Ação Humana – Um Tratado de Economia

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Capítulo II. Os problemas epistemológicos da ciência da ação humana

 

1. Praxeologia e história

Existem dois ramos principais das ciências da ação humana: a praxeologia e a história.

História é o conjunto e a arrumação sistemática de todos os dados relativos à experiência da ação humana. Lida com o conteúdo concreto da ação humana. Estuda todos os esforços humanos na sua infinita variedade e multiplicidade, e todas as ações individuais com todas as suas implicações acidentais, especiais ou particulares. Examina as ideias que guiam o agente homem e o resultado de suas ações. Abrange todos os aspectos das atividades humanas. É, por um lado, história geral e, por outro, a história de vários segmentos mais específicos. Existe a história da ação política e militar, das ideias e da filosofia, das atividades econômicas, da tecnologia, da literatura, arte e ciência, da religião, dos hábitos e costumes e de muitos outros aspectos da vida humana. Há também a etnologia e a antropologia, desde que não seja uma parte da biologia, e há ainda a psicologia enquanto não seja fisiologia, nem epistemologia, nem filosofia. Existe ainda a linguística, enquanto não seja lógica nem fisiologia do idioma.[1]

O tema de todas as ciências históricas é o passado. Elas não nos podem ensinar algo que seja aplicável a todas as ações humanas, ou seja, aplicável também ao futuro. O estudo da história torna um homem sábio e judicioso. Mas não proporciona conhecimento e habilidade que possam ser utilizados na execução de tarefas concretas.

As ciências naturais também lidam com eventos passados. Toda experiência é uma experiência de algo que já se passou; não há experiência de acontecimentos futuros. Mas a experiência à qual as ciências naturais devem todo seu sucesso é aquela em que os elementos específicos que sofrem alteração podem ser observados isoladamente. As informações assim acumuladas podem ser usadas para indução, um processo peculiar de inferência que já deu evidência pragmática de sua utilidade, embora ainda necessite de uma satisfatória caracterização epistemológica.

A experiência com a qual as ciências da ação humana têm de lidar é sempre uma experiência de fenômenos complexos. No que diz respeito à ação humana, não se pode realizar experiência em laboratório. Nunca temos condição de observar a mudança em um elemento isolado, mantendo-se todos os demais inalterados. A experiência histórica, na condição da experiência de fenômenos complexos, não nos fornece fatos, no sentido com que as ciências naturais empregam este termo, para designar eventos isolados testados em experiências. A informação proporcionada pela experiência histórica não pode ser usada como material para a construção de teorias ou para previsão de eventos futuros. Toda experiência histórica esta aberta a várias interpretações e de fato, é interpretada de diversas maneiras.

Os postulados do positivismo e escolas metafísicas congêneres são, portanto, ilusórios. É impossível reformar as ciências da ação humana obedecendo a padrões da física ou de outras ciências naturais. Não há possibilidade de estabelecer a posteriori uma teoria de conduta humana e dos eventos sociais. A história não pode provar nem refutar qualquer afirmação de caráter geral, da mesma maneira que as ciências naturais aceitam ou rejeitam uma hipótese, com base em experiências de laboratório. Neste campo, não é possível provar por experiências que uma hipótese seja falsa ou verdadeira.

Os fenômenos complexos para cuja existência contribui diversas causas não nos permitem afirmar que uma teoria esteja certa ou errada. Pelo contrário, esses fenômenos só se tornam inteligíveis através da interpretação que lhes é dada com base em teorias já existentes e que foram desenvolvidas a partir de outras fontes. No caso dos fenômenos naturais, a interpretação de um evento não pode contrariar teorias já satisfatoriamente testadas por experiências. No caso de eventos históricos, não há tal restrição. Os analistas desses eventos estão livres para recorrer a interpretações bastante arbitrárias. Onde existe algo a ser explicado, a mente humana sempre conseguiu inventar ad hoc alguma teoria imaginária, desprovida de qualquer justificação lógica.

No campo da história, é a praxeologia que proporciona uma limitação semelhante à representada pela experimentação no caso das teorias que tentam interpretar e elucidar eventos físicos, químicos ou fisiológicos. A praxeologia não é uma ciência histórica, mas uma ciência teórica e sistemática. Seu escopo é a ação humana como tal. Independentemente de quaisquer circunstâncias ambientais, acidentais ou individuais que possam influir nas ações efetivamente realizadas. Sua percepção é meramente formal e geral, e não se refere ao conteúdo material nem as características particulares de cada ação. Seu objetivo é o conhecimento válido para todas as situações onde as condições correspondam exatamente àquelas indicadas nas suas hipóteses e inferências. Suas afirmativas e proposições não derivam da experiência. São como a lógica e a matemática. Não estão sujeitas a verificação com base na experiência e nos fatos. São tanto lógica como temporalmente anteriores a qualquer compreensão de fatos históricos. É um requisito necessário para qualquer percepção intelectual de eventos históricos. Sem sua ajuda, nossa percepção do curso dos eventos históricos ficaria reduzida ao registro de mudanças caleidoscópicas ou de uma desordem caótica.

2. O caráter formal e apriorístico da praxeologia

É moda na filosofia contemporânea a tendência de negar a existência de qualquer conhecimento a priori. Todo conhecimento humano, afirmam, deriva da experiência. Esta atitude pode ser facilmente compreendida como reação excessiva contra as extravagâncias da teologia ou contra filosofias espúrias da história e da natureza. Os metafísicos estavam ansiosos para descobrir, de modo intuitivo, os preceitos morais, o significado da evolução histórica, as propriedades da alma e da matéria e as leis que governam eventos físicos, químicos e fisiológicos. Suas especulações etéreas manifestavam uma alegre indiferença por conhecimentos corriqueiros. Estavam convencidos de que a razão poderia explicar todas as coisas e responder a todas as questões, sem recorrer à experiência.

As ciências naturais modernas devem seu sucesso ao método de observação e experimentação. Não há duvida de que o empirismo e o pragmatismo estão certos, na medida em que simplesmente descrevem os processos das ciências naturais. Mas também é certo que estão inteiramente errados ao pretender rejeitar qualquer tipo de conhecimento a priori e considerar a lógica, a matemática e a praxeologia como disciplinas empíricas e experimentais ou como meras tautologias.

No que diz respeito à praxeologia os erros dos filósofos se devem a sua completa ignorância em economia[2] e, frequentemente, à sua indecorosa insuficiência de conhecimentos de história. Aos olhos do filósofo, o tratamento de temas filosóficos têm uma vocação nobre e sublime que não deve ser colocada no mesmo baixo nível de outras ocupações lucrativas. O professor ressente o fato de que ele obtém um rendimento com a filosofia; ele se ofende com a ideia de que ganha dinheiro da mesma maneira que um artesão ou um lavrador. Assuntos pecuniários são coisas desprezíveis, e o filósofo, investigando os transcendentes problemas da verdade e dos valores absolutos eternos, não deveria conspurcar sua mente, dando atenção a assuntos de economia.

O problema de saber se existem ou não elementos de pensamento a priori — isto é, condições intelectuais de pensamento, necessárias e inevitáveis, anteriores a qualquer momento real de concepção e experiência — não deve ser confundido com o problema genético de como o homem adquiriu sua capacidade mental, caracteristicamente humana. O homem é descendente de ancestrais não humanos que não tinham essa capacidade. Esses ancestrais estavam dotados de alguma potencialidade que, no curso dos séculos de evolução, os transformou em seres dotados de razão. Essa transformação foi conseguida pela influência do meio cósmico atuando sobre sucessivas gerações. Resulta daí a conclusão dos partidários do empirismo filosófico: o raciocínio é fruto da experiência e representa uma adaptação do homem as condições do seu meio ambiente.

