Ação Humana – Um Tratado de Economia

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Capitulo XXXVI. A crise do intervencionismo

1 – Os frutos do intervencionismo

 

As políticas intervencionistas praticadas durante muitas décadas pelos governos do Ocidente capitalista acabaram produzindo os efeitos que os economistas haviam previsto. Produziram guerras, revoluções, tiranos opressores do povo, depressões econômicas, desemprego em massa, consumo de capital, fome.

Não foram, entretanto, esses eventos que levaram o intervencionismo a entrar em crise. Os doutrinadores do intervencionismo e seus seguidores alegam que todas essas consequências indesejáveis são características inevitáveis do capitalismo. Para eles, são precisamente esses desastres que demonstram claramente a necessidade de intensificar o intervencionismo. Os fracassos das políticas intervencionistas não prejudicam em nada a popularidade da doutrina que lhes serve de base. Ao contrário, ela fica ainda mais fortalecida em virtude da interpretação dada aos fatos. Como a experiência histórica não basta para que se refute uma teoria econômica falsa, os propagandistas do intervencionismo puderam prosseguir na sua faina, apesar do mal que já haviam causado.

Apesar disso, a era do intervencionismo está chegando ao fim. O intervencionismo já exauriu todas as suas potencialidades e deverá desaparecer.

 

2 – A exaustão do fundo de reserva

 

A ideia subjacente a todas as políticas intervencionistas é a de que a renda e a fortuna da parcela mais rica da população é um fundo do qual pode ser extraído o necessário para melhorar a situação dos mais carentes. A essência da política intervencionista é tirar de um grupo para dar a outro. Consiste em confiscar e distribuir. Em última análise, qualquer medida que exproprie os ricos em benefício dos pobres é considerada justificável.

Na esfera fiscal, o imposto progressivo sobre a renda e sobre o patrimônio é a mais típica manifestação dessa doutrina. Tributar os ricos e gastar os recursos assim obtidos para melhorar a situação dos mais pobres é o princípio adotado pelos orçamentos públicos modernos. No campo das relações industriais, a redução da jornada de trabalho, o aumento dos salários e uma série de outras medidas são recomendadas no pressuposto de que favorecem o empregado às custas do empregador. Atualmente, todas as questões políticas e sociais são abordadas tendo-se em vista esse princípio.

Os métodos utilizados na gestão das empresas estatais nos brindam com um exemplo bastante ilustrativo. Essas empresas frequentemente são um fracasso financeiro; sua contabilidade demonstra a existência de perdas que terão de ser suportadas pelo erário público. Pouco importa se os déficits são devidos à notória ineficiência da gestão pública ou se são devidos, pelo menos em parte, aos preços ou tarifas com que suas mercadorias ou serviços são vendidos ao público. O que importa é que os contribuintes terão de cobrir esses déficits. Os intervencionistas concordam plenamente com essa solução; rejeitam veementemente as duas outras soluções possíveis: vender as empresas para empresários privados ou aumentar os preços cobrados ao público de maneira a eliminar o déficit. A primeira dessas propostas é considerada evidentemente reacionária, porque contraria a tendência histórica, no sentido de uma cada vez maior socialização dos meios de produção. A segunda é considerada antissocial, porque onera as massas consumidoras. É mais justo fazer com que os contribuintes, isto é, os cidadãos mais ricos, suportem esse ônus. Sua capacidade de pagar é maior do que a do cidadão comum, que se utiliza dos trens, do metrô, dos ônibus pertencentes às empresas estatais. Pretender que essas utilidades públicas sejam economicamente autossuficientes, dizem os intervencionistas, é uma relíquia das ideias retrógadas de economistas ortodoxos. Acabariam querendo, concluem eles, que as estradas de rodagem e as escolas públicas também fossem autossuficientes.

Não é necessário argumentar com os que defendem essa política de déficit. É óbvio que o recurso ao princípio da “capacidade de pagar” depende de que ainda existam rendas e fortunas suscetíveis de serem taxadas. É inútil tentar recorrer a esse método quando os fundos já foram exauridos por impostos e por outras medidas intervencionistas.

