A ética da liberdade

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09. Propriedade e criminalidade
Podemos definir um indivíduo que agride uma pessoa ou uma outra propriedade produzida por outro como um criminoso. Um criminoso é qualquer um que inicia a violência contra outro homem e sua propriedade: é qualquer um que usa o coercivo “meio político” para a aquisição de bens e serviços. [1]
Neste momento, entretanto, surgem problemas críticos; agora nós estamos de fato no próprio âmago do verdadeiro problema da liberdade, da propriedade e da violência na sociedade. Uma questão crucial — e uma que infelizmente tem sido quase que totalmente negligenciada pelos teóricos libertários — pode ser elucidada pelos seguintes exemplos:

Suponha que estamos andando pela rua e vemos um homem, A, agarrando B pelo braço e tomando o seu relógio de pulso. Não há dúvida de que aqui A está violando tanto a pessoa quanto a propriedade de B. Será que podemos então deduzir, simplesmente a partir desta cena, que A é um agressor criminoso e B, sua vítima inocente?

Com certeza não — pois não sabemos apenas pela nossa observação se A é de fato um ladrão, ou se A está somente se reempossando de seu próprio relógio que B havia roubado anteriormente. Resumindo, enquanto o relógio indubitavelmente estava sob posse de B até o momento do ataque de A, nós não sabemos se A era ou não era o legítimo proprietário em algum período anterior, e se tinha sido roubado por B. Então nós ainda não sabemos qual dos dois homens é o legítimo ou o justo possuidor da propriedade. Apenas podemos encontrar a resposta através da investigação da informação concreta do caso particular, i.e., através da averiguação “histórica”.

Portanto, não podemos simplesmente dizer que a grande regra moral axiomática da sociedade libertária é a proteção dos direitos de propriedade e ponto final. Pois o criminoso não possui qualquer direito natural da retenção da propriedade que ele roubou; o agressor não tem direito de reivindicar nenhuma propriedade que ele adquiriu através de agressão. Então nós temos que modificar, ou melhor, esclarecer a regra básica da sociedade libertária e dizer que ninguém tem o direito de agredir a propriedade legítima ou justa do outro.

Em resumo, não podemos nos limitar a falar simplesmente da defesa de “direitos de propriedade” ou de “propriedade privada” per se. Pois, se assim o fizermos, corremos o grande risco de defender o “direito de propriedade” de um agressor criminoso — de fato, pela lógica, nós acabaríamos fazendo isso. Portanto podemos falar apenas sobre propriedade justa ou propriedade legítima ou talvez “propriedade natural”. E isto significa que, em casos reais, temos que determinar se qualquer ato consumado e isolado de violência é agressivo ou defensivo: e.g., se é um caso de um criminoso roubando uma vítima, ou de uma vítima tentando se reapossar de sua propriedade.

Outra implicação essencial desta forma de ver o mundo é a completa invalidação da forma utilitária de ver os direitos de propriedade e, portanto, de ver o livre mercado. Pois o utilitarista, que não tem nenhum conceito de justiça, muito menos uma teoria, tem que recorrer à visão pragmática ad hoc de que todos os títulos de propriedade privada presentemente existentes em qualquer época ou lugar devem ser considerados válidos e aceitos como dignos de defesa contra violações.[2] Isto, na verdade, é a forma com que o economista de livre-mercado utilitarista invariavelmente trata a questão de direitos de propriedade. No entanto, repare que o utilitarista introduziu sorrateiramente na discussão uma ética que não foi examinada: que todos os bens “ora” (na época e no lugar em que a discussão ocorre) considerados propriedade privada devem ser aceitos e defendidos como tal. Na prática, isto significa que todos os títulos de propriedade privada designados por qualquer governo existente (que em toda parte se apoderou do monopólio de definir títulos de propriedade) devem ser aceitos como tal. Está é uma ética que é cega em relação a todas as considerações de justiça, e, levada às suas conclusões lógicas, ela tem que defender também todas as propriedades expropriadas por criminosos. Concluímos que a exaltação utilitária de um livre mercado baseada simplesmente em todo título de propriedade existente é inválida e eticamente niilista.[3]