Essa ideia, quando coerentemente adotada, nos leva à conclusão de que teriam existido entre nossos ancestrais pré-humanos vários estágios intermediários. Teriam existido seres que, embora ainda não equipados com a faculdade da razão, estariam dotados com alguns elementos rudimentares de raciocínio. Não tinham ainda uma mente lógica, mas uma mente pré-lógica (ou de uma lógica bastante imperfeita). Suas funções lógicas desconexas e defeituosas evoluíram passo a passo do estado pré-lógico até o estado lógico. A razão, a inteligência e a lógica são, portanto, fenômenos históricos. Há uma história da lógica como existe a história das diferentes técnicas. Nada sugere que a lógica, como a conhecemos, seja o último estágio, o estágio final da evolução intelectual. A lógica humana é uma fase histórica entre a ausência de lógica pré-humana por um lado e a lógica sobre-humana por outro. A razão e a mente — os equipamentos mais eficientes de que são dotados os seres humanos na sua luta pela sobrevivência — fazem parte do continuo fluxo de eventos zoológicos. Não são eternos nem imutáveis. São transitórios.

Além disso, não há dúvida de que todo ser humano repete na sua evolução pessoal não apenas a metamorfose fisiológica de uma simples célula em um organismo mamífero de grande complexidade, mas, também, a metamorfose espiritual de uma existência meramente vegetativa e animal em uma mente dotada de razão. Esta transformação não se completa na vida pré-natal do embrião e sim mais tarde, quando a criança recém-nascida, passo a passo, desperta para a consciência humana. Portanto, todo homem na sua primeira infância, começando das profundezas da escuridão, evolui por vários estágios de estrutura lógica da mente.

Há também o caso dos animais. Estamos inteiramente a par do abismo intransponível que separa a nossa razão dos processos reativos do cérebro e dos nervos dos animais. Mas, ao mesmo tempo, podemos imaginar as forças que neles se debatem, tentando encontrar a luz da compreensão. Os animais são como prisioneiros ansiosos para se libertarem da condenação a escuridão eterna e ao inevitável automatismo. Solidarizamo-nos com eles porque nos mesmos estamos numa posição semelhante: lutamos, em vão, para romper as limitações de nosso aparato intelectual, empenhando-nos inutilmente em conseguir obter inatingível cognição perfeita.

Porém, o problema do a priori é de outra espécie. Não lida com o problema de saber como a razão e a consciência surgiram. Refere-se à característica necessária e essencial da estrutura lógica da mente humana.

As relações lógicas fundamentais não estão sujeitas a prova ou refutação. Qualquer tentativa de prová-las tem que pressupor sua validade. É impossível explicá-las a um ser que já não as possua, por conta própria. Os esforços para defini-las, de acordo com as regras de uma definição, inevitavelmente fracassam. São proposições básicas que antecedem qualquer definição real ou nominal. São categorias finais, impossíveis de serem analisadas. A mente humana é absolutamente incapaz de imaginar outras categorias lógicas diferentes das suas. Para o homem, suas relações lógicas são imprescindíveis e inevitáveis, qualquer que seja a forma que possam assumir no caso de seres sobre-humanos. É o pré-requisito indispensável da percepção e da experiência.

É também um pré-requisito indispensável da memória. Há uma tendência, nas ciências naturais, em descrever a memória como um caso particular de um fenômeno mais geral. Todo organismo vivo conserva os efeitos de um estímulo anterior; o estado atual da matéria inorgânica é consequência de todos os efeitos que sobre ela atuaram no passado. O estado atual do universo é o produto de seu passado. Podemos, portanto, num sentido metafórico livre, dizer que a estrutura geológica do nosso planeta conserva a memória de mudanças cósmicas anteriores, e que o organismo de um homem é a sedimentação das fatalidades e vicissitudes, suas e de seus ancestrais. Mas memória é algo inteiramente diferente do fato de haver uma unidade estrutural e uma continuidade da evolução cósmica. É um fenômeno de consciência e, como tal, condicionado a priori pela lógica. Psicólogos ficam intrigados com o fato de que o homem não se lembre de nada do tempo em que era um embrião ou uma criança de colo. Freud tenta explicar esta falta de lembrança como produzida pela supressão de reminiscências desagraveis. Na realidade, não há nada a ser lembrado de estágios inconscientes. O automatismo animal e as respostas inconscientes e estímulos fisiológicos não são elementos para lembrança, nem por embriões ou criancinhas, nem por adultos. Somente situações conscientes podem ser lembradas.

A mente humana não é uma tabula rasa na qual os eventos externos registram sua própria história. Está equipada com o ferramental necessário para compreender a realidade. O homem adquiriu esse ferramental, isto é, a estrutura lógica de sua mente, ao longo de sua evolução de uma ameba até o estado atual. Mas as ferramentas são anteriores a qualquer experiência.

O homem não é apenas um animal totalmente sujeito aos estímulos inevitáveis que determinam as circunstâncias de sua vida. É também um ser agente. E a categoria ação é logicamente antecedente a qualquer ato concreto. O fato de que o homem não tenha o poder criativo para imaginar categorias diferentes das suas relações lógicas fundamentais nem dos princípios de causalidade e teologia nos impõe o que pode ser chamado de apriorismo metodológico.[3]

Qualquer pessoa no seu dia a dia frequentemente é testemunha da imutabilidade e da universalidade das categorias do pensamento e da ação. Quem se dirige aos seus semelhantes, querendo informá-los ou convencê-los, perguntando e respondendo, só pode assim proceder porque está dotado de algo comum a todos os homens: a estrutura lógica da razão humana. A ideia de que A possa ser ao mesmo tempo anti A, ou que preferir A e B possa ser a mesma coisa que preferir B e A é simplesmente inconcebível e absurda para a mente humana. Não temos condição de compreender qualquer tipo de pensamento pré-lógico ou metalógico. Não podemos imaginar um mundo sem causalidade e teleologia.

Não interessa ao homem determinar se existem, além da esfera acessível à sua inteligência, outras esferas nas quais haja algo categoricamente diferente do pensamento e ação humanos. Nenhum conhecimento dessas outras esferas penetra na mente humana. É inútil perguntar se as coisas, em si mesmas, são diferentes de como as vemos, ou se existem mundos inacessíveis e ideias impossíveis de serem compreendidas. Esses problemas estão além do alcance da cognição humana. O conhecimento humano é condicionado pela estrutura da mente humana. Se, como tema de investigação, se escolhe a ação humana, isto significa que forçosamente iremos estudar as categorias da ação que são próprias à mente humana e que são sua projeção no mundo exterior em evolução e mudança. Todos os teoremas da praxeologia se referem sempre a essas categorias da ação e são válidos apenas na órbita em que operam tais categorias. Assim sendo, não contribuem com qualquer informação acerca de mundos e relações nunca sonhados ou nunca imaginados.

Portanto, a praxeologia é duplamente humana. É humana porque reclama para os seus teoremas validade universal em toda ação humana. É humana também porque lida apenas com a ação humana e não pretende saber nada sobre ações não humanas — sejam elas sub-humanas ou super-humanas.