É esta precisamente a situação hoje na maior parte dos países europeus. Os Estados Unidos ainda não foram tão longe; mas se a atual tendência de suas políticas econômicas não for logo modificada, em poucos anos estará na mesma situação.

Para clareza da discussão, deixemos de lado as outras consequências inevitáveis que adviriam da completa adoção do princípio da “capacidade de pagar”, e concentremo-nos nos seus aspectos financeiros.

O intervencionismo, ao preconizar gastos públicos adicionais, não tem consciência do fato de que os fundos disponíveis são limitados. Não percebe que aumentar a despesa em um departamento implica em restringi-la em outro departamento. Imagina que os recursos sejam abundantes; a renda e a riqueza dos mais ricos podem ser drenadas sem limites. Ao recomendar maiores verbas para o ensino público, está apenas enfatizando a necessidade de maiores gastos com a educação. Não lhe ocorre questionar se por acaso não seria mais conveniente aumentar as verbas de outro departamento, como por exemplo o da saúde. Não lhe ocorre que sérios argumentos podem ser apresentados em favor da diminuição dos gastos públicos e da carga fiscal. Para ele, quem propõe cortes no orçamento está apenas defendendo os injustificáveis interesses dos mais ricos.

No nível atual dos impostos sobre a renda e sobre as heranças, esse fundo de reserva do qual os intervencionistas esperam tirar os recursos para os gastos públicos se está reduzindo rapidamente. Praticamente já desapareceu em quase todos os países europeus. Nos Estados Unidos, os recentes aumentos do imposto sobre a renda resultaram num aumento insignificante da arrecadação, comparativamente ao que seria arrecadado se o imposto fosse menos progressivo. Os diletantes e os demagogos são extremamente favoráveis a sobretaxas elevadas aplicadas sobre os mais ricos, mas, na verdade, o correspondente aumento de arrecadação é muito pequeno.[1] Dia a dia se torna mais evidente que grandes aumentos dos gastos públicos não podem ser financiados “espremendo-se os ricos”; acabam tendo que ser suportados pelas massas. Já não se pode esconder o absurdo representado por uma política de esbanjamento de gastos que seriam sempre cobertos pelos recursos obtidos com o imposto progressivo. O famigerado princípio segundo o qual as receitas públicas devem ser fixadas em função das despesas – enquanto os particulares são obrigados a conter os seus gastos no limite de seus ganhos – acabará por desmoralizar a si mesmo. Doravante os governos terão de compreender que um dólar não pode ser gasto duas vezes e que os vários itens da despesa pública conflitam entre si. Cada centavo de despesa adicional terá de ser arrecadado precisamente das pessoas que até agora têm tentado fazer com que a carga fiscal recaia sobre outros grupos. Os que querem subsídios terão eles mesmos de pagar a conta. Os déficits das empresas estatais recairão sobre o grosso da população.

A situação das relações entre empregador e empregado será análoga. É crença popular que os assalariados estão obtendo “ganhos sociais” às custas da diminuição da renda das classes exploradoras. Os grevistas, diz-se, não fazem greve contra os consumidores, mas contra “a direção”. Não há necessidade de se aumentar o preço dos produtos quando o custo da mão de obra aumenta; a diferença deve ser arcada pelos empregadores. Quando a receita dos empresários e capitalistas é cada vez mais absorvida por impostos, por maiores salários e por outras “conquistas sociais” dos empregados, e ainda é limitada por tabelamentos de preços, a hora da verdade não demora a chegar. Torna-se então evidente que qualquer aumento salarial terá de afetar os preços dos produtos e que as conquistas sociais de cada grupo correspondem integralmente às perdas sociais de outros grupos. Toda greve torna-se, mesmo no curto prazo e não apenas no longo, uma greve contra o resto da população. Um ponto essencial na filosofia social do intervencionismo é a pressuposição da existência de fundos inesgotáveis que podem ser drenados permanentemente. O sistema intervencionista entra em colapso quando essa fonte seca: desmorona o mito do Papai Noel econômico.

 

3 – O fim do intervencionismo

 

O interlúdio intervencionista deverá chegar ao fim porque o intervencionismo não pode conduzir a um sistema permanente de organização da sociedade. Por três razões.