Estou convencido, no entanto, de que o verdadeiro motor para mudanças sociais e políticas em nosso tempo tem sido a indignação moral que surge a partir da falaciosa teoria da mais-valia: que os capitalistas têm roubado a propriedade legítima dos trabalhadores, e, portanto que os títulos de propriedade existentes sobre o capital acumulado são injustos. Considerando esta hipótese válida, o restante do ímpeto tanto do marxismo quanto do anarco-sindicalismo tem uma sequencia lógica. A partir de uma preocupação com o que aparenta ser uma injustiça monstruosa, aflui o clamor pela “expropriação dos expropriadores”, e, em ambos os casos, por alguma forma de “reversão” da posse e do controle da propriedade para os trabalhadores.[4] O argumento deles não pode ser efetivamente contestado pelas máximas da filosofia ou da economia utilitária, mas apenas ao se lidar com franqueza com o problema moral, com o problema da justiça ou injustiça de várias reivindicações de propriedade.

Nem tampouco pode a visão marxista ser refutada pelos peãs utilitários que exaltam as virtudes da “paz social”. A paz social pode ser algo muito bonito, mas a verdadeira paz é essencialmente o gozo, tranquilo e livre de interferências, de sua legítima propriedade, e, se um sistema social é fundado em títulos de propriedade monstruosamente injustos, não molestá-los não é a paz e sim a glorificação e o entrincheira­mento da agressão permanente. Os marxistas também não podem ser refutados pela acusação do uso de seus métodos violentos de subversão. É, na verdade, uma doutrina consistente — embora uma com a qual eu não concorde — a de que nenhuma violência nunca deveria ser usada por ninguém contra qualquer outro: nem por uma vítima contra um criminoso. Mas esta posição moral tolstoiana-gandhiana é totalmente irrelevante aqui. Pois o ponto em questão é se a vítima tem ou não um direito moral de fazer uso da violência ao defender sua pessoa ou sua propriedade de um ataque criminoso ou ao se reapossar da propriedade do criminoso. O tolstoiano pode reconhecer que a vítima tem tal direito, mas pode tentar persuadi-la a não exercê-lo em nome de uma moralidade superior. Mas isso nos desvia de nossa discussão e nos leva a escopos mais abrangentes da filosofia ética. Apenas acrescentaria aqui que qualquer opositor total à violência deve então ser coerente e defender que nenhum criminoso jamais seja punido com o uso de meios violentos. E isto implica, destaquemos, não apenas na abstenção da pena capital, mas de toda e qualquer pena, e, na verdade, de todos os métodos de defesa violenta que concebivelmente possam ferir um agressor. Resumindo, o tolstoiano não pode usar força para impedir que alguém estupre sua própria irmã.

A questão aqui é que apenas os tolstoianos têm o direito de contestar a subversão violenta de um grupo criminoso entrincheirado; pois todo mundo que não é um tolstoiano favorece o uso da força e da violência para punir e para se defender de agressões criminosas. Por isso ele tem que reconhecer a moralidade, ou então a sabedoria, de se usar a força para subverter a criminalidade entrincheirada. Se for assim, então nós somos imediatamente levados de volta à questão realmente importante: quem é o criminoso, e, consequentemente, quem é o agressor? Ou, em outras palavras, o uso da violência é legítimo contra quem? Mas, se admitirmos que a propriedade capitalista é moralmente ilegítima, então não poderemos negar o direito dos trabalhadores de empregar qualquer violência que seja necessária para apoderar-se da propriedade, assim como A de nosso exemplo acima estaria dentro de seus direitos ao se reapossar forçosamente de seu relógio caso B o tivesse roubado anteriormente.

