A Ética da Redistribuição

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Apresentação à Edição Brasileira

O socialismo foi derrotado.  A prova histórica está aí: com exceção da Coréia do Norte e Cuba, mesmo as nações da “fraternidade socialista”, que durante mais de 40 anos desafiaram as democracias ocidentais, adotaram receitas liberais para sair do marasmo crescente em que se sentiam cair.  O Muro da Vergonha foi derrubado, o império soviético ruiu como um castelo de cartas, Deng Xiaoping privatizou as comunas agrárias chinesas e abriu “novas áreas econômicas” ao capitalismo e comércio internacional.  O próprio Vietnam acolheu o McDonald’s e tudo que implica.  Partidos socialdemocráticos encheram uma parte do terreno deixado vago, enquanto nas nações mais adiantadas programas radicais de abertura, globalização e redução do intervencionismo estatal estão sendo testados.  Mesmo no Brasil, um antigo socialdemocrata e teórico da insossa Teoria da Dependência é elevado à Presidência da República, onde inaugura, ainda que hesitante e timidamente, o processo de modernização de nossa estrutura estatal, prometendo a privatização e abertura final da economia.Permanece, porém, uma retaguarda de intelectuais glasnostálgicos que se recusam a reconhecer os fatos.  Uma nova revista marxista é fundada, sob o nome adequado de Praga.  O socialismo é deveras uma praga de difícil erradicação.  Expulso definitivamente da ciência econômica por seu fracasso empiricamente comprovado, refugia-se na mística, evocando seu alto teor moral.  É com argumentos éticos que se pretende defender.  Confirma, assim, a presunção, avançada pela primeira vez por Nietzsche há mais de cem anos, de que a ideologia perversa é um substituto, um Ersatz, um medíocre sucedâneo de uma fé cristã em declínio.  Muitos outros filósofos modernos, como Hannah Arendt, Aron e Kolakowski, concordam com a tese de que o socialismo representa aquela pseudo “religião civil” que Rousseau pretendeu criar, para substituir a Igreja com o culto patriótico do estado ressacralizado.  Fundamentados nesse arquétipo inconsciente do amor cristão, secularizado como ideologia espúria, os intelectuais da Esquerda se obstinam na defesa “moral” de sua tese, como se fossem os paladinos da Justiça, dita “social”; da assistência aos pobres, às viúvas, aos desamparados, aos indigentes; da generosidade e atenção com os menos favorecidos; da igualdade de todos na utilização dos recursos que a natureza pôs à nossa disposição; e das mais altas virtudes cívicas de fraternidade coletiva.  Esses senhores hipócritas cinicamente se esquecem das calamidades que o socialismo, comumente associado ao nacionalismo agressivo, causou em nosso século horrendo de guerras e revoluções.  Bastaria lembrar a fome e o terror estalinista que teria carregado com 40 ou 50 milhões de russos; ou o cataclismo semelhante que Mao causou à população chinesa com seu “Grande salto para a Frente” e sua “Revolução Cultural”; ou o genocídio do Camboja; ou o paredón de Fidel Castro!

Não obstante, ao denunciar a “crueldade” do capitalismo e suas “injustiças”, o vício do egoísmo e da cobiça, a sede de lucros e a corrupção da riqueza, sempre atribuídas ao sistema de produção que proporcionou à humanidade, nestes últimos 200 anos, o mais extraordinário e inédito progresso que registra a história, o socialismo se legitimou e dominou a mente ocidental durante mais de cem anos.  Partindo do postulado que a propriedade privada é um roubo ou resultado da exploração do proletariado pela burguesia, os intelectuais de Esquerda tentaram, no período após a II Guerra Mundial, realizar uma verdadeira “Revolução Mundial” que por todo o planeta fizesse triunfar os seus princípios.  Foram poucos os que ousaram se levantar contra essa pretensão.  Um dos primeiros que lançou um brado de alerta no sentido que estávamos seguindo no “caminho da servidão” foi Friedrich Hayek.  Seu livrinho desse título foi publicado mesmo antes do fim do conflito mundial.  Em 1947, Hayek convocou uma reunião do que viria a se constituir como a Sociedade do Mont Pèlerin — tomando seu título do local, na Suíça, onde pela primeira vez se reunira.  Lembremos, contudo, que, numa época em que mais ardente era o confronto entre os totalitários da direita e da esquerda que se iam engalfinhar na guerra mundial, fora realizado o Colloque Walter Lippmann, convocado em Paris, 1938, em honra àquele prestigioso jornalista e ensaísta liberal americano.  Ao Colóquio e à reunião da Mont Pèlerin compareceram, naturalmente, o veterano cientista político Raymond Aron, o economista Jacques Rueff, que desempenharia papel importante na França de De Gaulle, e o barão Bertrand de Jouvenel.