Primeira: as medidas restritivas sempre diminuem a produção e a quantidade de bens disponível para consumo. Quaisquer que sejam os argumentos apresentados em favor de determinadas restrições ou proibições, tais medidas em si não podem jamais constituir um sistema social de produção.

Segunda: todas as variedades de interferência nos fenômenos de mercado não só deixam de alcançar os objetivos desejados como também provocam um estado de coisas que o próprio autor da intervenção, do ponto de vista do seu próprio julgamento de valor, considera pior do que a situação que pretendia alterar. Se, para corrigir os indesejados efeitos de uma intervenção, recorre-se a intervenções cada vez maiores, acaba-se destruindo a economia de mercado, substituindo-a pelo socialismo.

Terceira: o intervencionismo pretende confiscar o que uma parte da população tem de “excedente” e distribuí-lo a uma outra parte. Uma vez que esse excedente já tenha sido totalmente confiscado, torna-se impossível prosseguir com essa política.

Inúmeros países, graças a sua política cada vez mais intervencionista, sem que tenham adotado o socialismo completo do tipo russo, estão aproximando-se do que se denomina de economia de planejamento central, ou seja, do socialismo modelo alemão do tipo Hindenburg. Em relação às políticas econômicas, existe hoje em dia muito pouca diferença entre as várias nações, e, numa mesma nação, entre os vários partidos políticos e grupos de pressão. Os nomes históricos dos partidos perderam o seu significado. No que diz respeito à política econômica, subexistem atualmente apenas duas facções: os partidários do método leninista de estatização total e os intervencionistas. Os defensores da economia de mercado têm muito pouca influência no curso dos eventos. A liberdade econômica ainda existente decorre mais do fracasso das medidas adotadas pelos governantes do que de uma política intencional.

É difícil dizer quantos, entre os partidários do intervencionismo, têm consciência do fato de que as políticas que recomendam conduz ao socialismo, e quantos ainda acreditam estar defendendo um sistema intermediário, uma suposta “terceira solução” para o problema da organização econômica da sociedade. De qualquer forma, sem dúvida, todos os intervencionistas acreditam que cabe ao governo, e somente ao governo, decidir em cada caso se as coisas devem ser deixadas ao sabor do mercado ou se deve haver intervenção. Isto significa dizer que os intervencionistas estão dispostos a tolerar a supremacia do consumidor apenas na medida em que esta produza um resultado que eles mesmos aprovem. Tão logo aconteça na economia algo que desagrade às várias instituições burocráticas ou que desperte a ira de um grupo de pressão, as pessoas clamam por novas intervenções, controles e restrições.

Se não fosse a ineficiência do legislador e a lassidão, negligência e corrupção de muitos dos funcionários, os últimos vestígios da economia de mercado já teriam desaparecido há muito tempo.

A incomparável eficiência do capitalismo nunca foi tão evidente quanto nessa nossa era de atroz anticapitalismo. Apesar dos governos, dos partidos políticos e dos sindicatos sabotarem o funcionamento do mercado, o espírito empresarial ainda consegue aumentar a quantidade e melhorar a qualidade dos produtos, além de torná-los mais acessíveis aos consumidores. Os países que ainda não abandonaram inteiramente o sistema capitalista possibilitam ao homem comum um padrão de vida do qual teriam inveja os príncipes e nababos de outras eras. Há algum tempo atrás, os demagogos culpavam o capitalismo pela pobreza das massas. Hoje o condenam pelo “exagero” das ofertas colocadas à disposição do homem comum.

Já foi mostrado que somente num sistema que possibilite o cálculo de lucros e perdas é possível atribuir tarefas subalternas aos gerentes, isto é, a auxiliares responsáveis cujo discernimento seja confiável.[2] O que caracteriza o gerente como tal, e o distingue de um mero técnico, é que, na esfera de suas atribuições, é ele quem determina os métodos e as ações a serem empregados de maneira a obter o maior lucro. Num sistema socialista em que não haja cálculo econômico, nem contabilidade de capital e nem determinação de lucros e perdas, não há lugar para a atividade gerencial. Mas enquanto ainda puder calcular com base nos preços existentes nos mercados estrangeiros, a sociedade socialista poderá também utilizar, numa certa medida, uma hierarquia quase gerencial.

