A Teoria da Exploração do Socialismo-Comunismo

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I Pesquisa histórica da teoria da exploração

  1. Características gerais da teoria da exploração

 

  1. Luta mortal entre socialismo e capitalismo

 

Chego agora àquela teoria memorável, cuja formulação talvez [p. 241] * não seja um dos mais agradáveis acontecimentos científicos do século XIX, muito embora seja um dos mais importantes destes acontecimentos.  Situada no berço do moderno socialismo, esta teoria com este se desenvolveu e atualmente constitui o ponto crucial em torno do qual giram ataque e defesa na disputa pela organização da sociedade moderna.  [1]

 

* Os números entre colchetes correspondem è paginação original de Capital e Juro, Libertarian Press, South Holland, Illinois, 1959.  As referências de Böhm-Bawerk se baseiam nessa paginação original.

 

  1. Teoria socialista de que o juro se fundamenta na exploração

 

No entanto, essa teoria ainda não tem nome certo nem característico.  Se eu quisesse retirar tal nome de uma característica de seus principais partidários, poderia chamá-la teoria socialista do juro.  Se, conforme julgo mais conveniente, quiser fazer valer para essa denominação o conteúdo teórico da doutrina, parece-me que o melhor nome seráteoria da exploração, termo que empregarei daqui por diante.  Condensada em algumas frases, a essência da teoria pode ser caracterizada da maneira que se segue.

Todos os bens de valor são produtos do trabalho humano; do ponto de vista econômico, são exclusivamente produto do trabalho humano.  Contudo, os trabalhadores não recebem o produto integral do que sozinhos produziram, pois os capitalistas, utilizando-se do controle que, pela instituição da propriedade privada, exercem sobre indispensáveis auxiliares da produção, tomam para si parte do produto dos trabalhadores.  Fazem isso através do contrato de trabalho, por meio do qual compram a força de trabalho dos verdadeiros produtores, obrigados pela fome a concordarem, enquanto o restante do produto reverte para os capitalistas, sem qualquer esforço de sua parte.  O juro de capital consiste, pois, numa parte do produto de trabalho alheio que se obtém através da exploração da condição de oprimidos dos trabalhadores.  

 

  1. Economistas pré-socialistas influenciados pela teoria da exploração

 

  1. Adam Smith e David Ricardo, fontes ambíguas

 

O surgimento dessa doutrina, que há longo tempo já vinha sendo preparado, tornou-se quase inevitável devido à singular direção assumida pela doutrina econômica do valor dos bens desde Smith, e, mais ainda, depois de Ricardo.  Ensinava-se e acreditava-se, generalizadamente, que o valor de todos ou da maioria dos bens econômicos se medisse pela quantidade de trabalho que tinham incorporado, e que essa era a causa do valor dos bens.  Assim, não foi possível evitar que, cedo ou tarde, se começasse a indagar: por que então o trabalhador não detém todo o valor que nasceu do seu trabalho?  E, quando era feita essa pergunta, a única resposta condizente com o espírito daquela doutrina era: uma parte da sociedade, os capitalistas, apodera-se de parte do valor dos bens que resultam unicamente do trabalho da outra parte da sociedade, os trabalhadores.

Smith e Ricardo, criadores dessa teoria do valor do trabalho, como vimos, não forneceram tal resposta.  Vários de seus primeiros seguidores, prudentemente, também evitaram respondê-la.  Enfatizaram que o trabalho tem o poder de criar valor; na concepção geral da economia, no entanto, seguiram fielmente a trilha de seus mestres.  Assim agiram os economistas alemães Soden e Lotz.  Mas a resposta estava imanente, como consequência lógica, na sua doutrina.  Bastariam uma condição adequada e um discípulo mais consequente para que ela emergisse.  Smith e Ricardo podem, pois, ser considerados padrinhos involuntários da teoria da exploração.  Também os seguidores dessa teoria os encaram como tal. Eles, e praticamente só eles, são também considerados, pelos mais dogmáticos socialistas, com o respeito devido aos descobridores da “verdadeira” lei do valor.  A única acusação que lhes fazem é a de não terem chegado à consequência lógica, que os teria habilitado a coroar sua própria obra com a teoria da exploração.