Diplomata, jornalista e sociólogo que se iria distinguir, nos anos seguintes, como um dos fundadores da Mont Pèlerin, Bertrand de Jouvenel foi discípulo de Hayek e um dos mais intrépidos defensores do Liberalismo numa França que parecia irremediavelmente alinhadas com as ideias coletivistas e estatizantes.  Em 1949, em Cambridge, na Inglaterra, ele pronunciou uma série de conferências, publicadas, dois anos depois, como um livro com o título de Ethics of Redistribution. 

O título é fundamental.  Tanto quanto Hayek, o ensaísta francês apontou para o cerne do desafio socialista: o propósito de, sob especiosos argumentos éticos e autoridade estatal, redistribuíra fortuna dos membros da sociedade.  O termo “redistribuição” comporta um sentido mais amplo que Socialismo.  Os marxistas, comunistas e socialistas pretendiam simplesmente expropriar toda a atividade econômica privada, entregando-a a administração do estado, em que eles próprios seriam os dirigentes e administradores.  Na “redistribuição” eram principalmente os socialdemocratas que se empenhavam — procurando valer-se dos incentivos e estímulos que reconheciam na atividade empresarial, mas objetivando não apenas uma igualdade perante a lei e igualdade de oportunidades, mas a igualdade final de resultados, ou seja, basicamente uma igualdade de rendas.  Mesmo após o colapso do socialismo real e o desaparecimento do comunismo, ainda é esse o propósito dos partidos de Esquerda.  Jouvenel possui portanto o mérito incontestável de haver sido, com Hayek, Mises, os economistas austríacos e os liberais americanos, um dos primeiros a indigitar os métodos de convicção moral que a intelectuária esquerdizante utiliza para atingir suas metas de poder.  Nas conferências cujo texto enche as páginas de magnífico livro, Jouvenel acentua que os recursos para a estatização ou nacionalização da economia, conforme desejado pelos partidos socialistas de diversos matizes, iriam forçosamente ser encontrados na poupança da classe média; e que a retórica da “justiça social” e da fraternidade pseudocristã seria descaradamente utilizada com esse objetivo.  No correr do processo, e seguindo no caminho já previsto por Mises e Hayek, os doutrinários da Esquerda conseguiram reforçar extraordinariamente o poder do estado, centralizando-o em suas próprias mãos.  O monopólio do poder político e do poder econômico era o que esses intelectuais, políticos e agitadores, em última análise, objetivavam.  Numa obra posterior, publicada em 1972, num período em que o maior pessimismo oprimia os verdadeiros inimigos do totalitarismo na Europa — Du Pouvoir —, o eminente liberal francês procurou explicitar muitas das ideias que haviam sido lançadas por pensadores clássicos, desde o tempo de Tocqueville, sobre o que estava ocorrendo na Europa e em todo o Ocidente.  Há um certo sentido simbólico no fato de que tenha Aron falecido, de um enfarte fulminante, no momento em que, aos 78 anos de idade, acabava de depor num processo por difamação que envolvia seu amigo Jouvenel.  O ponto mais importante que se salienta é, a meu ver, o fato de que “as revoluções liquidam as fraquezas” dos regimes que derrubam e “dão à luz a força de novos sistemas de poder, mais opressivos e autoritários do que os anteriores”.  “A obra revolucionária é a restauração da monarquia absoluta”, resume Jouvenel.  A revolução democrática, em suma, estava conduzindo à “democracia totalitária” como Tocqueville previra ao analisar o Jacobinismo da Revolução Francesa.  Jouvenel foi um dos primeiros a utilizar essa expressão.  Na linha de Montesquieu, Tocqueville e Hannah Arendt, ele insiste na necessidade de descentralização do poder, como única forma, tanto política como econômica, de assegurar o triunfo da liberdade.