A pretensa heterogeneidade lógica do homem primitivo

Constitui equívoco bastante generalizado supor que os escritos de Lucien Lévy-Bruhl dão suporte à doutrina segundo a qual a estrutura lógica da mente do homem primitivo era e continua a ser categoricamente diferente da do homem civilizado. Ao contrario, o que Lévy-Bruhl demonstra sobre as funções mentais do homem primitivo, com base num exame cuidadoso de todo material etnológico disponível, evidencia claramente que os relances lógicos fundamentais e as categorias do pensamento e da ação desempenham nas atividades intelectuais dos selvagens o mesmo papel que desempenham na nossa própria vida. O conteúdo do pensamento do homem primitivo difere do conteúdo do nosso pensamento, mas a estrutura formal e lógica é comum a ambos.

É verdade que o próprio Lévy-Bruhl afirma que a mentalidade dos povos primitivos é essencialmente “mística e pré-lógica; as representações coletivas do homem primitivo são reguladas pela “lei da participação” e consequentemente são indiferentes à lei da contradição. Entretanto, a distinção que Lévy-Bruhl faz entre pensamento pré-lógico e lógico refere-se ao conteúdo e não à forma e à estrutura categorial do pensamento. Ele mesmo declara que também entre as pessoas como nós existem ideias e relações entre ideias comandadas pela “lei de participação”, lado a lado com aquelas sujeitas à lei do raciocínio. “O pré-lógico e o místico são coexistentes com o lógico”.[4]

Lévy-Bruhl relega os ensinamentos essenciais do cristianismo ao âmbito da mente pré-lógica.[5] Ora, podem-se apresentar, e têm sido apresentadas, muitas objeções contra as doutrinas cristãs, e sua interpretação pela teologia.

Mas ninguém se atreveria a afirmar que os filósofos e precursores do cristianismo — entre eles Santo Agostinho e Santo Tomás — tivessem uma mente cuja estrutura lógica fosse categoricamente diferente da dos nossos contemporâneos. A disputa entre um homem que acredita em milagres e outro que não acredita refere-se ao conteúdo do pensamento e não à sua estrutura lógica. Alguém que tente demonstrar a possibilidade da existência de milagres pode errar. Mas desmascarar seu erro — como mostram os brilhantes ensaios de Hume e Mill — não é menos complicado do que demonstrar o erro de qualquer falácia filosófica ou econômica.

Exploradores e missionários relatam que na África e na Polinésia o homem primitivo se contém diante da primeira percepção que lhe causam os acontecimentos e nunca raciocina se pode de alguma maneira, modificá-los.[6] Educadores americanos e europeus, às vezes, relatam o mesmo de seus alunos. Com relação aos Mossi, no Niger, Lévy-Bruhl cita a observação de um missionário: “a conversa com eles gira em torno de mulheres, comida e, na época das chuvas, colheitas”.[7] Que outros assuntos preferem muitos dos contemporâneos e vizinhos de Newton, Kant e Lévy-Bruhl?

A conclusão a se tirar dos estudos de Lévy-Bruhl pode ser mais bem expressa em suas próprias palavras: “a mente primitiva, como a nossa, está ansiosa para encontrar as causas dos acontecimentos, mas não as procura na mesma direção em que nós o fazemos”.[8]

Um camponês ansioso por obter uma boa colheita pode — dependendo do conteúdo de suas ideias — escolher vários métodos. Pode realizar algum ritual mágico, pode partir numa peregrinação, pode acender uma vela ao seu santo padroeiro ou pode empregar mais fertilizante e de melhor qualidade. Mas, qualquer que seja a sua escolha, ela é sempre ação, isto é, o emprego de meios para atingir fins. Mágica, num sentido mais amplo é uma variedade de tecnologia. Exorcismo é uma ação deliberada, propositada, baseada numa visão de mundo que a maior parte dos nossos contemporâneos condena como superstição e, consequentemente, como inadequada. Mas o conceito de ação não implica que a mesma seja orientada por uma teoria correta e por uma tecnologia que garanta a obtenção do objetivo pretendido. Implica apenas que o executante da ação acredite que os meios aplicados produzirão o efeito desejado.

Nenhum ensinamento proporcionado pela etnologia ou pela história contradiz a afirmação segundo a qual a estrutura lógica da mente é uniforme em todos os homens, de todas as raças, idades e países.[9]

3. O apriorismo e a realidade

O raciocínio apriorístico é meramente conceitual e dedutivo. Não pode produzir nada além de tautologias e raciocínios analíticos. Todas as suas implicações derivam logicamente das premissas e nelas estão contidas. Decorre daí a objeção frequentemente feita ao apriorismo, segundo a qual este modo de pensar não pode acrescentar nada ao nosso conhecimento.

Todos os teoremas geométricos já estão contidos nos seus axiomas. O conceito de um triângulo retângulo já contém o teorema de Pitágoras. Este teorema é uma tautologia e sua dedução resulta num raciocínio analítico. Não obstante, ninguém pretenderia afirmar que a geometria em geral e o teorema de Pitágoras em particular não acrescentam nada ao nosso conhecimento. A cognição a partir de raciocínio meramente dedutivo também é criativa e abre para a nossa mente acesso a regiões antes inacessíveis. A tarefa mais importante do raciocínio apriorístico é, por um lado, revelar tudo o que se pode inferir das categorias, conceitos e premissas e, por outro, mostrar o que não se pode inferir. Sua função é tornar claro e evidente o que antes era obscuro e desconhecido.[10]

No próprio conceito da moeda já está implícito todos os teoremas da teoria monetária. A teoria quantitativa não acrescenta nada ao nosso conhecimento que já não esteja virtualmente contido no conceito de moeda. Essa teoria não faz mais do que transformar, desenvolver e revelar conhecimento; analisa apenas, sendo, portanto tautológica como o teorema de Pitágoras em relação ao conceito de triângulo retângulo. No entanto, ninguém negaria o valor cognitivo da teoria quantitativa. Só poderá ignorá-la aquele que não estiver familiarizado com o raciocínio econômico. Uma longa série de fracassos na solução de problemas, que deveriam ter sido abordados sob a luz da teoria quantitativa, atesta bem que não foi tarefa fácil atingir o presente estágio de conhecimento.

Não é deficiência do sistema o fato de a ciência apriorística não nos proporcionar uma percepção total da realidade. Seus conceitos e teoremas são ferramentas mentais que facilitam o acesso a uma melhor compreensão da realidade; é claro que não é em si mesma a totalidade do conhecimento factual sobre todas as coisas. A teoria, por um lado, e a compreensão da vida e da realidade instável por outro, não estão em oposição. Sem a teoria, sem uma ciência apriorística da ação humana, não é possível compreender a realidade da ação humana.

A correspondência entre conhecimento racional e experimental constitui, há muito tempo, um dos problemas fundamentais da filosofia. Como para todos os outros problemas da crítica do conhecimento, a abordagem dos filósofos refere-se apenas às ciências naturais. Os filósofos ignoram as ciências da ação humana. Por isso, suas contribuições não têm utilidade para a praxeologia. Habitualmente, adota-se, no tratamento dos problemas epistemológicos da economia, uma das soluções sugeridas para as ciências naturais. Alguns autores recomendam o convencionalismo de Poincaré.[11]

Há quem considere as premissas do raciocínio econômico uma questão de linguística ou de postulados convencionais.[12]

Outros preferem aceitar as ideias desenvolvidas por Einstein, que levanta a seguinte questão: “como pode a matemática, um produto da razão humana, que não depende de nenhuma experiência, corresponder tão primorosamente à realidade? Seria a razão humana, sem ajuda da experiência, através apenas do raciocínio, capaz de descobrir a essência das coisas reais?” E ele mesmo responde: “na medida em que os teoremas de matemática referem-se à realidade, não são exatos, e, na medida em que são exatos, não se referem à realidade”.[13]

Ocorre, entretanto, que as ciências da ação humana são radicalmente diferentes das ciências naturais. Todos os autores que pretendem estabelecer uma base epistemológica das ciências da ação humana segundo o padrão das ciências naturais erram lamentavelmente.