 

  1. Outros precursores da teoria da exploração

 

Quem gosta de pesquisar árvores genealógicas, não apenas de famílias mas também de teorias, poderá encontrar, já em séculos passados, muitas manifestações que se adaptam bem à escola de pensamento da teoria da exploração.  Sem falar nos canonistas, que concordam mais por acaso com as conclusões dessa teoria, cito Locke, que em determinada passagem aponta com muita ênfase o trabalho como fonte de todos os bens [2] e, em outra ocasião, apresenta o juro como fruto de trabalho alheio [3]; James Stuart, que se move, embora com menor ênfase, nesta mesma linha de pensamento; Sonnenfels, que eventualmente designa os capitalistas como a classe daqueles “que não trabalham e se alimentam do suor das classes trabalhadoras”; e Busch, que também considera o juro de capital (é verdade que ele só trata do juro estipulado para empréstimos) [p. 243] o “ganho de propriedade obtido por indústria alheia” [5].  Provavelmente esses exemplos poderiam ser multiplicados se fizéssemos uma pesquisa ativa na literatura mais antiga.

 

  1. Fontes de teorias da exploração mais explícitas e mais agressivas

 

Contudo, o nascimento da teoria da exploração como doutrina consciente e coerente só se pode situar num período posterior.  Antes dele aconteceram mais dois fatos preparatórios.  Primeiro, como foi mencionado acima, o desenvolvimento e popularização da teoria do valor, de Ricardo, que forneceu a base teórica na qual a teoria da exploração pôde crescer naturalmente; e, depois, o avanço vitorioso de uma produção capitalista em massa, que, criando e expondo uma abissal oposição entre capital e trabalho, propôs simultaneamente a questão do juro de capital sem trabalho como um dos grandes problemas sociais.

Sob tais influências, parece que nossa era está madura, desde os anos vinte do século XIX, para a elaboração sistemática da teoria da exploração.  Entre os primeiros teóricos que a fundamentaram mais amplamente (deixo de lado, nessa história da teoria, os “comunistas práticos” cujos esforços naturalmente se enraizavam em ideias semelhantes) temos William Thompson na Inglaterra e Sismondi na França.

 

  1. William Thompson e a exploração dos trabalhadores

 

Thompson [6] elaborou de maneira breve mas notavelmente clara e perspicaz os princípios básicos da teoria da exploração. Começa com a premissa teórica de que o trabalho é a fonte de todo valor, e chega à conclusão prática de que os produtores devem receber todo o lucro do que produziram.  Com relação a essa exigência do lucro total do trabalho, constata que os trabalhadores, na verdade, se limitam a receber um salário que mal cobre suas necessidades de sobrevivência, enquanto a mais-valia (valor adicional, superávit), que pode ser provocada com auxílio de maquinaria e de capital adicional com a mesma quantidade de trabalho, é auferida pelos capitalistas, que juntaram capital e o adiantaram aos trabalhadores.  Por isso, renda de terras e juro de capital representam descontos no produto total do trabalho a que os trabalhadores teriam direito [7].

Há uma cisão nos pontos de vista quanto à medida da influência de Thompson sobre a posterior evolução da literatura. Suas pistas visíveis são muito poucas.  Na literatura especializada inglesa, a orientação de Thompson teve pouco eco [8], e os mais conhecidos socialistas da literatura especializada francesa e alemã pelo menos externamente não se ligaram a ele.  É difícil decidir se a ideia que Anton Menger [9] recentemente defendeu com entusiasmo, de que Marx e Rodbertus tiraram suas mais importantes teorias socialistas de modelos ingleses e franceses antigos, especialmente de Thompson, tem fundamento.  Não considero essa ideia muito convincente.  Quando uma doutrina, por assim dizer, está “no ar”, nem sempre se deve considerar “empréstimo” a concepção do mesmo pensamento: a originalidade de um escritor não se fundamenta nem se prejudica por ele ter expressado alguns anos antes ou depois um pensamento desses.  Ao contrário, sua força criadora prova-se no fato de ele conseguir [p. 244] fazer acréscimos originais à ideia, assim construindo uma doutrina viva e coerente.  Aliás, em assuntos científicos — embora haja exceções — muitas vezes a manifestação intuitiva de uma ideia é muito menos importante e meritória do que a fundamentação e execução bem alicerçadas dessa ideia.  Lembro a conhecida relação de Darwin para com a premonição de Goethe quanto à teoria evolucionista.  Ou, em nosso campo, recordo Adam Smith, que, das sementes do pensamento de Locke, no sentido de que trabalho é fonte de toda riqueza, desenvolveu seu famoso “sistema industrial”.  Em nosso caso parece-me que Rodbertus e Marx conceberam e desenvolveram com tamanha originalidade a ideia da exploração, que, pessoalmente, não os pretendo apresentar como “emprestadores”, nem reciprocamente nem com relação aos antecessores [10].