Então a única refutação autêntica à causa marxista em defesa da revolução é que a propriedade capitalista é justa e não injusta, e que, portanto, sua confiscação pelos trabalhadores, ou por quem quer que seja, seria por si mesma injusta e criminosa. Mas isto significa que temos que entrar na questão da justiça dos títulos de propriedade, e, além disso, significa que não podemos simplesmente nos render à comodidade de tentar refutar reivindicações revolucionárias colocando arbitrariamente o manto da “justiça” sobre todo e qualquer título de propriedade existente. Tal atitude dificilmente convencerá as pessoas que acreditam que elas e outras estão sendo severamente oprimidas e permanentemente agredidas. Mas isto também significa que temos que estar preparados para encontrar no mundo casos em que a expropriação violenta de títulos de propriedade existentes será moralmente justificada pela razão de estes títulos serem injustos e criminosos. Deixe-nos novamente fazer uso de um exemplo para tornar clara nossa tese. Para usar um artifício excelente de Ludwig von Mises para abstrair-se do sentimentalismo, peguemos um país hipotético, “Ruritânia”.

Digamos que a Ruritânia é governada por um rei que tem violado gravemente os direitos das pessoas e da legítima propriedade dos indivíduos, e tem regulamentado e, por fim, confiscado a propriedade deles. Um movimento libertário desenvolve-se na Ruritânia e chega a convencer a maior parte da população de que este sistema criminoso deveria ser substituído por uma sociedade verdadeiramente libertária, onde os direitos de cada homem à sua pessoa e à sua propriedade encontrada e criada são totalmente respeitados. O rei, vendo que a revolta tem seu sucesso iminente, utiliza-se imediatamente de um estratagema astuto. Ele proclama a dissolução de seu governo, mas, antes de fazer isso, loteia toda a extensão territorial de seu reino e a coloca sob a “posse” dele e de seus parentes. Ele então vai aos rebeldes libertários e diz: “tudo bem, eu concedi o desejo de vocês e aboli meu governo; não existe mais intervenção violenta na propriedade privada. No entanto, eu mesmo e onze parentes meus agora possuímos, cada um, um doze avos da Ruritânia, e, se vocês nos perturbarem de alguma maneira em relação a estas posses, vocês estarão infringindo a santidade do próprio princípio fundamental que vocês professam: a inviolabilidade da propriedade privada. Por isso, enquanto nós não mais estivermos impondo ‘taxas’, vocês têm que conceder a cada um de nós o direito de impor aos nossos ‘inquilinos’ o ‘aluguel’ que nós quisermos ou de regular, como acharmos conveniente, as vidas de todas as pessoas que ousarem viver em ‘nossa’ propriedade. Desta forma, as taxas serão completamente substituídas por ‘alugueis privados’!”

Nessas circunstâncias, qual deveria ser a resposta dos rebeldes libertários a este desafio ousado? Se eles são utilitários coerentes, eles têm que se submeter a este subterfúgio e se conformar a viver sob um regime não menos despótico do que o que eles estavam combatendo há tanto tempo. Talvez, na verdade, mais despótico, pois agora o rei e seus parentes podem reivindicar para si mesmos o próprio princípio libertário do direito absoluto à propriedade privada, uma incondicionalidade que talvez eles não tivessem se atrevido a reivindicar antes.

Deveria estar claro que, para os libertários refutarem este estratagema, eles teriam que recorrer a uma teoria de propriedade justa versus a injusta; eles não podem continuar sendo utilitários. Iriam então dizer ao rei: “Desculpe-nos, mas só reconhecemos os títulos de propriedade privada que são justos — que emanam do direito natural de um indivíduo de possuir a si próprio e a propriedade que ele tenha transformado através de sua força ou que tenha sido dada ou legada voluntariamente a ele por estes transformadores. Nós, resumindo, não reconhecemos o direito de qualquer um sobre qualquer pedaço de propriedade simplesmente por ele ou qualquer outro meramente dizer que é dele. Não pode haver nenhum direito natural moral derivável da reivindicação arbitrária de um homem de que qualquer propriedade seja dele. Portanto, nós reivindicamos o direito de expropriar a propriedade ‘privada’ de você e de seus parentes, e de retornar esta propriedade aos proprietários individuais que vocês agrediram ao impor seus títulos ilegítimos”.