Considerar a nossa era como uma era de transição é apenas um expediente medíocre. No mundo real, a mudança é permanente. Toda era é uma era de transição. O que devemos fazer é distinguir entre sistemas sociais que são capazes de durar e os que são inevitavelmente transitórios, porque são autodestrutivos. Já foi mostrado de que maneira o intervencionismo se autoliquida e desemboca inevitavelmente no socialismo do tipo alemão. Alguns países europeus já atingiram essa fase, e ninguém pode saber se os Estados Unidos os seguirão. Mas enquanto os Estados Unidos permanecerem como uma economia de mercado e não adotarem o sistema de pleno controle governamental sobre a atividade econômica, os países da Europa ocidental ainda terão a possibilidade de calcular. Falta-lhes ainda a característica mais essencial da forma de gestão socialista: ainda recorrem ao cálculo econômico. Permanecem, portanto, de toda maneira, bastante diferentes do que seriam se o mundo todo se tornasse socialista.

Diz-se frequentemente que o mundo não pode permanecer indefinidamente metade capitalista e metade socialista. Entretanto, não há razão para supor que seja impossível uma tal divisão do mundo e a correspondente coexistência dos dois sistemas. Se puderem persistir os dois sistemas, os países que rejeitarem o capitalismo poderão seguir o seu caminho enquanto assim o desejarem. Seu funcionamento poderá resultar em desintegração social, caos e miséria para o povo. Mas nem um baixo padrão de vida e nem o empobrecimento progressivo mudam um sistema econômico. A mudança para um sistema mais eficiente só ocorrerá se as pessoas forem capazes de perceber as vantagens que essa mudança poderá proporcionar-lhes. A mudança poderá também advir pela invasão estrangeira efetuada por quem disponha de um melhor aparato militar decorrente da maior eficiência do seu próprio sistema econômico.

Os otimistas esperam que pelo menos as nações que no passado implantaram e desenvolveram a economia de mercado e a civilização capitalista permaneçam atreladas a esse sistema no futuro. Existem indícios tanto para negar como para confirmar essa expectativa. É inútil especular sobre o que resultará do grande conflito ideológico entre os princípios da propriedade privada e da propriedade estatal, do individualismo e do totalitarismo, da liberdade e do regime autoritário. Tudo o que se pode dizer de antemão sobre o resultado dessa luta pode ser resumido nas três afirmações a seguir:

1. Não temos razões para supor que nesse conflito estejam intervindo forças ou tendências que possam assegurar a vitória final das ideologias cuja aplicação assegure a preservação e a intensificação dos laços sociais e a melhoria do padrão de vida material da humanidade. Não há nada que nos possa fazer crer que o progresso em direção a melhores condições seja inevitável ou que seja impossível a regressão para uma situação bastante insatisfatória.

2. Os homens terão de escolher entre economia de mercado e socialismo. Não poderão fugir à escolha entre essas alternativas adotando uma posição “intermediária”, qualquer que seja a denominação que lhe queiram dar.

3. A implantação universal do socialismo tornaria o cálculo econômico impossível e resultaria num completo caos e na desintegração da cooperação social proporcionada pela divisão do trabalho.

 



[1] Nos Estados Unidos, a sobretaxa, segundo lei de 1942, era de 52% para o intervalo de renda entre $22.000 e $26.000. Se a sobretaxa ficasse nesse nível, a perda de arrecadação sobre a renda de 1942 teria sido de $249 milhões ou 2,8% da arrecadação do imposto de renda pessoa física para aquele ano. No mesmo ano o total das rendas líquidas acima de $10.000 era de $8.912 milhões. O confisco total dessas rendas não teria gerado uma arrecadação igual à obtida no mesmo ano sobre todas as faixas de renda, qual seja: $9.046 milhões. Ver A Tax Program for a Solvent America, Committee on Post-war Tax Policy, Nova Iorque, 1945, p. 116-117, 120.

[2] Ver página ….

 

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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