 

  1. Sismondi e a exploração dos trabalhadores

 

Em contrapartida, é indubitavelmente grande e abrangente a influência de Sismondi.

Quando cito Sismondi como representante da teoria da exploração, faço-o com certa reserva.  É que Sismondi elaborou uma doutrina que contém em si todos os traços essenciais dá teoria da exploração, menos um: ele não pronuncia uma sentença de repúdio ao juro de capital.  Ele é, simplesmente, o escritor de um período de transição: no fundo, devotado à causa da nova teoria, ainda não rompera por inteiro com a teoria antiga, e por isso recuava diante de certas consequências extremas da nova posição.

A grande e influente obra de Sismondi, que interessa principalmente à nossa questão, são seus Nouveaux príncipes d’économie politique [11].  Sismondi nela se aproxima de Adam Smith.  Aceita a tese deste de que o trabalho é a única fonte de toda riqueza [12], concordando entusiasticamente com ela (p. 51).  Censura o fato de que frequentemente se considerem as três formas de ganho — renda, ganho de capital e salário — como três fontes diversas, relacionadas a terra, ao capital e ao trabalho.  Na verdade, segundo ele, todo ganho vem só do trabalho, e aquelas três categorias seriam maneiras diferentes de se participar dos frutos do trabalho humano (p. 85).  O trabalhador, que pelo seu trabalho cria todos os bens, não conseguiu, “em nosso estágio de civilização”, manter a propriedade sobre os meios necessários de produção. De um lado, a terra é habitualmente propriedade privada de outra pessoa, que, como recompensa ao trabalhador pela colaboração da “força produtiva”, toma para si uma parte dos frutos do trabalho; essa parcela — que fica para o proprietário — chama-se lucro da terra.  De outro lado, o trabalhador produtivo habitualmente não tem suficiente provisão de alimentos dos quais pudesse viver durante a execução de seu trabalho.  Tampouco possui a matéria bruta necessária à produção ou os — não raro dispendiosos — instrumentos e máquinas.  O rico, que possui todas essas coisas, [p. 245] obtêm assim certo controle sobre o trabalho do pobre: sem participar ele mesmo do trabalho, toma a si, como recompensa pelas vantagens que oferece ao pobre, a melhor parte dos frutos do trabalho (“la part la plus importante de son travail”).  Essa parte é o ganho de capital (pp. 86 e 87).  Assim, como decorrência da organização da sociedade, a riqueza adquiriu a capacidade de multiplicar-se através do trabalho alheio (p. 82).

Embora no trabalho diário o trabalhador produza bem mais do que sua necessidade de cada dia, depois da divisão com donos das terras e capitalistas raramente lhe sobra mais do que um sustento mínimo irrecusável que recebe em forma de salário.  A razão disso está na dependência em que ele se encontra em relação ao empresário, dono do capital.  O trabalhador precisa muito mais do seu sustento do que o empresário precisa do trabalho dele.  O trabalhador necessita do salário para viver, enquanto o empresário apenas necessita do trabalho alheio para obter lucro.  Assim, geralmente a barganha desfavorece o trabalhador: este precisa contentar-se com um salário insignificante, enquanto a parte do leão nas vantagens decorrentes da produtividade crescente fica nas mãos do empresário (p. 91 ss.).

