A incoerência e o perigo do partidarismo libertário

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O sufrágio é um artifício para incutir no povo a ilusão de que está no comando. Ponto. O poder de um mísero voto, numa competição em que o voto de um mendigo analfabeto tem valor numérico igual ao de um praxeologista kantiano, é tão insignificante que, a meu sentir, é indiferente se os libertários votam ou se abstêm. Além disso, o indivíduo se vê inserido num sistema do qual não pode escapar. Que culpa tem ele? Agir conforme o sistema é sua única opção, conquanto nesse caso seu agir solitário não tenha o condão de suscitar efeitos consideráveis. Que relevância mínima terá sua ação? Eu não consigo enxergar, portanto, nenhum problema no ato puro de votar.

O debate sobre se os libertários devem votar ou não me parece absolutamente inútil. Um pouco menos improfícua é a discussão ética sobre se devem os libertários engajar-se em campanhas políticas. A meu ver, não existem desvios éticos nessas condutas. Parece então que eu nem deveria estar discursando sobre isso, no entanto não é por que uma conduta é eticamente neutra que não possa ser estúpida e indicar a má-fé do agente.

Todos esses autoproclamados libertários que entram no orbe da política exalam um mau-cheiro tão forte que até os cachorros da rua levantam os focinhos desconfiados. Refiro-me àqueles ditos libertários que se candidatam a cargos políticos, que criam partidos ou trabalham em seu apoio. Trata-se de homens escorregadios, virtuosos como uma prostituta, que não veem os impostos com olhos tão exprobrantes, que transigem com um ou outro assistencialismo e dizem acreditar que uma mudança drástica da ordem social pode começar a partir da vontade daqueles que lucram enormemente com essa ordem. Eu falo, é claro, dos liberais e libertários que encabeçam o degenerado Instituto Mises Brasil, o PSL, o Livres e o NOVO e dos que se aliam a eles, como tem feito o Raphaël Lima. De quem mais eu poderia estar falando? E note o leitor que estou sendo generoso ao chamar de liberais, nome que eles reivindicam, os socialdemocratas desse elenco, que são aí a maioria.

É óbvio que eles estão de má-fé em seus atos. Nada do que se diga os dissuadirá de seus projetos políticos. Veja bem, eu não assevero que estejam fazendo algo antiético em si. Minha acidez contra eles possui motivação moral, porque eu não acredito que estejam sendo sinceros e acho que, em regra, apenas anseiam poder, fama e riqueza. Este texto, pois, não se destina a nenhum deles; quer antes falar aos liberais e libertários sinceros em sua defesa da propriedade privada.

O problema quanto à via política para reduzir o estado não reside em ser essa via antiética. Essa questão é profunda e não lhe darei espaço aqui. Mas, dadas as circunstâncias histórico-culturais em que nos encontramos, a paulatina invasão da mentalidade liberal e antiestatista no meio político é consequência inevitável de uma militância libertária bem-sucedida. O desmantelamento do estado passará por essa fase em que haverá cada vez mais políticos com discursos liberalizantes, atendendo à nova demanda popular. Os reais problemas dessa postura, que terão aqui nossa atenção, orbitam a esfera da estratégia. A via política para mudança social possui alguns problemas facilmente identificáveis. Permito-me citar aqueles que, menos acanhados, venham apresentar-se à minha mente.

Por primeiro, lembremos a frase que tem se tornado um cacoete na boca dos austrolibertários: o curso da história é definido, em última instância, por ideias. As ações humanas são guiadas, fundamentalmente, por ideias e juízos de valor. Se uma população crer em mentiras, cairá no limbo. Esse fato é sabido, ainda que inconscientemente, por todos aqueles que tentam convencer as pessoas de que sua ideologia é a correta. O objetivo de todos os ideólogos e políticos é fazer anuir o maior número possível de pessoas com suas ideias. Tendo isso em vista, torna-se imediata a compreensão de que a mera proposição da via política boicota os propósitos libertários, por contribuir para a legitimação social do sistema democrático. Ao sugerir esse caminho, está-se dando a entender para o cidadão mais obtuso que basta ele votar certo que as coisas podem melhorar. Está-se indicando que é possível obter mudanças agindo como uma ovelha burra sob os comandos do pastor. Assim, enquanto votar afigura-se um ato nulo, defender o voto é um ato de fala contrário ao objetivo do libertarianismo.