O verdadeiro tema da praxeologia, ação humana tem a mesma origem que o raciocínio humano. Ação e razão são congêneres e homogêneas; podem até serem considerados dois aspectos diferentes da mesma coisa. O poder que tem a razão de esclarecer, através de simples raciocínio, as características essenciais da ação é consequência do fato de que a ação é um produto da razão. Os teoremas que o raciocínio praxeológico consegue adequadamente estabelecer são não apenas impecavelmente verdadeiros e incontestáveis como os teoremas matemáticos. Mais ainda, referem-se, com a plena rigidez de sua certeza apoditica e de sua incontestabilidade. A realidade da ação como ela se apresenta na vida e na história. A praxeologia transmite conhecimento exato e preciso das coisas reais.

O ponto de partida da praxeologia não consiste numa escolha de axiomas nem numa decisão sobre métodos de investigação, mas na reflexão sobre a essência da ação. Em qualquer ação as categorias praxeológicas se manifestam completa e perfeitamente. Não há modo de ação imaginável no quais meios e fins ou custos e benefícios não possam ser claramente distinguidos e precisamente separados. Não existe nada que corresponda apenas aproximadamente ou incompletamente a categoria econômica da troca. Existe apenas troca e não troca; e, no que diz respeito a qualquer troca, todos os teoremas gerais relativos a trocas são válidos com toda sua rigidez e com todas as suas implicações. Não existe uma transição gradual de troca para não troca nem de troca direta para troca indireta. Jamais se poderá realizar uma experiência que possa contradizer estas afirmativas.

Tal experiência seria desde logo impossível porque toda experiência relativa à ação humana está condicionada pelas categorias praxeológicas e só pode ser realizada mediante sua aplicação. Se não tivéssemos em nossas mentes os esquemas lógicos estabelecidos pelo raciocínio praxeológico, nunca estaríamos em condição de discernir e compreender qualquer ação. Perceberiam os movimentos, mas não o ato de comprar ou vender, nem tampouco preços, salários, juros e assim por diante. Somente pela utilização dos esquemas praxeológicos é que nos tornamos capazes de realizar a experiência de um ato de compra e venda: e o fazemos independentemente dos nossos sentidos perceberem, concomitantemente, quaisquer movimentos de homens ou coisas no mundo exterior. Sem a ajuda do conhecimento praxeológico jamais aprenderíamos algo sobre meios de troca. Uma moeda, sem esse conhecimento, seria apenas um disco de metal, nada mais. A prática relativa ao uso de moeda só é possível graças à compreensão da categoria praxeológica meio de troca.

A experiência relativa à ação humana difere da relativa aos fenômenos naturais porque requer e pressupõe o conhecimento praxeológico. Por esta razão, os métodos das ciências naturais são inadequados para o estudo da praxeologia, da economia e da história.

Ao afirmar caráter apriorístico da praxeologia não estamos esboçando um plano para uma futura nova ciência diferente das ciências tradicionais da ação humana. Não estamos afirmando que a ciência teórica da ação humana deveria ser apriorística, mas sim que é, e sempre foi, apriorística. Qualquer tentativa de refletir sobre os problemas suscitados pela ação humana está necessariamente ligada ao raciocínio apriorístico. Não faz nenhuma diferença neste particular se os homens, ao discutirem um problema, é teórico, buscando apenas o conhecimento puro, ou estadistas, políticos e cidadãos comuns, ansiosos por compreender o que está ocorrendo e por descobrir que tipo de política ou de conduta melhor serviria aos seus próprios interesses. As pessoas podem começar uma discussão a partir do significado de alguma experiência concreta, mas o debate inevitavelmente se desvia dos aspectos acidentais e ambientais e encaminha-se para uma análise de princípios fundamentais; imperceptivelmente abandonam-se os acontecimentos factuais que haviam provocado a discussão. A história das ciências naturais é o registro de teorias e hipóteses descartadas porque refutadas pela experiência. Lembrem-se, por exemplo, das ideias erradas da velha mecânica, refutadas por Galileu, ou o que ocorreu com a teoria flogística. Isto não ocorre na história da economia. Os defensores de teorias logicamente incompatíveis indicam os mesmos eventos como prova de que seu ponto de vista foi testado pela experiência. A verdade é que a ocorrência de um fenômeno complexo — e no campo da ação humana todas as ocorrências são fenômenos complexos pode sempre ser interpretado com base em várias teorias antitéticas. Esta interpretação será considerada satisfatória ou insatisfatória, conforme seja nossa opinião acerca das teorias em questão, estabelecida de antemão com base em raciocínio apriorístico.[14]

A história não nos pode ensinar qualquer regra geral, principio ou lei. Não há meio de extrair de uma experiência histórica, a posteriori, qualquer teoria ou teorema relativo à conduta humana ou às políticas. Os dados da história não seriam nada além de uma tosca acumulação de ocorrências sem nexo, um monte de confusão, se não pudessem ser esclarecidos, amimados e interpretados pelo conhecimento praxeológico sistematizado.

4. O principio do individualismo metodológico

A praxeologia lida com as ações individuais dos homens. Só mais tarde no curso de suas investigações, é que consegue compreender a cooperação humana, e a ação social é então considerada como um caso particular da categoria mais universal da ação humana.

Este individualismo metodológico tem sido veementemente atacado por várias escolas metafísicas e depreciado como uma falácia nominalista. A noção de um individuo, dizemos críticos, é uma abstração vazia. O homem verdadeiro é, necessariamente, sempre um membro de um conjunto social. É até mesmo impossível imaginar a existência de um homem separado do resto da humanidade, dissociado da sociedade.

O homem como homem é o produto de uma evolução social. Sua característica mais importante, a razão, só poderia surgir numa estrutura de interdependência social. Não há pensamento que não dependa dos conceitos e noções da linguagem. E a linguagem é manifestamente um fenômeno social. O homem é sempre membro de uma coletividade. Como o conjunto é tanto lógica como temporalmente anterior às suas partes ou membros, o estudo do indivíduo é posterior ao estudo da sociedade. O único método adequado para o tratamento científico dos problemas humanos é o método utilizado pelo universalismo ou pelo coletivismo.

Ora, a controvérsia quanto à anterioridade do conjunto ou de seus componentes é inútil. Logicamente as noções de um conjunto e suas partes são correlativas. Como conceitos lógicos, ambos estão desvinculados do tempo.

Não menos inadequado em relação ao nosso problema é a referência ao antagonismo de realismo e nominalismo ambos os termos, sendo entendidos com o sentido que lhes atribuíam o escolasticismo medieval. Não se contesta que, na esfera da ação humana, as entidades sociais têm existência real. Ninguém se atreveria a negar que nações estados, municipalidades, partidos, comunidades religiosas são fatores reais determinantes do curso dos eventos humanos. O individualismo metodológico longe de contestar o significado desses conjuntos coletivos, considera como uma de suas principais tarefas descreverem e analisar o seu surgimento e o seu desaparecimento, as mudanças em suas estruturas e em seu funcionamento. E escolhe o único método capaz de resolver este problema satisfatoriamente.

Inicialmente, devemos dar-nos conta de que todas as ações são realizadas por indivíduos.