Quem tiver seguido até aqui as ideias de Sismondi, lendo entre [p. 246] outras a frase que diz que “os ricos devoram o produto do trabalho alheio” (p. 81), deve esperar que Sismondi finalmente declare, e repudie, o juro de capital como um ganho extorsivo, que deve ser condenado.  Mas Sismondi não tira essa conclusão de suas ideias.  Ao contrário, num inesperado volteio, em algumas expressões vagas e obscuras, favorece o juro de capital, e o apresenta como coisa justa. Primeiramente, diz que o dono da terra adquiriu, pelo trabalho original de tornar a terra cultivável, ou pela ocupação de terras sem dono, um direito sobre o lucro da terra (p. 110), Analogamente, atribui ao dono do capital o direito ao juro do capital, que se fundamenta no mesmo “trabalho original” graças ao qual esse capital existe (p. 111).  Esses dois tipos de renda têm uma característica comum, qual seja a de constituírem, ambos, renda de propriedade, e podem, pois, ser contrastados com a renda advinda do trabalho.  Mesmo assim, Sismondi procura atribuir-lhes uma boa reputação, demonstrando que eles também devem sua origem ao trabalho, sendo a única diferença decorrente do fato de que sua honrosa origem data de um período anterior.  Os trabalhadores ganham anualmente um novo direito de renda por novo trabalho, enquanto os proprietários, em época anterior, obtiveram, através de um trabalho inicial, um direito permanente que possibilita um trabalho anual cada vez mais vantajoso (p. 112) [13].  “Cada um recebe sua parte nos ganhos nacionais unicamente na medida em que ele próprio, ou seu representante, colaborou, ou colabora, para a existência de tais ganhos”, conclui ele.  Naturalmente não diz se, nem como, essa afirmação pode-se harmonizar com a anterior de que o juro de capital é retirado dos frutos do trabalho alheio.

As conclusões que Sismondi não havia ousado tirar da sua teoria foram logo tiradas por outros, e de maneira muito decidida.  Ele é a ponte entre Smith e Ricardo e as subsequentes doutrinas do socialismo e comunismo.  Estes, com sua teoria de valores, tinham proporcionado o surgimento da teoria da exploração, mas ainda não a haviam elaborado. Sismondi virtualmente levara a efeito a teoria da exploração, sem, contudo, orientá-la para o terreno político-social.  A ele segue-se aquela força maciça que, sob o rótulo de socialismo e comunismo, continua a sequência lógica da antiga doutrina de valores com todas as suas consequências teóricas e práticas, e chega finalmente à conclusão de que “juro é exploração, e, portanto, deve ser eliminado”.

 

  1. Socialistas

 

Para mim não haveria interesse teórico em fazer excertos da volumosa literatura socialista do século XIX em todas as passagens em que ela anuncia a teoria da exploração.  Eu teria de cansar meu leitor com grande quantidade de paralelos que, quase sem variação de vocábulos, resultariam numa longa monotonia, e que na sua maior parte se contentam em afirmar as teses cardinais da teoria da exploração, sem acrescentar, para sua comprovação, mais do que referências à autoridade de Ricardo, ou alguns lugares-comuns.  A maioria dos socialistas “científicos” exercitou a sua força intelectual muito mais no ataque cáustico às teorias adversárias do que na fundamentação de suas próprias teorias.

Por isso, contento-me com mencionar, na massa de autores com tendências socialistas, alguns poucos homens que se tornaram importantes para a evolução ou divulgação da teoria em questão.

 

  1. Proudhon e a exploração dos trabalhadores

 

Entre esses autores destaca-se P. J. Proudhon, autor de Contradictions économiques, graças à clareza de seus pontos de vista e à sua dialética brilhante, qualidades que fizeram dele o mais eficaz apóstolo da teoria da exploração na França. Como nos interessa mais o conteúdo do que a forma, deixo de lado a reprodução detalhada de exemplos do estilo de Proudhon, contentando-me em resumir em poucas frases a essência de sua doutrina.  Há de se notar imediatamente que, excetuando algumas singularidades externas, ela se distingue muito pouco do esquema geral inicial da teoria da exploração.