Um corolário que aflui desta discussão é de vital importância para a teoria da liberdade. A saber: que, no sentido mais profundo, toda propriedade é “privada”.[5] Pois toda propriedade pertence à (é controlada por) alguma pessoa ou algum grupo de pessoas. Se B rouba um relógio de A, então o relógio passa a ser “propriedade” privada de B — está sob seu controle e posse de facto­ — na medida em que é possível para ele possuir e usar o relógio. Portanto, o relógio, estando nas mãos de A ou de B, está em mãos privadas — em alguns casos, privadas legítimas, em outros, privadas criminosas, mas igualmente privadas.

Como veremos mais adiante, o mesmo vale para indivíduos reunindo-se em qualquer tipo de grupo. Assim, quando eles formaram o governo, o rei e seus parentes controlaram — e, deste modo, “possuíram” ao menos parcialmente — a propriedade das pessoas que eles estavam agredindo. Quando eles lotearam a terra em propriedades “privadas” para cada um deles, eles novamente compartilharam a posse do país, embora de maneiras aparentemente diferentes. A forma da propriedade privada diferiu nos dois casos, mas não a essência. Assim, a questão crucial na sociedade não é, como muitos acreditam, se a propriedade deveria ser privada ou governamental, mas sim se os proprietários necessariamente “privados” são proprietários legítimos ou criminosos. Pois, no final das contas, não existe uma entidade chamada “governo”; existem apenas pessoas reunindo-se em grupos chamados “governos” e agindo de um modo “governamental”.[6] Toda propriedade sempre é, portanto, “privada”; a única questão crucial é se ela deveria estar nas mãos de criminosos ou dos proprietários legítimos e corretos. Há na verdade somente uma razão para os libertários se oporem à formação da propriedade governamental ou para invocar o seu despojamento: a compreensão de que os governantes são proprietários injustos e criminosos de tais propriedades.

Em resumo, o utilitário laissez-faire não pode simplesmente se opor à propriedade “governamental” e defender a privada; pois o problema com a propriedade governamental não é exatamente que ela seja governamental (pois e quanto aos criminosos “privados” como o nosso ladrão de relógio?), mas que ela seja ilegítima, injusta e criminosa — como no caso do nosso rei da Ruritânia. E já que os criminosos “privados” são igualmente censuráveis, vemos que a questão social da propriedade não pode ser tratada basicamente em termos utilitários de privada ou governamental. Ela tem que ser tratada em termos de justiça ou injustiça: de legítimos possuidores de propriedade vs. invasores criminosos ilegítimos de tais propriedades, sendo estes invasores chamados “privados” ou “públicos”. O libertário pode estar ficando um pouco preocupado agora. Ele pode dizer: “admitindo que você esteja correto em princípio, que os títulos de propriedade têm que ser validados pela justiça, e que nem ao criminoso pode ser permitido reter o relógio roubado, nem ao rei e seus parentes o país ‘deles’, como pode o seu princípio ser aplicado na prática? Isto não acarreta em uma investigação caótica dos títulos de propriedade de todo mundo, e, além disso, qual critério você pode estabelecer para a justiça destes títulos?”

A resposta é que o critério que deve ser aplicado é conforme o explicado acima: o direito de todo indivíduo de possuir sua pessoa e a propriedade que encontrou e transformou, e, portanto “criou”, e a propriedade que ele adquiriu através de doações ou de trocas voluntárias com outros transformadores ou “produtores”. É verdade que títulos de propriedade existentes devem ser inspecionados, mas a solução do problema é muito mais simples do que parece. Pois sempre lembre o princípio básico: que todos os recursos, todos os bens, em um estado de ausência de posse pertencem devidamente à primeira pessoa que os encontrar e os transformar em um bem útil (o princípio da “apropriação original”). Vimos isso acima no caso de recursos naturais e de terra não usados: o primeiro a encontrar e a misturar seu trabalho com eles, a possui-los e usá-los, os “produz” e torna-se o legítimo proprietário deles. Assim sendo, suponha que o Senhor João tem um relógio; se não podemos mostrar claramente que João ou os seus ancestrais eram criminosos em relação ao título de propriedade do relógio, então devemos dizer que, já que o Senhor João vem possuindo e usando o relógio, ele é realmente o proprietário legítimo e justo.