Um conjunto opera sempre por intermédio de um ou de alguns indivíduos cujas ações estão relacionadas ao conjunto de forma secundária. É o significado que os agentes individuais, e todos que são afetados pela sua ação, atribuem a uma ação que determina o seu caráter. É o significado que distingue uma ação como ação de um indivíduo e outra como ação do Estado ou da municipalidade. É o carrasco, e não o Estado, que executa um criminoso. É o significado daqueles interessados na execução que distingue, na ação do carrasco, uma ação do Estado. Um grupo de homens armados ocupa um local. É o significado daqueles envolvidos nesta ocupação que a atribui não aos soldados e oficiais, mas à sua nação. Se investigarmos o significado das várias ações executadas pelos indivíduos, necessariamente aprenderemos tudo sobre as ações dos conjuntos coletivos. Porque um coletivo social não tem existência e realidade fora das ações de seus membros individuais. A vida de um coletivo é vivida nas ações dos indivíduos que constituem o seu corpo. Não há coletivo social concebível que não seja operativo pelas ações de alguns indivíduos. A realidade de um todo social consiste em dirigir e liberar ações especifica por parte dos indivíduos. Portanto, a maneira de compreender conjuntos coletivos é através da análise das ações individuais.

Como ser agente e pensante, o homem já emerge de sua existência pré-humana como um ser social. A evolução da razão, da linguagem e da cooperação é o resultado de um mesmo processo; estes três elementos estão inseparável e necessariamente ligados. Mas esse processo ocorreu nos indivíduos. Consiste em mudanças no comportamento dos indivíduos.

Não se dá a não ser nos indivíduos. A essência da sociedade é a própria ação dos indivíduos. Que existem nações, estados, igrejas, que existe cooperação social na divisão do trabalho, é algo que só pode ser percebido pelas ações de alguns indivíduos. Ninguém jamais percebeu uma nação sem perceber seus membros. Neste sentido, podemos dizer que um coletivo social começa a existir através das ações de seus indivíduos. Isto não significa que o indivíduo seja temporalmente antecedente. Significa apenas que são as ações específicas dos indivíduos que constituem o coletivo.

Não é necessário discutir se a sociedade é a soma resultante da adição de seus elementos ou se, além disso, é um ser sui generis ou ainda, se é razoável ou não falar de sua vontade, planos, desejos e ações e atribuir-lhe uma “alma” própria. Essa discussão pedante é inútil. Um conjunto coletivo é um aspecto particular das ações de vários indivíduos e, como tal, é algo verdadeiro que influencia o curso dos eventos.

É ilusório acreditar que se podem visualizar conjuntos coletivos. Nunca são visíveis; nossa percepção de um conjunto coletivo depende sempre dos significados que lhe atribuímos. Podemos ver uma multidão, isto é, uma grande quantidade de pessoas. Se essa multidão é um mero ajuntamento ou uma massa humana (no sentido com que este termo é usado pela psicologia contemporânea), se é um corpo organizado ou qualquer outra entidade social, é uma questão que só pode ser respondida pela compreensão do significado que cada um atribui à sua existência. E esse significado supõe sempre uma apreciação individual. É a nossa compreensão, um processo mental, e não os nossos sentidos, que nos permite perceber a existência de entidades sociais.

Quem pretende iniciar o estudo da ação humana a partir de entidades coletivas esbarra num obstáculo insuperável, qual seja, o fato de que um indivíduo pode pertencer ao mesmo tempo, e na realidade pertence — com exceção das tribos mais primitivas -, a várias entidades coletivas. Os problemas suscitados pela coexistência de um grande número de entidades sociais e seus antagonismos recíprocos só podem ser resolvidos pelo individualismo metodológico.

Eu e nós

O Ego é a unidade do ser agente. É um dado irredutível cuja existência não pode ser negada ou decomposta por nenhum argumento ou sofisma.

O Nós é sempre o resultado de uma soma que junta dois ou mais Egos. Se alguém diz Eu, nenhuma outra informação é necessária para estabelecer o seu significado. O mesmo é válido com relação ao Tu e desde que a pessoa em questão seja precisamente indicada. Com relação ao Ele. Mas, se alguém diz Nós, é preciso alguma informação adicional para indicar quais Egos estão compreendidos nesse Nós. É sempre um simples individuo que diz Nós; mesmo que muitos indivíduos o digam em coro, permanece sendo diversas manifestações individuais.

O Nós não pode agir de maneira diferente do modo como os indivíduos agem no seu próprio interesse. Eles podem tanto agir juntos, em acordo como um deles pode agir por todos. Neste último caso, a cooperação dos outros consiste em propiciar uma situação que torna a ação de apenas um homem efetiva para todos. Somente nesse sentido é que o representante de uma entidade social age pelo todo; os membros individuais do corpo coletivo ou obrigam ou permitem que a ação de uma só pessoa lhes seja também concernentes.

As tentativas da psicologia para anular o Ego e desmascará-lo como uma ilusão, são inúteis. O Ego praxeológico está além de qualquer dúvida. Pouco importa o que um homem foi ou o que virá a ser; ao agir, e no próprio ato de escolher, ele é um Ego.

Do pluralis logicus (e do meramente protocolar pluralis majestaticus) devemos distinguir o pluralis gloriosus. Se um canadense, sem a menor noção de patinação no gelo, proclama “nós somos os melhores jogadores de hóquei do mundo”, ou se um campeão italiano orgulhosamente afirma “nós somos os mais notáveis pintores do mundo”, ninguém se sentirá enganado. Mas, no que diz respeito aos problemas políticos e econômicos, o pluralis gloriosus evolui para o pluralis imperialis e, como tal, representa um papel significativo na propagação de doutrinas que influirão significativamente na determinação de políticas econômicas internacionais.

5. O princípio do singularismo metodológico[15]

A investigação praxeológica tem sua origem na ação individual — na ação de um indivíduo. Não lida, de forma imprecisa, com a ação humana em geral, mas com ação específica, concreta, que uma determinada pessoa realiza numa determinada data e num determinado local. Evidentemente, não se interessa pelas circunstâncias acidentais ou ambientais desta ação nem pelo que a distingue de outras ações, mas apenas pelo que é necessário e universal na ação do homem.

A filosofia do universalismo, desde tempos imemoriais, bloqueou o acesso a uma compreensão satisfatória dos problemas praxeológicos e, por isso mesmo, os universalistas contemporâneos são inteiramente incapazes de encontrar a forma de abordá-los. Universalismo[16], coletivismo e realismo conceitual[17] só sabem lidar com conjuntos e universos. Especulam sobre o gênero humano, nações, estados, classes, sobre vício e virtude, certo e errado, sobre conjuntos inteiros de necessidades ou de mercadorias. Perguntam, por exemplo: por que o valor do “ouro” é maior do que o do “ferro”? Assim sendo, nunca encontram soluções, mas somente antinomias e paradoxos. O caso mais ilustrativo é o do paradoxo do valor que frustrou até mesmo o trabalho dos economistas clássicos.

A praxeologia pergunta: o que acontece quando alguém age? O que significa dizer que um indivíduo, aqui e agora, em qualquer tempo e em qualquer lugar, age? O que resulta se ele escolhe uma coisa e rejeita outra?

O ato de escolher é sempre uma decisão entre várias oportunidades franqueadas à sua escolha individual. O homem nunca escolhe entre vício e virtude, mas somente entre dois modos de ação que consideramos do nosso ponto de vista, virtuoso ou vicioso. O homem nunca escolhe entre “ouro” e “ferro” de forma abstrata, mas sempre entre uma determinada quantidade de ouro e uma determinada quantidade de ferro. Cada ação é estritamente limitada por suas consequências imediatas. Se quisermos tirar conclusões corretas, precisamos, antes de tudo, examinar essas limitações.