Para começar, Proudhon considera certo que o trabalho cria todo valor.  Por isso o trabalhador tem um direito natural de propriedade de seu produto integral.  No contrato de salário ele cede esse direito ao dono do capital, em troca de um salário pelo trabalho, salário este que é menor do que o produto cedido.  Com isso ele é logrado, uma vez que, não conhecendo seu direito natural, não sabe a magnitude da concessão que fez, nem o sentido do contrato que o proprietário firma com ele.  E este último se utiliza do engano e da surpresa, para não dizer mesmo que pratica dolo e fraude (“erreur et surprise, si même on ne doit dire dol et fraude“) [p. 247].

Acontece, assim, que hoje em dia o trabalhador não consegue comprar seu próprio produto.  No mercado seu produto custa mais do que a quantia que ele recebeu como salário; custa mais em função da soma de toda sorte de ganhos ligados ao direito de propriedade que, agora, sob diversas denominações, tais como lucro, juro, interesse, renda, arrendamento, dízimo etc…, constituem uma soma de “tributos” (aubaines) que são impostos sobre o trabalho.  O que, por exemplo, 20 milhões de trabalhadores produziram por um salário anual de 20 bilhões de francos, custa, por causa desses ganhos, que passam a ser incluídos no custo, 25 bilhões.  Mas isso significa “que os trabalhadores que, para poder viver, são forçados a comprar de volta esses mesmos produtos, têm de pagar cinco pelo mesmo que produziram por um salário de quatro, ou que terão de jejuar um em cada cinco dias”.  Assim o juro é um imposto adicional sobre o trabalho, uma retenção (retenue) no salário de trabalho [14].  

 

  1. Rodbertus e a exploração dos trabalhadores

 

Equiparável a Proudhon por sua pureza de intenções, mas muito superior a ele em termos de profundidade de pensamentos e de ponderação, embora inferior ao ardente francês no que concerne à exposição das ideias, é o alemão Rodbertus.  Para o historiador de economia, ele é a mais importante personalidade aqui citada.  Por longo tempo desconheceu-se a sua importância científica, e, por estranho que pareça, isso deveu-se precisamente ao fato de seu trabalho ser tão científico.  Por não se dirigir, como outros, diretamente ao povo, por se restringir particularmente à pesquisa teórica, por ser comedido e reservado em relação às sugestões práticas voltadas para o interesse direto das massas, por longo tempo foi bem menos famoso do que homens menos importantes que pegavam em segunda mão suas ideias e as apresentavam numa forma agradável às massas.  Só mais recentemente Rodbertus, esse socialista sedutor, foi tratado com justiça e reconhecido como pai espiritual do moderno socialismo científico.  Em lugar das acaloradas agressões e antíteses retóricas que a massa dos socialistas tanto gosta de exibir, Rodbertus deixou uma doutrina profunda, de pensamento honesto, sobre a distribuição dos bens.  Essa doutrina, embora enganada em muitos pontos, tem suficiente valor para assegurar ao seu autor uma importância permanente entre os técnicos da economia.

Reservo-me o direito de voltar, mais adiante, detidamente à sua fórmula de teoria da exploração.  No momento, falarei de dois seguidores seus, que se distinguem um do outro tanto quanto de seu antecessor Rodbertus.

 

  1. Ferdinand Lassalle e a exploração dos trabalhadores

 

Um dos seguidores de Rodbertus é Ferdinand Lassalle, o mais eloquente — embora, em conteúdo, menos brilhante — dos líderes socialistas.  Menciono-o aqui apenas pelo muito que influiu, graças à sua brilhante eloquência, na difusão da teoria da exploração.  No entanto, sua contribuição para o desenvolvimento dessa teoria é nula.  Por isso não [p. 248] é necessário reproduzir, através de citação de textos, sua doutrina, que é a de seus antecessores.  Contento-me em indicar, através de notas de rodapé, algumas das passagens mais marcantes de sua obra [15].

 

  1. Aceitação da teoria da exploração não restrita aos socialistas

 

  1. Ideias de Guth sobre a exploração dos trabalhadores

 

Embora a teoria da exploração tenha sido desenvolvida especialmente por teóricos socialistas, as ideias que lhes eram próprias, encontraram aceitação em outros meios intelectuais, em diversos graus e maneiras.

