A questão das “externalidades”

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externalidadeA ideia de externalidades é altamente intuitiva; faz sentido imaginar que as ações de um indivíduo afeta a felicidade e o bem-estar de outros.  Uma externalidade positiva ocorre quando a ação de um indivíduo beneficia pessoas que não participaram diretamente dessa troca.  Pense, por exemplo, no beneficio que um homem recebe quando uma mulher bonita passa ao seu lado na calçada.

Por outro lado, uma externalidade negativa impõe um custo sobre terceiros.  Uma fábrica poluindo o ar ou o abastecimento de água de uma cidade é um exemplo típico desse caso.  Muitos economistas utilizam a ideia de externalidades como base para fazer recomendações de políticas públicas: impor tributos ou conceder subsídios para “compensar” os custos externos.  Com efeito, várias atividades governamentais — para não dizer todas — já foram, cada uma à sua época, justificadas com base no argumento das externalidades.

Mas será que as externalidades realmente possuem algum papel significativo na ciência econômica?

Para a Escola Austríaca, a abordagem correta para a questão das externalidades é uma só: defender o cumprimento e a imposição de direitos de propriedade.  Nesta abordagem, os direitos de propriedade fornecem a resposta para os problemas gerados pelas externalidades.  Se um indivíduo gera danos físicos à propriedade de terceiros, ele é obrigado a pagar por esse estrago.  Tal abordagem, obviamente, só se aplica para os casos de externalidades em que os direitos de propriedade de um indivíduo foram infringidos.  Mises explica como a adoção do sistema de propriedade privada removeu as externalidades que afligiam o antigo sistema no qual não havia proprietário definido para as terras cultiváveis.

O exemplo extremo nos é proporcionado pelo caso, já referido anteriormente, das terras sem dono.  Se a terra não tem dono, embora o formalismo jurídico possa qualificá-la de propriedade pública, as pessoas utilizam-na sem se importar com os inconvenientes de uma exploração predatória.  Quem tiver condições de usufruir de suas vantagens — a madeira e a caça dos bosques, os peixes das extensões aquáticas e os depósitos minerais do subsolo — não se preocupará com os efeitos posteriores decorrentes do modo de exploração.  Para essas pessoas, a erosão do solo, o esgotamento dos recursos exauríveis e qualquer outra redução da possibilidade de utilização futura são custos externos, não considerados nos cálculos pessoais de receita e despesa.  Cortarão as árvores sem qualquer consideração para com as que ainda estão verdes ou para com o reflorestamento. Ao caçar e pescar não hesitarão em empregar métodos contrários à preservação das reservas de caça e pesca.

Nos primórdios da civilização, quando ainda havia abundância de terras de qualidade não inferior à já utilizada, o uso de métodos predatórios era corrente.  Quando a produtividade diminuía, o lavrador abandonava sua terra e se mudava para outro lugar. Só mais tarde, à medida que a população crescia e não havia mais disponibilidade de terra virgem de primeira classe, as pessoas começaram a considerar tais métodos predatórios um desperdício. Consolidava-se assim a instituição da propriedade privada da terra; a princípio, nas terras aráveis, e depois, passo a passo, estendendo-se aos pastos, às florestas, aos pesqueiros.

Ele também argumenta que as externalidades subsequentes “poderiam ser eliminadas por meio de uma reforma das leis relativas à responsabilidade por danos infligidos e pelo cancelamento das barreiras institucionais que impedem o pleno funcionamento do sistema de propriedade privada.”

No entanto, para que ações judiciais por danos infligidos corrijam as externalidades, o custo de restituição determinado deve ser igual à quantidade da externalidade.  Porém, mesmo se soubéssemos o preço de mercado correto a ser pago pela propriedade danificada, o que dizer sobre o valor do dano psíquico?  Nesse ponto, Mises está cometendo um erro similar ao de Ronald Coase, quando este disse que a decisão judicial não irá afetar a alocação de recursos (considerando-se que os custos de transação sejam zero).  Se, por exemplo, a poluição gerada por uma fábrica estiver destruindo um objeto de alto valor sentimental mas de baixo valor de mercado, o proprietário deste objeto pode não ter os meios para “subornar” o dono da fábrica para que este cesse a poluição.  Para este caso, o teorema de Coase não é válido.  Da mesma maneira, se uma decisão judicial levar em conta apenas o valor de mercado da propriedade destruída, a externalidade não será “corrigida” para o caso de objetos de valor sentimental.

Uma abordagem austríaca mais moderna para a questão das externalidades é mostrar que elas são impossíveis de ser calculadas em uma escala significativa.  Rothbard demonstrou que a economia do bem-estar era ilógica, pois é impossível fazer uma comparação interpessoal de utilidade.  Em outras palavras, a felicidade não pode ser mensurada em uma escala quantitativa da mesma forma que, por exemplo, a tensão elétrica pode.  Isso significa que é impossível calcular racionalmente a utilidade ganhada ou perdida em decorrência de uma intervenção governamental.