A vida humana é uma sequência incessante de ações singulares. Mas a ação singular não é, de forma alguma, isolada. É um elo numa cadeia de ações que, juntas, formam uma ação de um nível mais elevado, objetivando um fim mais distante. Toda ação tem dois aspectos. Por um lado, é uma ação parcial no conjunto de uma ação mais abrangente, a realização parcial de um objetivo maior. Por outro lado é, em si mesma, um todo no que diz respeito ao seu propósito de realizar apenas uma parte do objetivo final.

Depende do escopo do projeto que o agente homem pretenda realizar naquele momento, quer se trate de uma ação de objetivo mais distante ou de uma ação parcial visando a um objetivo mais imediato. A praxeologia não tem necessidade de levantar questões do tipo das levantadas pela Gestaltpsychologie.[18] O caminho de grandes realizações sempre passa pela execução de pequenas tarefas. Uma catedral é algo mais do que um monte de pedras colocadas juntas. Mas a única maneira de construir uma catedral é colocar pedra sobre pedra. Para o arquiteto, o projeto global é o principal. Para o pedreiro, é a simples parede, é cada pedra em si. O que conta para a praxeologia é o fato de que o único método para realizar tarefas maiores consiste em construir desde as fundações, passo a passo, etapa por etapa.

6. As características individuais e variáveis da ação humana

O conteúdo da ação humana, isto é, os fins pretendidos e os meios escolhidos e aplicados na consecução destes fins, é determinado pelas qualidades pessoais de cada agente homem. O homem é o produto, é a herança fisiológica de uma longa evolução zoológica. Nasce como descendente e herdeiro de seus ancestrais; seu patrimônio biológico é o sedimento, o precipitado, de toda experiência vivida por seus antepassados. O homem não nasce no mundo em geral, mas num determinado meio ambiente. Suas características inatas ou herdadas e tudo o que a vida lhe imprimiu fazem do homem o que ele é durante a sua peregrinação terrestre. Tal é a sua sina e o seu destino. Sua vontade não é “livre” no sentido metafísico do termo. É determinada pelo seu passado e por todas as influências a que estiveram expostos ele mesmo e os seus ancestrais.

A herança e o meio ambiente moldam as ações do ser humano. Sugerem-lhe tanto os fins como os meios. O homem não vive simplesmente como homem in abstrato; vive como um membro de sua família, de sua raça, de seu povo e de sua época; vive como cidadão de seu país; como membro de um determinado grupo social; como profissional de certa profissão; como seguidor de determinadas ideias religiosas, metafísicas, filosóficas e políticas; como partidário em muitas lutas e controvérsias. Não cria, por si mesmo, suas ideias e padrões de valores; toma-os de empréstimo a outras pessoas. Sua ideologia é influenciada pelo seu meio ambiente. São poucos os homens que têm o dom de pensar ideias novas e originais e de mudar o corpo tradicional de crenças e doutrinas.

O homem comum não especula sobre os grandes problemas. Ampara-se na autoridade de outras pessoas, comporta-se como “um sujeito decente deve comportar-se”, como um cordeiro no rebanho. É precisamente esta inércia intelectual que caracteriza um homem como um homem comum. Entretanto, apesar disso, o homem comum efetivamente escolhe. Prefere adotar padrões tradicionais ou padrões adotados por outras pessoas porque está convencido de que esse procedimento é o mais adequado para atingir o seu próprio bem estar.

E está apto a mudar sua ideologia e, consequentemente, o seu modo de ação, sempre que estiver convencido de que a mudança servirá melhor a seus interesses. A maior parte do comportamento cotidiano de um homem é pura rotina. Pratica determinados atos sem lhes emprestar uma atenção especial. Muitas coisas fazem porque foi treinado em sua infância para fazê-las, porque outras pessoas comportam-se da mesma maneira e porque é esse o costume em seu meio. Adquire hábitos, desenvolve reações automáticas. Condescende com esses hábitos somente porque aprecia seus efeitos. Tão logo percebe que agir da forma habitual pode dificultar a obtenção de fins desejados, muda seu comportamento. Um homem criado num local onde a água é limpa adquire o hábito de descuidadamente bebê-la ou usá-la para banho e limpeza. Mas, quando se muda para outro local onde a água é poluída e insalubre, dedicará a maior atenção a procedimentos e cautelas com os quais não se preocupava antes. Deixa de proceder de acordo com a rotina tradicional e automática, com o objetivo de preservar sua saúde. O fato de uma ação ser praticada normalmente, de um modo que poderíamos denominar de automático não significa que não seja graças a uma vontade consciente e a uma escolha deliberada.

Condescender com uma rotina que possivelmente poderia ser mudada também é ação.

A praxeologia não se ocupa do conteúdo variável da ação, mas de sua forma pura e de sua estrutura categorial. O estudo dos aspectos ambientais e acidentais da ação humana é tarefa da história.

7. O escopo e o método específico da história

O escopo da história é o estudo de todos os dados relativos à ação humana. O historiador recolhe e analisa criticamente todos os documentos disponíveis. Com base nas informações encontradas desenvolve o seu trabalho.

Tem sido afirmado que a tarefa da história é a de mostrar como os eventos aconteceram, sem sujeitá-los a pressuposições e valores (wertfrei, isto é, neutro em relação a julgamentos de valor). O relato do historiador deveria ser uma imagem fiel do passado, como se fosse uma fotografia intelectual, fornecendo uma completa e imparcial descrição dos fatos. Deveria reproduzir, diante de nosso intelecto, o passado com todas as suas características.

Ora, uma reprodução real do passado requereria uma duplicação humanamente impossível de se conseguir. A história não é uma reprodução intelectual, mas uma representação condensada do passado em termos conceituais. O historiador não deixa, meramente, que os fatos falem por si. Na formulação de sua narrativa, o historiador ordena os fatos segundo o ponto de vista das ideias subjacentes à sua exposição. Não relata os fatos como aconteceram, mas apenas os fatos relevantes. Não aborda os documentos livre de pressuposições, mas equipado com todo o aparato do conhecimento científico de sua época, ou seja, com todos os ensinamentos contemporâneos da lógica matemática, da praxeologia e da ciência natural.

É óbvio que o historiador não se deve deixar influenciar por preconceitos ou por dogmas partidários. Aqueles que consideram os eventos históricos como instrumentos para apoio das teses defendidas por seu partido não são historiadores, mas propagandistas e apologistas. Não pretendem adquirir conhecimento, mas, apenas, justificar o programa de seus partidos. Estão lutando pelos dogmas de uma doutrina metafísica, religiosa, nacional, política ou social. Usam o nome de história como fachada, com o intuito de iludir os crédulos. Um historiador deve, antes de tudo, procurar obter o conhecimento. Deve libertar-se de qualquer parcialidade. Deve ser neutro em relação a qualquer julgamento de valor.

O aludido postulado da Wertfreiheit pode ser facilmente obedecido no campo da ciência apriorística — lógica matemática e praxeologia — e no campo da ciência natural. Não é difícil estabelecer logicamente a linha de separação entre um tratamento científico, imparcial, essas disciplinas e um tratamento deformado pela superstição, ideias preconcebidas e paixão.