Muitos aceitam por completo a teoria da exploração, ou quando muito recusam apenas suas aplicações práticas mais extremas.  Nessa posição encontra-se, por exemplo, B. Guth [16].  Ele aceita integralmente todos os princípios essenciais dos socialistas.  Para ele, o trabalho é a única fonte de valor.  O lucro nasce porque, em função da concorrência desfavorável, o salário do trabalho fica sempre aquém do seu produto.  Aliás, Guth não receia empregar para esse fato a expressão áspera “exploração”, como termo técnico.  Mas, ao final, esquiva-se das consequências práticas dessa doutrina, através de algumas cláusulas de tergiversação: “Longe de nós querer tachar a exploração do trabalhador — considerada como fonte do lucro original — de ação injustificada do ponto de vista legal: até certo ponto, ela se fundamenta num acordo livre entre o empregador e o empregado, realizado, é verdade, em condições habitualmente desfavoráveis a este último.” O sacrifício realizado pelo trabalhador “explorado” é antes um “adiantamento a ser recompensado”.  Isto porque a multiplicação do capital aumenta sempre mais a produtividade do trabalho; consequentemente, os produtos do trabalho se tornam mais baratos, e o trabalhador pode comprar mais com seu salário: seu salário concreto, portanto, também sobe.  Por causa da “maior procura, cresce o campo de trabalho do trabalhador, fazendo subir seu salário em dinheiro”.  A “exploração” assemelha-se, pois, a um emprego de capital que, através de seu efeito indireto, aumenta em porcentagens crescentes o lucro do trabalhador [17].

 

  1. Ideias de Dühring sobre a exploração dos trabalhadores

 

Também Dühring, em sua teoria do juro, se restringe à visão socialista… “O caráter do ganho de capital é uma usurpação da parte principal do produto da força do trabalho... O aumento da produtividade do trabalho e a diminuição do tempo despendido nesse trabalho [p. 249] são efeitos do aperfeiçoamento e da expansão dos meios de produção; mas o fato de que os obstáculos e dificuldades da produção se reduzem, acrescido ao fato de que o trabalho, não especializado se torna mais produtivo pela aquisição de novas técnicas, não dá ao instrumento inanimado o direito de absorver o mínimo ganho além daquele que é exigido para a sua reprodução.  O ganho de capital, portanto, não é conceito que se possa desenvolver na base de afirmações relativas unicamente à produção, ou de afirmações que se encaixem no esquema de um determinado sistema econômico.  É uma forma de apropriação, e um resultado das condições de distribuição” [18].

Um segundo grupo de escritores aceita ecleticamente as ideias da teoria da exploração incorporando-as a seus outros pontos de vista sobre o problema do juro.  Assim fazem, por exemplo, John Stuart Mill e Schaffle. *

Finalmente, outros ainda, se não se impressionaram com os textos socialistas a ponto de aceitarem todo o seu corpo de doutrinas, mesmo assim incorporaram isoladamente alguns dos seus traços importantes.  Parece-me que o mais importante acontecimento nesse campo foi o fato de um renomado grupo de professores universitários alemães, os “socialistas de cátedra”, terem revivido o velho conceito de que o trabalho é a única fonte de todo valor, a única força “criadora de valor”.

 

*No original, comentados no cap. XIII (N. da T.).  

 

  1. O princípio essencial da teoria: O trabalho é a única fonte de todo valor

 

É estranho o destino que teve esse conceito, cuja aceitação ou rejeição é de enorme importância para se julgarem os mais relevantes fenômenos da economia.  Ele surgiu originalmente na economia inglesa, e, nos primeiros decênios após a publicação da teoria de Smith, foi juntamente com ela divulgado.  Mais tarde, por influência dos ensinamentos de Say, que elaborou a teoria dos três fatores da produção — natureza, trabalho, capital -, e depois por influência de Hermann e Senior, o conceito caiu em descrédito entre a maioria dos economistas, mesmo da escola inglesa.  Por algum tempo só foi cultivado pelo grupo dos intelectuais socialistas.  Quando os intelectuais socialistas alemães o retomaram, retirando-o dos textos de Proudhon, Rodbertus e Marx, esse conceito voltou a receber firme apoio dos economistas acadêmicos.  Parece mesmo que, sustentado pela boa reputação dos líderes daquela escola alemã, ele poderá ressurgir vitorioso na literatura de todas as nações [19].