Por outros termos, ceteris paribus, dado um aumento no número de abstenções, isso por si só não contribui para a consecução dos fins libertários. Por outro lado, tudo o mais constante, um aumento na compreensão do povo sobre a desnecessidade e lesividade do estado tem peso formidável. A rigor, não importa se a pessoa vota ou não. Importa é ela ter clara consciência de que, ao dedilhar uma urna, está fazendo papel de trouxa; de que aquele processo todo, que enche nossas ruas de panfletos cafonas e martiriza nossos ouvidos com jingles detestáveis, é um processo imoral e antiético cuja imagem representativa poderia muito bem ser a da maioria esmagando a cara da minoria com um coturno enlameado; de que seu voto não fará nada mudar substancialmente e que o sistema todo deve cair para dar lugar a uma anarquia da propriedade privada. Fazer acender essa consciência é que é importante antes de tudo. O ato solitário de votar em nada favorece ou obsta essa conscientização, mas os atos de fala, em contrapartida, têm papel protuberante, uma vez que poderão incidir sobre as ações de múltiplas pessoas. Meu voto nada muda; meus discursos podem mover nações. Hitler que o diga.

Outro defeito grave que tem esse estratagema é seu potencial de corromper os agentes. É extremamente difícil resistir às tentações do Poder. Imagine o leitor que um homem dedicado à causa libertária eleja-se e lá se encontre num esgoto cheio de vermes sequiosos de fortuna. Ele receberá propostas que apenas um Swami iluminado seria capaz de recusar. Ele cederá à tentação e se tornará um deles, ou então sofrerá represálias políticas de todos os lados. O sujeito é cheio de aspirações idealistas, até o momento em que adentra o estado, quando magicamente suas ideias morrem: ou porque o sistema agora lhe sorri ou porque ele se convence de que o Leviatã é uma força contra a qual não faz sentido lutar, tamanha a sua grandeza. Casos assim não são raros.

Impõe-se também a seguinte falha: o engajamento em campanha política evoca recursos que poderiam estar sendo dignificados na promoção do libertarianismo. As ideias livre-mercadistas são tão impopulares atualmente que investir em campanhas políticas não pode ser senão uma estupidez. Em vez de usarem a riqueza para promoverem palestras, financiarem a produção de documentários, filmes, a tradução de livros e artigos e a manutenção de ambientes dedicados ao saber austrolibertário, os aspirantes a parasitas investem-na na promoção de partidos socialdemocratas cujos candidatos não alcançam uma porcentagem sequer minimamente significativa para o cargo político mais ínfimo de todos, que é a vereança. Antes fossem fracassados hasteando, íntegros, a bandeira do radicalismo, que assim pelo menos seriam honrados, como o Dr. Enéas Carneiro, que não flexibilizou suas teses em nome de votos espúrios, ou como Ron Paul, cuja campanha, pautada no discurso intransigente, muito contribuiu para a divulgação do libertarianismo; mas não, eles sucumbem ao desejo de se elegerem a qualquer custo e se apegam ao discurso socialista que extasia o povo, mais uma vez nutrindo a mentalidade socialista geral e voltando suas armas contra a propriedade privada.