Ou em outras palavras: se não sabemos se o presente título de João de qualquer propriedade é de origem criminosa, então podemos presumir que esta propriedade estava, ao menos momentaneamente, em um estado de ausência de propriedade (já que não temos certeza a respeito do título original), e, portanto, que o título de propriedade correto regressa instantaneamente a João na qualidade de seu “primeiro” (i.e., atual) possuidor e usuário.

Mas suponha agora que um título de propriedade é claramente identificável como sendo criminoso, será que isto necessariamente significa que o possuidor atual deve abrir mão dele? Não, não necessariamente. Pois isto depende de duas considerações: (a) se a vítima (o proprietário original agredido) ou seus herdeiros são claramente identificáveis e podem ser presentemente encontrados; ou (b) se o possuidor atual é ou não, ele mesmo, o criminoso que roubou a propriedade. Suponha, por exemplo, que João possui um relógio, e que nós podemos mostrar claramente que o título de João é de origem criminosa, ou porque (1) seu ancestral o roubou, ou (2) porque ele ou o seu ancestral compraram-no de um ladrão (se estavam ou não a par desta circunstância é irrelevante aqui). Então, se podemos identificar e encontrar a vítima ou o seu herdeiro, fica claro que o título do relógio de João é completamente inválido e que ele deve imediatamente voltar ao seu verdadeiro e legítimo proprietário. Assim, se João herdou ou comprou o relógio de um homem que o roubou de Paulo, e se Paulo, ou o herdeiro de sua condição, pode ser encontrado, então o título do relógio corretamente regressa a Paulo ou a seus descendentes imediatamente, sem compensação ao possuidor atual do “título” de origem criminosa.[7] Deste modo, se um título de propriedade atual é criminoso em sua origem, e a vítima, ou o seu herdeiro, pode ser encontrado, então o título deveria voltar imediatamente a ele.

Suponha, entretanto, que a condição (a) não é satisfeita: resumindo, que nós sabemos que o título de João é criminoso, mas que presentemente não conseguimos encontrar a vítima nem o seu herdeiro atual. Quem é o possuidor legítimo e moral da propriedade neste caso? A resposta a esta questão depende agora do fato de João ser ou não, ele mesmo, o criminoso, de João ser ou não o homem que roubou o relógio. Se João for o ladrão, então está totalmente claro que não se pode deixar que ele retenha o relógio, pois ao criminoso não pode ser permitido reter a recompensa de seu crime; ele perde o relógio e provavelmente sofre outras punições além desta.[8] Neste caso, quem fica com o relógio? Aplicando nossa teoria libertária de propriedade, o relógio está agora — depois de João ter sido pego — em um estado de ausência de posse, e deve, portanto se tornar a legítima propriedade da primeira pessoa que pegá-lo e colocá-lo em uso, convertendo-o, assim, de um estado não usado e sem posse para um estado útil e possuído — “apropriação original”. A primeira pessoa que fizer isso torna-se seu proprietário legítimo, moral e justo.

Mas suponha que João não seja o criminoso, não seja o homem que roubou o relógio, mas que ele tenha herdado ou o tenha comprado inocentemente do ladrão. E suponha, claro, que nem a vítima nem seus herdeiros possam ser encontrados. Neste caso, o desaparecimento da vítima significa que a propriedade roubada passa devidamente a um estado de sem dono. Mas vimos que qualquer bem que se encontre em um estado de ausência de propriedade, sem nenhum proprietário legítimo de seu título, reverte-se à legítima propriedade do primeiro a vir usá-lo, a atribuir a este recurso, até então não usado, uma utilidade humana. Mas esta “primeira” pessoa claramente é João, que o tem usado durante todo esse tempo. Portanto, concluímos que, ainda que a propriedade tenha sido originalmente roubada, se a vítima ou seus herdeiros não podem ser encontrados, e se o possuidor atual não for o criminoso que efetivamente roubou a propriedade, então o título desta propriedade pertence devidamente, justamente e eticamente a seu possuidor atual.