Passo agora ao exame crítico da teoria da exploração: veremos se ela é ou não desejável.

 

 

NOTAS

 

[1] Escrito em 1884 e mantido nas edições de 1900, 1914 e 1921.

[2] Civil Government (Vol. II. cap. V. § 40).  O trecho que reproduzo aqui, segundo tradução de Roscher em seu trabalho História da economia inglesa, diz o seguinte: “Também não causa tanta estranheza, como poderia parecer à primeira vista, o fato de que a propriedade do trabalho consiga superar a comunidade da terra.  Pois, com efeito, é o trabalho que dá a cada coisa um valor diverso.  Pensemos na diferença entre um acre de terra plantado com tabaco ou açúcar.  semeado com trigo ou cevada, e um acre da mesma terra não cultivado, e veremos que a melhoria introduzida pelo trabalho constitui a maior parte do valor.  Penso que é uma avaliação muito moderada dizer que  9/10 dos produtos do solo úteis à vida humana provêm do trabalho: sim, se  quisermos avaliar corretamente as coisas conforme as usamos, calculando-lhes os vários gastos — o que nelas vem da natureza e o que se deve ao trabalho — veremos que em geral 99 por cento se devem inteiramente ao trabalho”.

[3] Considerations of the consequences of the lowering of interest etc. 1691 (p. 24)

[4] Handlunqswissenschaft, 2. ed. (p. 430).

[5] Geldumlouf (Cap. III, §26).

[6] An Inquiry into the Principles of the Distribution of Wealth most Conducive to Human Happiness, 1824.  Sobre Thompson e seus antecessores imediatos Godwin e Hall, ver Anton Menger, Das Recht auf den vollen Arbeitsertrag.  Stuttgart 1866, § § 3-5, e Held, Zwei Bücher zur sozialen Geschichte Enqlands, Leipzig, 1881 (pp. 89ss. re378ss.).

[7] Cf.  Anton Menger, op. cit, § 5.

[8] Dois trabalhos de Hodgskin pertencem a este mesmo período e orientação: um é o seu pouco conhecido Popular Political Economy; o outro, um texto publicado anonimamente com o significativo título Labour Defended againtst the Claims of Capital.  Eu próprio não tive acesso aos livros e só tomei conhecimento deles através de citações encontradas em outros autores ingleses da mesma época.  Especialmente Read e Scrope os citam muitas vezes, polemizando contra seu conteúdo.  O título completo do texto anônimo é: Labour Defended against the Claims of Capital: or the Unproductiveness of Capital Proved, by a labourer, London, 1825.  Deduzo que Hodgskin seja o autor desse trabalho por causa de um, comentário de Scrope na p. 150 do seu Principies of Political Economy, Londres, 1833.  Reproduzo algumas passagens características, segundo citações de Read: “All the benefíts attributed to capital arise from co-existing and skilled labor” (Introdução).  Mais adiante admite-se que, com a ajuda de instrumentos e máquinas, se podem produzir mais e melhores produtos do que sem eles: mas segue-se a seguinte observação: “But the question then occurs what produces instruments and machines, and in what degree do they aid production independem of the labourer, so that the owners of them are entitled to by far the greater part of the whole produce of the country?  Are they or are they not the produce of labour?  Do they or do they not constitute an efficient means of production separate from labour?  Are they or are they not so much inert, decaying, and dead matter, of no utility whatever possessing no productive power whatever, but as they are guide directed and applied by skillful hands?  (p. 14).

[9] Cf. Anton Menger op. cit. Prefácio (p. V. e p. 53. 79 e ss. 97 e muitas outras).

[10] A. Wagner expressou-se de forma semelhante em Grundlegung.  3a ed. (Parte 1 p. 37. Nota 1. e  Parte II p. 281).