Dado que os impostos ou os subsídios propostos para corrigir uma externalidade devem necessariamente ser acompanhados de algum tipo de coerção governamental, torna-se óbvio que nem todos os envolvidos irão se beneficiar desta política. Como então podemos determinar se os resultados de tal política aumentaram ou não a utilidade social da economia?  Nenhum número pode ser calculado, nem mesmo em teoria, para estipular qual foi o benefício líquido da intervenção estatal para a sociedade, ou mesmo para determinar se o benefício líquido foi positivo ou negativo.  Só é possível haver um aumento no benefício líquido se as ações dos indivíduos forem voluntárias; um ato voluntário indica uma preferência por aquela ação escolhida em detrimento de todas as outras opções disponíveis.  A consequência lógica de tudo isso é que a afirmação de que existe uma externalidade é algo puramente arbitrário.

A análise acima sobre a natureza da utilidade é satisfatória porque traz descrédito à ideia de se utilizar as externalidades como base racional para as decisões políticas do governo.  No entanto, nem é preciso ir tão longe assim, dado que a ideia de externalidades pode ser descartada em bases puramente metodológicas.

Externalidades são definidas a partir do momento em que se toma como referencial um indivíduo que não age.  É sobre esse indivíduo passivo que recaem os custos ou os benefícios de uma ação realizada por terceiros.  Por exemplo, em uma situação em que há danos à sua propriedade, o que ocorreu é que os recursos deste indivíduo proprietário foram utilizados sem seu consentimento.  Para o caso de outras externalidades, o indivíduo que recebe o custo ou o benefício é apenas um inocente observador.  É exatamente pelo fato de os indivíduos não agirem nestas situações, que os economistas criaram uma categoria separada para descrever os efeitos sobre a utilidade deles.  Se um indivíduo age, ele demonstra preferência e espera a maximização de sua utilidade marginal; uma externalidade é o efeito de uma ação sobre a utilidade de terceiros.

Mas é justamente porque as externalidades não podem ser reveladas através da ação humana, que elas são irrelevantes para o estudo da ciência econômica.  Sendo assim, a ideia de externalidades não pode resultar em nenhum conhecimento adicional sobre economia.

Pode-se contestar dizendo que o exemplo de uma pessoa danificando a propriedade de outra demonstra uma externalidade negativa.  No entanto, é sim possível que o dono da propriedade aprove o que foi feito à sua propriedade, sendo que o único motivo de ele próprio não ter feito isso é porque ele preferiu agir de alguma outra maneira.  Ou talvez, tivesse ele tido a opção, ele teria aprovado a maneira como sua propriedade foi utilizada por esse outro indivíduo.  Você se sentiria pior caso alguém jogasse um tijolo de ouro na sua janela?

Mas e o que dizer quanto ao fato, alegado por Coase, de que as externalidades geram agentes que, por meio de barganhas e subornos, decidirão como alocar seus recursos?  A resposta a isso é uma só: do ponto de vista de um economista, isso não interessa (embora possa ser bastante interessante do ponto de vista da psicologia).  A ciência econômica se baseia em um axioma fundamental: os humanos agem.  A razão pela qual um homem escolhe uma determinada ação em detrimento de outra não é importante.  Como dito antes, a única verdade econômica que podemos retirar de uma ação é que ela demonstrou uma preferência.  O motivo dessa preferência é desconhecido e não é o escopo da ciência econômica.

Dado que um economista não estuda os motivos de uma preferência, é irrelevante determinar se uma ação individual é motivada por uma externalidade ou por outra coisa qualquer.  Por exemplo, se eu observo um indivíduo fazendo uma oferta para comprar um ornamento de jardim do vizinho, a ciência econômica vai me ajudar apenas a afirmar que esse indivíduo prefere o ornamento ao dinheiro que ele está oferecendo em troca.  Pode ser que ele esteja apenas querendo retirar aquele ornamento da vista de sua janela (pois ele o acha feio), ou pode ser que ele queira colocar o ornamento em seu próprio jardim, para que possa contemplá-lo mais de perto.  O economista não é capaz de diferenciar qual destes dois motivos gerou o ato, por isso ele deve tratar o ato como sendo o mesmo em ambos os casos.

Outra defesa possível das externalidades é que elas ilustram como a propriedade comunal é mais propensa a ser utilizada mais descuidadamente do que uma propriedade privada.  Tudo o mais constante, um indivíduo terá um incentivo para utilizar e exaurir ao máximo uma propriedade comunal enquanto ela ainda estiver utilizável.  Mas esse fenômeno pode prontamente ser explicado sem se recorrer às externalidades.  Um indivíduo não lidaria com custos de depreciação de seu capital caso utilizasse uma terra comunal, ao passo que ele arcaria integralmente com estes custos caso ela fosse propriedade privada.  Em condições normais, os custos mais baixos de se utilizar uma terra comunal fornecerão um incentivo para que ele a utilize mais negligentemente e com mais intensidade do que se ela fosse privada.  Isso é tudo o que temos de afirmar como economistas.

A teoria das externalidades é tão relevante para a ciência econômica quanto uma teoria sobre como o alinhamento dos planetas afeta o humor das pessoas.  Ambas, por definição, tentam explicar os motivos que levam um indivíduo a formar suas preferências.  Para o economista, não importa se uma pessoa vai comprar um sanduíche de presunto porque está com fome, ou porque isso irá aliviar uma inquietação provocada por ações de terceiros ou porque ela leu que tal sanduíche irá prevenir o envelhecimento.  Tudo o que interessa é que essa pessoa prefere o sanduíche aos $2 em sua mão.

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