O início desse processo é por ele colocado em 1909/10, quando Lloyd George, o chefe do primeiro governo trabalhista britânico (Labour Party), introduziu uma legislação que criava o imposto de renda progressivo.  O imposto deixava de ser igualitário e revelava uma verdadeira intenção expropriadora.  Vale notar que outros partidos socialdemocráticos, o norueguês e o sueco, por exemplo, chegaram, nos anos 1960/70, a impor taxas superiores a 100%, o que valia a uma expropriação pura e simples, pois obrigava a vítima a vender parte de sua propriedade para pagar o imposto.  O ponto central do argumento de Jouvenel é, no entanto, a crítica, exatamente em termos éticos, da pretensão dos socialistas — especialmente dos que se iriam dizer “socialistas cristãos” e teólogos da libertação — de estarem construindo uma Cidade de Amor Fraterno.  O sociólogo francês atribui corretamente esse ideal às matutações de Rousseau e encontra suas raízes no Du Contrat Social do famoso genebrino.  Aponta, com extrema agudeza, a contradição da tese que, simultaneamente, anuncia o método para atingir uma distribuição igualitária das rendas e promete o desenvolvimento e progresso econômico.  Na realidade, Rousseau denunciava o progresso e a ciência como moralmente condenáveis.  Diríamos que Jouvenel foi um dos primeiros a descobrir que nessa contradição se encontra a fonte do mal que iria, derradeiramente, destruir a Ideologia.  Não se pode, de fato, equalizar as rendas, suprimindo o desejo egoísta de maiores lucros e avanço econômico, e, ao mesmo tempo, preconizar o rápido desenvolvimento da sociedade.  Uma comunidade comunista fraterna só pode sobreviver num meio limitado, como, por exemplo, o de um convento de monges mendicantes, em que o ganho material é absolutamente desprezado.  O ecologismo moderno, como contraponto das aspirações socialistas, bem explicita essa contradição que desperta quando, com a Revolução Industrial, o escândalo da pobreza, face aos exageros do luxo gratuito, passou a criar problemas de consciência na mente dos pensadores.

A extrema miséria é tão indecente quanto a extrema riqueza, diz Jouvenel ao analisar pormenorizadamente as perplexidades de sentido ético que incidem na consideração das desigualdades sociais.  Trata, por exemplo, do caráter francamente suntuário — revoltante para o radicalismo igualitário — de todas as atividades culturais das chamadas “classes ociosas”, particularmente as artísticas.  Rothschild pode perder seu iate, mas deve Bergson ser privado dos confortos que lhe permitem realizar sua obra filosófica?  E não foi graças aos lucros do industrial Engels, não deprimidos pelos impostos, que Marx obteve os benefícios de lazer graças aos quais pôde redigir Das Kapital?  Os valores e as satisfações têm caráter subjetivo: Jouvenel aponta para esse fato óbvio que Marx deliberadamente descurou.  A discussão dos aspectos econômicos desse subjetivismo que abala decisivamente o arrazoado socialista enche a parte central do ensaio.  O alargamento sucessivo das oportunidades de consumo — o consumo conspícuo contra o qual Veblen deblaterava — sempre esteve associado à distribuição desigual de seus meios; e foi isso que permitiu o progresso social e o avanço cultural.  Jouvenel salienta que, longe de serem utópicos, os socialistas estiveram destacadamente privados de imaginação quanto às possibilidades de transformação e avanço que a sociedade capitalista proporciona.