No caso da história é muito mais difícil respeitar o requisito da neutralidade de julgamento de valor, porque o tema dessa disciplina — o real conteúdo acidental e ambiental da ação humana — consiste exatamente em julgamentos de valor. Ao exercer a sua atividade, o historiador está sempre fazendo julgamentos de valor. Os julgamentos de valor dos homens cujas ações ele relata são o substrato de suas investigações.

Tem sido afirmado que o historiador não pode evitar julgamentos de valor. Nenhum historiador — nem mesmo o cronista ingênuo ou o repórter de jornal — registra os fatos como acontecem. Ele tem que discriminar que selecionar alguns eventos que considera dignos de serem registrados, e silenciar sobre outros. Essa escolha implica em si mesma, um julgamento de valor. É necessariamente condicionada pela visão que o historiador tem do mundo e, portanto, não é imparcial e sim o resultado de ideias preconcebidas. A história não pode ser nada além do que uma distorção de fatos; nunca pode ser verdadeiramente científica, isto é, neutra em relação a valores, pretendendo apenas descobrir a verdade.

Não há dúvida de que pode haver abuso no arbítrio que a seleção de fatos coloca nas mãos do historiador. Pode ocorrer, e tem ocorrido que a escolha do historiador seja orientada por preconceitos partidários. Não obstante, os problemas em questão são muito mais complicados do que parecem. Sua solução deve ser buscada com base num exame mais profundo dos métodos da história.

Ao lidar com um problema histórico, o historiador usa todo o conhecimento proporcionado pela lógica, matemática, ciências naturais e, especialmente, pela praxeologia. Contudo, as ferramentas mentais proporcionadas por essas disciplinas não históricas não são suficientes para que o historiador desempenhe sua tarefa. Embora sejam ajudas indispensáveis, não são suficientes para responder às questões que lhe são colocadas.

O curso da história é determinado pelas ações dos indivíduos e pelos efeitos dessas ações. As ações são determinadas pelos julgamentos de valor dos agentes individuais, isto é, pelos fins que pretendem obter e pelos meios que utilizam para atingir esses fins. A escolha dos meios é o resultado de todo um conjunto de conhecimentos tecnológico dos agentes individuais. Em muitos casos, é possível avaliar os efeitos dos meios escolhidos do ponto de vista da praxeologia ou das ciências naturais. Mas ainda persiste muita coisa cuja elucidação não pode ser conseguida apenas com a ajuda dessas disciplinas.

A tarefa específica da história, para a qual utiliza um método específico, é o estudo desses julgamentos de valor e dos efeitos das ações, na medida em que não possam ser analisados à luz dos ensinamentos de outros ramos do conhecimento. O problema genuíno do historiador está em interpretar as coisas tal como aconteceram. Mas não consegue fazê-lo baseando-se unicamente nos teoremas das outras ciências. Sempre remanesce no fundo de cada um de seus problemas algo que resiste à análise feita com base nos ensinamentos das outras ciências. Estas são as características singulares e peculiares a cada evento histórico e só podem ser analisadas recorrendo-se à compreensão.[19]

A unicidade ou individualidade que existe no fundo de qualquer fato histórico, quando já se exauriram todas as possibilidades de interpretá-lo pela lógica, pela matemática, pela praxeologia e pelas ciências naturais, é um dado irredutível. Mas, se as ciências naturais diante de seus dados irredutíveis não têm alternativas a não ser a de aceitá-los como tal, história pode pretender explicar seus dados irredutíveis. Embora não seja possível explicar suas causas — não seriam dados irredutíveis se tal explicação fosse possível -, o historiador pode tentar compreendê-los por ser ele mesmo um ser humano. Na filosofia de Bergson, essa compreensão é chamada de intuição, ou seja, “la sympathie par laquelle on se transporte à l’intérieur d’un objet pour coïncider avec ce qu’il a d’unique et par conséquent d’inexprimable”.[20] A epistemologia alemã nos fala das spezifische Verstehen der Geisteswissenschaften ou, simplesmente, Verstehen. É o método que todos os historiadores e todas as pessoas aplicam quando comentam eventos humanos passados ou quando tentam prever eventos futuros. A descoberta e a delimitação dessa compreensão foi uma das mais importantes contribuições da epistemologia moderna. Não é, certamente, um projeto para uma nova ciência que ainda não existe e que deve ser criada, nem tampouco uma recomendação para um novo método a ser aplicado nas ciências já existentes.

A compreensão não deve ser confundida com aprovação ainda que condicional ou circunstancial. O historiador, o etnólogo e o psicólogo às vezes registram ações que são, no seu entender, repulsivas e repugnantes; eles as compreendem apenas como ações, ou seja, estabelecendo os propósitos subjacentes e os meios tecnológicos e praxeológicos empregados na sua execução. Compreender um caso individual não significa justificá-lo ou desculpá-lo.

Tampouco se deve confundir a compreensão com o prazer da experiência estética. A empatia (Einfühlung) e a compreensão são duas atitudes completamente diferentes. Uma coisa é compreender uma obra de arte do ponto de vista histórico, determinar seu lugar, significado e importância no fluxo de eventos, e outra são apreciá-la emocionalmente como uma obra de arte. Podemos contemplar uma catedral com os olhos de um historiador. Mas também podemos contemplá-la, seja com entusiástica admiração, seja como um turista indiferente. Os mesmos indivíduos são capazes de ambas as reações: a apreciação estética e a compreensão científica.

A compreensão registra o fato de que um indivíduo ou um grupo de indivíduos se engaja numa determinada ação impelida por determinadas escolhas e julgamentos de valor e pelo desejo de atingir determinados fins, aplicando, para a obtenção desses fins, determinados meios que lhe são sugeridos por determinadas doutrinas tecnológicas, terapêuticas e praxeológicas. Além disso, procura avaliar a intensidade dos efeitos ocasionados por uma ação; tenta atribuir a cada ação a sua relevância, ou seja, sua particular influência no curso dos acontecimentos.

O escopo da compreensão é a percepção mental de fenômenos que não podem ser plenamente elucidados pela lógica, matemática, praxeologia, nem pelas ciências naturais; sua investigação prossegue quando estas disciplinas já não têm contribuição a oferecer. Ao mesmo tempo, não pode contradizer os ensinamentos desses outros ramos do conhecimento.[21] A existência real do demônio é atestada por inúmeros documentos históricos que são bastante confiáveis sob muitos aspectos. Muitos tribunais, funcionando com plenas garantias processuais, com base no depoimento de testemunhas e na confissão dos acusados, proclamaram a existência de relações carnais entre o diabo e as bruxas. Não obstante, nenhum apelo à compreensão justificaria a tentativa de algum historiador afirmar que o diabo realmente existiu e interferiu em eventos humanos, a não ser nas perturbações visionárias de algum cérebro humano.

Enquanto isto é normalmente aceito no que diz respeito às ciências naturais, existem historiadores que adotam outra atitude quanto à teoria econômica. Tentam objetar os teoremas da economia apelando para documentos que presumivelmente conteriam provas de que a realidade seria incompatível com tais teoremas. Não percebem que fenômenos complexos não podem provar ou refutar qualquer teorema e, portanto, não podem ser confrontados com qualquer afirmação teórica. A história econômica só é possível porque existe uma teoria econômica capaz de explicar as consequências das ações econômicas. Se não houvesse uma teoria econômica, toda a história relativa a fatos econômicos não seria mais do que uma coleção de dados desconexos, sujeita a qualquer interpretação arbitrária.

8. Concepção e compreensão

As ciências da ação humana têm como tarefa a compreensão do significado e da relevância da própria ação humana. Para isso, recorrem a dois procedimentos epistemológicos diferentes: concepção e compreensão. A concepção é a ferramenta mental da praxeologia; compreensão é a ferramenta mental específica da história.

