Felipe Pondé[2]. Nessas ocasiões, os convivas se congratulam a respeito de sua “consciência social” superior, novamente defendendo causas “politicamente corretas” sem se preocupar com fundamentação teórica ou empírica. O aspecto cômico do fenômeno, em parte, se deve à curiosa combinação de preocupação com os desfavorecidos com um exibicionismo elitista, que pretende ditar um padrão de comportamento adequado. Para Pondé, o moralismo social seria raso, em comparação com a moralidade cristã, pois nesta última estamos conscientes de que o mal, o pecado, pode ser derivado de nossas próprias ações, ao passo que na moralidade da esquerda moderna, o mal reside sempre nos outros, que fariam melhor se seguissem o exemplo dos esclarecidos, que reciclam e andam de bicicleta.

A análise mais profunda do moralismo social até o momento foi feita em um livro escrito por Thomas Sowell[3], cujo título merece transcrição completa, por conter a essência do problema: “A Visão dos Ungidos: autocongratulação, como base para a política social“. Sowell, além de documentar e analisar extensamente o fenômeno do moralismo social, em sintonia com a análise feita ao longo deste capítulo, distingue a “visão trágica”, que informa o ponto de vista liberal, da “visão dos ungidos”, que informa o moralismo social.

Como um autor influenciado por Hayek, Sowell coloca na base da distinção os supostos básicos sobre a natureza do conhecimento relevante para os fenômenos sociais. Enquanto o conhecimento relevante para a visão trágica consiste no conhecimento prático disperso entre todos na sociedade, para os ungidos o relevante é o conhecimento articulado da elite intelectual. Em termos hayekianos, essa questão deve ser respondida em termos da limitação do conhecimento humano para lidar com a complexidade da tarefa de coordenação entre os planos de ação de todos os membros da sociedade.

De acordo com isso, a capacidade dos homens de mudar o mundo, inerentemente limitada para os defensores da visão trágica, não seria um problema para os ungidos. Os processos de causação social, para os proponentes da visão trágica, ocorrem por meio de sistemas auto-organizáveis, que dispensam o uso consciente, e processamento centralizado de toda essa informação, ao passo que os defensores da visão dos ungidos, livres dessa limitação, privilegiam a ação centralizada através de planos governamentais. Os primeiros preferem decisões incrementais e os segundos, decisões categóricas. Dada a presença de escassez como um componente da complexidade da interação social, a primeira visão reconhece a existência de dilemas ou trade-offs no que se refere às possibilidades de ação política, ou seja, atender a uma necessidade em certo grau implica em menos recursos para atender as demais, ao passo que na visão alternativa os dilemas somem e utiliza-se no lugar as categorias “problemas” e “soluções”: os problemas da saúde, educação, natureza e assim por diante que necessitam solução por meio de programas governamentais.  Em outros termos, a visão dos ungidos não leva sistematicamente em conta os custos de oportunidades do uso dos recursos públicos. A crença tácita na inexistência de escassez, naturalmente, resulta na pressão contínua pela expansão desses recursos.

Dada a limitação do conhecimento, a visão trágica pensa em termos de incentivos definidos por regras diferentes, ao passo que a visão dos ungidos pensa em termos de vontade política para realizar as mudanças. Do mesmo modo, a primeira visão privilegia a noção de liberdade como proteção contra o poder, ao passo que a segunda privilegia a liberdade como habilidade para atingir objetivos.

Para Sowell, assim como argumentamos acima, não importa se algum diagnóstico derivado de uma dessas visões está certo ou errado, ou se a origem da visão dos ungidos é de fato um sentimento de superioridade moral: o verdadeiro perigo associado à predominância moderna do moralismo social consiste por um lado na sistemática recusa de examinar os argumentos e dados empíricos e por outro na condenação moral de quem esposa opiniões diferentes. Esses dois fatores, em conjunto, minam a liberdade de pensamento e ameaçam o progresso, que depende dessa liberdade.



[1]Como apontou Hayek (1988), “social” é a principal palavra doninha dos tempos atuais; ou seja, um adjetivo que esvazia totalmente o significado do substantivo que pretende qualificar, como uma doninha que suga o conteúdo de um ovo sem romper sua casca. “I can suck melancholy out of a song as a weasel sucks eggs.” (Shakespeare, As You Like It)

[2] Ver entrevista na revista Veja, julho de 2011.

[3] Sowell (1995).

 

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