Recapitulando, para qualquer propriedade atualmente reivindicada e utilizada: (a) se nós sabemos claramente que não há nenhuma origem criminosa em seu título atual, então obviamente o título atual é legítimo, justo e válido; (b) se nós não sabemos se o título atual tem qualquer origem criminosa, nem tampouco temos como averiguar, então a propriedade hipoteticamente “sem dono” reverte-se instantânea e justamente a seu possuidor atual; (c) se nós sabemos que o título é criminoso em sua origem, mas não podemos encontrar a vítima ou seus herdeiros, então (c1) se o atual portador do título não for o agressor criminoso da propriedade, então esta se reverte justamente a ele como o primeiro proprietário de uma propriedade hipoteticamente sem dono. Mas (c2) se o atual portador do título é o próprio criminoso ou um dos criminosos que roubaram a propriedade, então não há dúvidas de que ele deve ser despojado dela, revertendo ela então ao primeiro homem que a remover de seu estado de não ter dono e que se apropriar dela por seu uso. E, finalmente, (d) se o título atual é resultado de um crime, e a vítima ou os seus herdeiros podem ser encontrados, então o título de propriedade se reverte imediatamente a eles, sem compensação ao criminoso ou aos outros portadores do título injusto.

Poderia ser alegado que o portador ou os portadores de um título injusto (caso eles próprios não sejam os agressores criminosos) deveriam ter o direito à propriedade que eles acrescentaram à propriedade que não era justamente deles, ou, ao menos, serem compensados por estas adições. Em resposta, o critério deve ser se estas adições são ou não separáveis da propriedade original em questão. Suponha, por exemplo, que Bruno rouba um carro de Luiz, e que Bruno venda o carro para Roberto. Do nosso ponto de vista, então, o carro tem que ser devolvido imediatamente ao verdadeiro dono, Luiz, sem compensação para Roberto. Ser uma vítima de um roubo não deveria impor obrigações a Luiz de recompensar outra pessoa. Naturalmente, Roberto tem uma queixa legítima contra o ladrão de carros, Bruno, e deveria poder processar Bruno para a restituição ou para as perdas nas bases do contrato fraudulento que Bruno impingiu a ele (fingindo que o carro era realmente propriedade de Bruno). Mas suponha que Roberto, no decorrer de sua posse do carro, tenha colocado um novo rádio nele; já que o rádio é separável do carro, ele deveria poder retirar o rádio antes de o carro ser devolvido a Luiz, pois ele é o legítimo proprietário do radio. Por outro lado, se a adição não é separável, mas uma parte integrante da propriedade (e.g., um conserto no motor), então Roberto não deveria poder requerer qualquer pagamento ou propriedade de Luiz (embora ele talvez pudesse conseguir isso processando Bruno). De maneira semelhante, se Bruno roubou uma parcela da terra de Luiz, e a vendeu para Roberto, o critério novamente deveria ser da “separabilidade” de qualquer acréscimo que Roberto tenha feito à propriedade. Se, por exemplo, Roberto tiver construído algumas edificações sobre a propriedade, então ele deveria ter a oportunidade de remover as edificações ou de demoli-las antes de devolver a terra para Luiz, o proprietário original.

Nosso exemplo do carro roubado nos permite enxergar imediatamente a injustiça do atual conceito legal do “título de crédito”. Na lei atual, o carro roubado de fato seria devolvido ao dono original sem nenhuma obrigação da parte dele de recompensar o atual detentor do título injusto. Mas o estado designou certos bens como “objetos negociáveis” (e.g., cédulas de dinheiro) cuja posse supõe-se ser do recebedor ou do comprador não-criminoso, e cuja devolução à vítima não pode ser forçada. As legislações peculiares também têm transformado os empenhadores em uma classe semelhantemente privilegiada; de modo que, se Bruno rouba uma máquina de escrever de Luiz, e então a empenha com Roberto, o empenhador pode não ser obrigado a devolver a máquina de escrever ao seu justo dono, Luiz.