Mas, quando eu olho para esse cenário funesto, um elemento se eleva sobre os outros e me deixa estupefato. Logo o exporei para o leitor, que com paciência lê estas reflexões. Antes disso precisamos recordar mais uma lição que os estudos sociais bem orientados – sob os aspectos econômico, histórico e jurídico – nos ensinam e na qual todo libertário diz crer. Sob o aspecto econômico, trata-se do fato de que o mercado pode fornecer todos os bens e serviços que o estado fornece e melhor. Isso inclui, evidentemente, a produção de segurança e a aplicação do Direito. Os libertários costumam saber – e costumam falar mesmo sem saber – que a economia funciona muito bem e até melhor sem um estado. Historicamente, já foram apresentados exemplos abundantes desse fato. Do ponto de vista jurídico, é sabido, ainda que os juristas hodiernos pareçam simplesmente apagar isso de suas cabeças ocas, que a produção jurídica prescinde de um legislador central monopolista, isto é, de um estado, porquanto pode se dar por via consuetudinária e ser imposto pelo poder social difuso, como chama Miguel Reale. Então, em tese, os libertários acreditam nisso. Contudo, quando um libertário dedica tempo e trabalho para usar o estado como meio de mudança social ou para apoiar quem o pretenda, ele está admitindo que não acredita no poder social difuso e que as pessoas realmente precisam de um pastor para manobrá-las. Ele confessa implicitamente, através dessas ações, que não acredita no poder de auto-organização do povo. Ele revela que em seu íntimo se mantém um estatista, que ainda possui um resquício de veneração ao estado, cuja figura como um líder paterno a nos proteger e guiar ele guarda no recôndito do seu inconsciente. O povo são os braços e as pernas de um corpo cuja cabeça é o estado. A anarquia e a descentralização são menos eficientes que o planejamento central. Diante disso, a ideia que me assalta e retumba em meus ouvidos é esta: libertário que defende a via política não entendeu nada. Ou más intenções o estão guiando.

A título de conclusão, reforcemos alguns apontamentos. O ato em si de votar no candidato que se tem por menos nocivo não é censurável, segundo pensa o autor deste artigo até o presente momento. Entretanto, falar em defesa desse ato, atribuindo-lhe um poder que ele pouco tem, reforça a legitimidade do estado democrático. A aparição de políticos com discursos cada vez mais liberais tende a sobrevir, como uma questão de fato, mas propugnar essa atividade enquanto libertário denota improficiência intelectual ou pelo menos alguma intenção espúria subjacente. É verdade, devo dizer, que uma campanha política libertária pode vir a contagiar o público e favorecer nosso ideal, porém somente sob a condição de estar a campanha embebida em radicalismo – o que é um fenômeno excepcional.[1] Eu acredito na intrínseca capacidade de auto-organização dos seres racionais e no poder das ações descentralizadas. A tarefa mais importante a ser feita hoje é mudar a opinião pública, com o ideal extremo de tornar todas as pessoas em respeitadoras da propriedade privada, tanto quanto possível. É fazendo isso agora que os políticos liberais do futuro ganharão popularidade e que se dará início ao paulatino desmembramento do estado.

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Notas

[1] Defender o ato do voto, genericamente, é muito mais censurável que empreender uma campanha política de teor radical. No primeiro caso, está-se reforçando a crença no sistema; no segundo, está-se divulgando o ideário. Ademais, pedir votos não é o mesmo que apoiar o ritual democrático do voto. De qualquer jeito, uma mudança substancial no Brasil não pode advir sem uma revolução, visto que praticamente todas as medidas exigidas pelo libertarianismo são inconstitucionais e ilegais.

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente artigo. Um escravo que decide cooperar para diminuir o açoitamento de seu senhor não é menos escravo, longe disso, é um escravo burro. Concordo plenamente com a conclusão, o radicalismo seria a única maneira de um “partido libertário” ajudar a causa. Por vezes acho que se libertários votassem em políticos de esquerda seria mais eficiente do que votar em liberais/libertários, a esquerda nos ajuda a mostrar como o estado é uma organização doentia e que não funciona.

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