[11] 1 ed. 1819. 2a ed. Paris, 1827.  A citação é tirada da última edição.  Na obra anterior de Sismondi, ainda muito próxima da doutrina clássica. De la richesse commerciale, 1803, encontra-se entre outros um comentário interessante  de que o emprego de cada trabalhador produtivo envolve uma troca de bens presentes por bens futuros.  Os bens presentes são os que são dados ao trabalhador como salário, em troca dos bens futuros, ou seja, aqueles que ele receberá no futuro com o produto do seu trabalho (op. cit., p. 53).  Uma citação de Solz Beiträge zur Geschichte und Kritik der Lohnfondstheorie, 1905 (p. 65) chamou minha atenção para essa expressão precoce de um pensamento que muitas décadas depois usei mais amplamente em minha teoria do juro (cf.  p.  ex.  minha Positive Theorie.  3. ed. pp. 503 ss e 524; 4. ed. ,pp. 374ss. e391).

[12] Princípio que, aliás, nem sempre foi coerentemente sustentado por Smith.  Além de labor, ele menciona com certa frequência “Terra” e “capital” como fontes de bens.

[13] Se quisermos, poderemos ver nessas palavras uma expressão muito resumida da teoria do trabalho de James Mill.

[14] Cf. várias passagens dos numerosos textos de Proudhon.  Especialmente “Qu’est-ce que la propriété” (1840; na ed. Paris,  1849. p. 162);Philosophie der Not (em tradução alemã de Wilhelm Jordan, 2. ed.) (p. 62, 287 ss): ”Verteidigungsrede vor den Assisen von Besançon”. pronunciado a 3 de fevereiro de 1842 (ed. Obras completas.  Paris. 1868. vol. II).  Sobre Proudhon,  ver a abrangente obra de Diehl, P. J.Proudhon, seine Lehre und sein Leben  em três seções, Jena.  1888- 1896.

[15] Entre seus muitos textos, é Herr Bastiat-Schulze von Delitzsch der okonomische Julian  oder Kapital und Arbeit (Berlim, 1864), aquele em que Lassalle expressa mais resumidamente suas opiniões sobre o problema do juro e ao mesmo tempo apresenta com maior brilhantismo seu gênio agitador.  Trechos principais: o trabalho é “fonte e gerador de todos os valores” (p. 83. 122, 147).  O trabalhador, porem, não recebe todo o valor, e sim apenas o preço de mercado do trabalho, encarado como mercadoria, que é o equivalente de seu custo de produção, ou seja, a sua mera subsistência (p. 186 ss).  Todo o excedente recai sobre o capital (p. 194).  Por isso, o lucro é uma dedução do produto do trabalho, que pertence ao trabalhador (p. 125), e de forma muito drástica (p. 97).  Contra a doutrina da produtividade do capital, ver p. 21 ss. Contra a teoria da abstinência, ver p. 82 ss, e especialmente 110 ss. Cf. também os demais escritos de Lassalle.

[16] Die Lehre vom Einkommen in diesen Gesamtzweigen, 1869.  Cito pela 2 ed. de 1878.

[17] Op. cit. (p. 109 ss. Cf. também p. 271ss).

[18] Kursus der National-und Sozialökonomie, Berlim 1873, p. 183.  Um pouco adiante (p. 185), ele declara, em visível reminiscência do “droitd’aubaine” de Proudhon, que o lucro é um “imposto” arrecadado para compensar a renúncia ao poder econômico.  A taxa de lucro representa a percentagem desse imposto.

[19] Escrito em 1884.  Desde então parece-me ter havido a tendência inversa.  É verdade que, por uns poucos anos, a teoria do valor do trabalho, juntamente com a divulgação das ideias socialistas, ganhou terreno, mas recentemente ela o perdeu nos meios teóricos de todos os países, especialmente em favor da teoria, cada vez mais difundida, do “uso marginal”.

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Eugen von Böhm-Bawerk
Eugen von Böhm-Bawerk foi um economista austríaco da Universidade de Viena e ministro das finanças. Desvendou a moderna teoria intertemporal das taxas de juros em sua obra Capital and Interest. Em seu segundo livro, The Positive Theory of Capital, ele continuou seus estudos sobre a acumulação e a influência do capital, argumentando que há um período médio de produção em todos os processos produtivos. Sua ênfase na importância de se pensar claramente sobre taxas de juros e sua natureza intertemporal alterou para sempre a teoria econômica. Böhm-Bawerk tornou-se famoso por ser o primeiro economista a refutar de forma completa e sistemática a teoria da mais-valia e da exploração capitalista.

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