Para alguns leitores, nossa doutrina pode parecer severa em relação aos recebedores de boa-fé de bens que posteriormente se averigua haverem sido roubados ou injustamente possuídos. Mas deveríamos lembrar que, no caso de aquisição de terras, o exames de títulos é uma prática comum, assim como os seguros de títulos contra tais problemas. Na sociedade libertária, presumivelmente, o negócio de exame de títulos e de seguro de títulos aplicar-se-á também a áreas mais amplas de proteção dos direitos de propriedade justa e privada.

Vemos então que a teoria libertária adequadamente desenvolvida não se junta aos utilitários dando uma aprovação ética arbitrária e indiscriminada a todo título de propriedade atual nem condena a moralidade dos títulos existentes a um caos de incerteza total. Muito pelo contrário, a partir do axioma fundamental do direito natural de todo homem à propriedade de si mesmo e dos recursos sem dono que ele encontra e transforma, a teoria libertária deduz a absoluta moralidade e justiça de todos os títulos de propriedade atuais exceto onde a origem dos títulos atuais é criminosa, e (1) a vítima ou seus herdeiros podem ser identificados e encontrados, ou (2) a vítima não pode ser encontrada, mas o portador atual do título é o criminoso em questão. No primeiro caso, a propriedade reverte-se, de acordo com a justiça comum, à vítima ou a seus herdeiros; no último, ela se torna propriedade da primeira pessoa que alterar seu estado de não ter dono.

Assim temos uma teoria de direitos de propriedade: todo homem tem um direito absoluto ao controle e à posse de seu próprio corpo, e aos recursos da terra que ele encontra e transforma. Ele também tem o direito de dar estas propriedades tangíveis (embora ele não possa alienar o controle sobre sua própria pessoa e vontade) e de trocá-las pelas propriedades igualmente originadas por outros. Portanto, todo direito de propriedade legítimo origina-se na propriedade de todo homem sobre sua própria pessoa, assim como o princípio da “apropriação original” da propriedade sem dono pertencer justamente ao primeiro possuidor.

Nós também temos uma teoria de criminalidade: um criminoso é alguém que agride tal propriedade. Qualquer título criminoso de propriedade deve ser invalidado e devolvido à vítima ou seus herdeiros; se nenhuma dessas vítimas puder ser encontrada, e se o possuidor atual não for o próprio criminoso, então a propriedade justamente reverte-se ao possuidor atual pelo nosso princípio básico de “apropriação original”.

Vejamos agora como esta teoria de propriedade pode ser aplicada às diferentes categorias de propriedade. O caso mais simples, naturalmente, é a propriedade nas pessoas. O axioma fundamental da teoria libertária é que cada pessoa deve ser um autoproprietário e que ninguém tem o direito de interferir nesta autopropriedade. Segue-se imediatamente disto a total ilegitimidade da propriedade de um sobre outra pessoa.[9] Um notório exemplo deste tipo de propriedade é a instituição da escravidão. Antes de 1865, por exemplo, a escravidão era um título de “propriedade privada” para muitas pessoas nos Estados Unidos. A ocorrência deste título privado não o tornava legítimo; ao contrário, ele constituía uma agressão contínua, uma criminalidade contínua, dos senhores (e daqueles que ajudavam a fazer cumprir seus títulos) contra seus escravos. Pois neste caso as vítimas são clara e imediatamente identificáveis, e o senhor de escravos estava diariamente cometendo agressões contra seus escravos. Deveríamos mencionar também que, como no nosso caso hipotético do rei da Ruritânia, o utilitarismo não fornece nenhuma base sólida para a revogação do “direito de propriedade” de um senhor sobre seus escravos.

Quando a escravidão era uma prática comum, ocorriam muitas discussões acaloradas sobre o quanto, e se, os senhores deveriam ser compensados monetariamente pela perda de seus escravos. Estas discussões eram incontestavelmente absurdas. Pois o que é que fazemos quando prendemos um ladrão e recuperamos um relógio roubado: compensamos o ladrão pela perda do relógio ou o punimos? Certamente, a escravização da pessoa e da própria existência de um homem é um crime muito mais abominável do que o roubo de um relógio e deveria ser tratado de acordo. Como o liberal clássico inglês Benjamin Pearson acidamente comentou: “a proposta tinha sido feita para compensar os donos de escravos e ele imaginou que os escravos eram quem deveriam ter sido compensados”.[10] E, evidentemente, esta compensação só seria justa se viesse dos próprios donos dos escravos, e não dos pagadores de impostos.