O sociólogo atribui o corporativismo — tema que em nosso país muito se salienta — à necessidade das classes ligadas ao estado de camuflar seus gastos.  A parte mais relevante do trabalho é, certamente, sua demonstração inequívoca de que quanto mais se procura redistribuir a fortuna, tanto mais se reforça o poder do estado e daqueles que o controlam.  Para um sociólogo que com tanta atenção debruçou-se sobre o problema do Poder, esse ponto é predominante no julgamento do redistributivismo.  Com agudeza ferina, ele assinala que as revoluções liberais clássicas, a inglesa e a americana sobretudo, procuraram justificar-se na base do princípio “não há taxação sem representação”.  Foi o princípio que, desde a Magna Carta do século XIII, restringiu o poder do soberano e assegurou o surgimento do parlamentarismo.  A função dos parlamentos consistiu, inicialmente, em votar os impostos pedidos pelo poder soberano executivo, controlando o orçamento e sua aplicação.  Ora, ocorreu o inverso: os governos democráticos que haviam prosperado a partir desse princípio fundamental não tardaram a aumentar a tributação, na crença de que quanto mais pudessem arrancar da renda privada para encher as burras do Tesouro, tanto melhor se tornaria a comunidade como um todo.  Uma minoria privilegiada se beneficiaria, invariavelmente, da generosidade pública.  O fenômeno é amplamente confirmado na história recente de nosso país: no período militar ditatorial, a Constituição vedava ao Legislativo engordar o orçamento.  Tão logo a “abertura” se registrou, os novos governantes se puseram como se de pileque, a gastar, gastar, gastar, engrossando o déficit público, acelerando a inflação e empobrecendo a massa da população em benefício próprio.  Toda a segunda parte do ensaio se dedica ao exame crítico das despesas do estado, quando este se substitui à iniciativa privada e procura arregimentar a sociedade no igualitarismo obsessivo que inspira o democratismo ideológico.

Na parte conclusiva da obra, o pensador francês denuncia com elegância, precisão e a maior simplicidade as novas atribuições a que, a título de “justiça social”, a si mesmo concede o poder governamental, fortalecido e centralizado nas democracias “sociais” modernas.  Acentua enfaticamente que, “quanto mais consideramos a questão, tanto mais claramente se evidencia que a redistribuição (da fortuna) é, de fato, muito menos uma redistribuição da renda livre dos mais ricos para os mais pobres, como imaginávamos, do que uma redistribuição do poder do indivíduo para o estado”.  Jouvenel inspira-se na intuição de Tocqueville no sentido de que o movimento revolucionário democrático, ao derrubar o feudalismo e o absolutismo monárquico, gerara, sem o saber, um verdadeiro Frankenstein: uma nova classe de democratas.  Na verdade, nosso autor é, talvez, o primeiro analista moderno a usar essa expressão “Nova Classe Dirigente” — aquilo que os russos chamam a Nomenklatura — a classe político-burocrática que, sustentada na retórica da Justiça Social e da Redistribuição, apodera-se do estado para dele se locupletar.  Ninguém melhor para julgar o fenômeno do que o próprio Trotsky, um dos principais líderes da revolução bolchevista e mentor de nosso PT, que observava: “aquele a quem está afeta a redistribuição jamais se esquecerá de si próprio…” Jouvenel conclui, magistralmente, que a consequência da redistribuição é expandir o papel do estado e, por conversão, a expansão do estado se processou por medidas de redistribuição que o “tudo pelo social” legitima.

A obra de Bertrand de Jouvenel, que o Instituto Liberal do Rio Grande do Sul oferece em tradução ao público brasileiro, constitui, assim, uma esplêndida iniciativa, por ilustrar, através do trabalho de um ilustre sociólogo francês, as consequências perversas do redistributivismo que o movimento socialista e a socialdemocracia previdencialista promoveram.

 

JOSÉ OSVALDO DE MEIRA PENNA

Presidente do IL de Brasília

Outubro de 1996

 

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