Deve ser enfatizado que, na questão da escravidão, o fato de ela ter sido abolida imediatamente ou não é irrelevante para os problemas de desordem social, de rápido empobrecimento dos mestres de escravos ou da florescência da cultura sulista, muito menos a questão — interessante, logicamente, por outras razões — de a escravidão ser boa para a terra e para o crescimento econômico do Sul ou se teria desaparecido em mais uma ou duas gerações. Para o libertário, para a pessoa que acredita na justiça, a única consideração a ser feita diz respeito à injustiça monstruosa e à contínua agressão da escravidão, e, portanto, à necessidade de se abolir esta instituição o mais rápido quanto fosse possível.[11]
[1] Aqui estamos usando os termos “crime” e “criminoso” mais na linguagem comum do que no sentido técnico legal. No jargão legal, as ofensas ou as agressões contra indivíduos não são crimes, mas atos ilícitos, com os executores dos atos ilícitos sendo chamados de molestadores. O conceito legal de “crime” limita-se a ofensas contra o estado ou a comunidade. Será visto a seguir que nós rejeitamos completamente este conceito, com todas as ofensas legalmente puníveis limitando-se a invasões da pessoa ou da propriedade de outros indivíduos. Em suma, na concepção libertária, estes “crimes” correspondem a “atos ilícitos” legalmente designados, embora não exista uma razão em particular para que a reparação ou a punição seja confinada a pagamentos monetários, como era no caso da lei antiga de atos ilícitos, Veja Sir Henry Maine, Ancient Law (New York: E.P. Dutton, 1917), pág. 217ff

[2] Para uma crítica ao utilitarismo neste ponto, veja John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971), págs. 26–27, secs. 83–84. O utilitarismo é criticado mais largamente em Peter Geach, The Virtues (Cambridge: Cambridge University Press, 1977), pág. 91ff., 103ff. Geach chama a atenção para a natureza contra-intuitiva da formula “a maior felicidade do maior número”. Para uma defesa utilitária dos títulos de propriedade atuais, veja Ludwig von Mises, Socialismo (Instituto Liberal ), págs. 45-47.

[3] Veja mais adiante uma exposição detalhada do papel do governo e dos títulos de propriedade atuais; há também uma crítica mais detalhada da economia utilitarista de livre-mercado, veja págs. 201-14 a seguir.

[4] Neste sentido, a única condução correta do ideal marxista ocorreu parcialmente na Iugoslávia, onde o regime comunista transferiu a esfera socializada de produção para o controle, e consequentemente propriedade de facto, dos trabalhadores de cada fábrica.

[5] Eu devo esta constatação ao senhor Alan Milchman.

[6] Veja págs. 159-98 a seguir para uma discussão adicional sobre o papel do governo.

[7] Ou ele pode reverter-se a qualquer outro procurador de Paulo. Neste caso, Paulo pode ter vendido seu título ou seu direito sobre o relógio a algum outro indivíduo, e então, se este comprador, ou seus herdeiros, pode ser encontrado, o legítimo título de propriedade se reverte para ele.

[8] Estamos assumindo aqui que os criminosos sofrem punições que vão além da simples devolução da propriedade roubada: mas qual deveria ser esta punição ou em que teoria ela deveria ser baseada — se retaliativa, dissuasiva ou reformadora, por exemplo — será tratado a seguir.

[9] O caso complicado das crianças será tratado nas págs. 97-112.

[10] Citado em William D. Grampp, The Manchester School of Economics (Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1969), pág. 59. Também sobre compensação e escravidão veja págs. 204, 237ff a seguir

[11] Para mais sobre a necessidade geral de o libertário ser um “abolicionista”, veja págs. 259ff a seguir.

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