O conhecimento praxeológico é conhecimento conceitual. Refere-se ao que é indispensável na ação humana. É conhecimento de categorias e proposições universais.

O conhecimento da história refere-se ao que é único e peculiar em cada classe de eventos. Primeiramente, analisa cada objeto de seu estudo com o auxílio das ferramentas mentais proporcionadas por todas as outras ciências. Tendo concluído este trabalho preliminar, enfrenta o seu problema específico: a elucidação das características singulares e específicas de cada caso por meio da compreensão.

Como foi mencionado acima, tem sido afirmado que a história não pode ser científica porque a compreensão da história depende dos julgamentos de valor do historiador. A compreensão, afirmam, é apenas um termo eufemista para designar arbitrariedade. Os escritos dos historiadores são sempre unilaterais e parciais; não relatam os fatos; deformando-os.

É um fato irrefutável o de que livros sobre história são escritos a partir de vários pontos de vista. Existem histórias da Reforma escritas tanto do ponto de vista católico como do protestante. Existem histórias “proletárias” e histórias “burguesas”; existem historiadores conservadores e historiadores liberais. Cada nação, partido e grupo linguístico tem seus próprios historiadores e suas próprias ideias sobre história.

Mas o problema que essas diferenças de interpretação acarretam não deve ser confundido com a distorção intencional de fatos feita por propagandistas e apologistas disfarçados de historiadores. Aqueles acontecimentos que possam ser explicados de forma inquestionável, com base na documentação existente, devem ser estabelecidos preliminarmente pelo historiador. Nestes casos, não cabe a interpretação pessoal. É uma tarefa a ser realizada com o emprego das ferramentas fornecidas pelas ciências não históricas. As informações são coligidas através de uma cautelosa e crítica observação dos registros existentes. Sempre que as teorias das ciências não históricas, nas quais o historiador se baseia para examinar criticamente as fontes de informação, são razoavelmente confiáveis ou certas, não pode haver discordâncias importantes quanto à interpretação das informações. As afirmativas do historiador ou estão certas ou contrariam a realidade, podem ser provadas ou refutadas com base nos documentos disponíveis; ou então são vagas, porque as fontes não nos fornecem informação suficiente. Neste caso, os autores podem discordar, mas apenas com base numa interpretação sensata das evidências disponíveis. Na discussão em torno dessas divergências não cabem afirmativas arbitrárias.

Entretanto, os historiadores frequentemente divergem em relação aos ensinamentos das ciências não históricas. Resultam, então, divergências em relação ao exame crítico dos registros disponíveis e em relação às conclusões que deles derivam. Surge um conceito incontornável, cuja causa não decorre de interpretação contraditória em relação ao acontecimento histórico em questão, mas de uma controvérsia não resolvida, relacionada com as ciências não históricas.

Um antigo historiador chinês poderia relatar que os pecados do imperador provocaram uma seca catastrófica e que as chuvas só voltaram quando ele expiou suas faltas.

Nenhum historiador moderno aceitaria este relato, porque tal explicação meteorológica contraria fundamentos incontestáveis da ciência contemporânea. Mas a mesma unanimidade não existe em relação a inúmeras questões teológicas, biológicas ou econômicas. Daí as divergências entre os historiadores.

Um defensor da doutrina racial do arianismo nórdico consideraria como espantoso e simplesmente inacreditável um relato sobre realizações morais e intelectuais de raças “inferiores”. Trataria tais relatos da mesma maneira com que os historiadores modernos tratariam o relato do historiador chinês. Nenhum acordo pode ser alcançado, em relação à história do cristianismo, entre autores que consideram os evangelhos como escrituras sagradas e os que os consideram como documentos humanos. Historiadores católicos e protestantes discordam acerca de muitas questões de fato porque partem de ideias teológicas diferentes. Um mercantilista ou um neomercantilista sempre divergirá de um economista. Uma explicação da história monetária alemã dos anos de 1914 a 1923 estará condicionada pelas doutrinas monetárias do autor. Os fatos da Revolução Francesa são apresentados de maneira diferente por aqueles que acreditam nos direitos sagrados do rei e aqueles que defendem outros pontos de vista.

Os historiadores divergem nessas questões, não em decorrência de sua capacidade como historiadores, mas na aplicação das ciências não históricas aos temas históricos.

Discordam como os médicos agnósticos discordam em relação aos milagres de Lourdes, da comissão médica designada para recolher as provas relativas àqueles milagres. Somente os que acreditam que os fatos escrevem sua própria história na tabula rasa da mente humana culpam os historiadores por tais diferenças de opinião. Não percebem que a história não pode ser estudada sem pressuposições, de tal sorte que são as divergências em relação às pressuposições, ou seja, em torno do conteúdo dos ramos não históricos do conhecimento, que determinam o sentido da narrativa dos fatos históricos.

São também essas pressuposições que determinam a decisão do historiador relativa à escolha dos fatos que devem ser mencionados e dos que devem ser omitidos por serem considerados irrelevantes. Para descobrir por que uma vaca não está dando leite, um veterinário moderno não considerará como há trezentos anos se consideravam informações relativas à maldição de alguma bruxa. Da mesma maneira, o historiador seleciona, da infinidade de acontecimentos que precederam o fato objeto de seu estudo, aqueles que poderiam contribuir para o seu surgimento — ou para o seu retardamento — e negligencia aqueles que, de acordo com sua compreensão das ciências não históricas, não o influenciam.

Mudanças nos ensinamentos das ciências não históricas implicam, consequentemente, reescrever a história. Cada geração tem que rever de novo os mesmos problemas históricos porque estes lhe aparecem sob uma nova luz. A antiga visão teológica do mundo conduziu a um enfoque da história diferente daquele sugerido pelos ensinamentos da ciência natural moderna. A teoria econômica subjetivista dá lugar a um relato histórico completamente diferente daquele que se baseia em doutrinas mercantilistas. Na medida em que as divergências entre os historiadores se originem dessas discordâncias, não é o resultado de uma suposta imprecisão ou incerteza nos estudos históricos. Ao contrário, é o resultado da falta de unanimidade no campo dessas outras ciências que são comumente chamadas de ciências exatas.

Para evitar possíveis equívocos, é necessário enfatizar alguns outros pontos. As divergências acima referidas não devem ser confundidas:

1. Com distorções mal-intencionadas dos fatos.

2. Com tentativas para justificar ou condenar ações de um ponto de vista legal ou moral.

3. Com a inserção, meramente incidental, de observações que impliquem julgamentos de valor, numa exposição rigorosa e objetiva sobre determinados assuntos. A objetividade de um tratado de bacteriologia não fica prejudicada se o seu autor, adotando o ponto de vista humano, considera a preservação da vida humana como um bem supremo e, aplicando este critério, qualifica como bom um método eficaz de matar germes e, como mau, um método que seja ineficaz. Um germe se escrevesse este livro, inverteria estes julgamentos, embora o conteúdo material do livro não diferisse do escrito pelo bacteriologista. Da mesma maneira, um historiador europeu, ao tratar das invasões mongólicas do século XIII pode falar de acontecimentos “favoráveis” ou “desfavoráveis”, porque adota o ponto de vista dos defensores da civilização ocidental. Mas a adoção dos valores de uma das partes não interfere necessariamente no conteúdo material do seu estudo. Pode — do ponto de vista do conhecimento contemporâneo — ser absolutamente objetivo. Um historiador mongol poderia endossá-lo completamente, salvo quanto àquelas observações incidentais.

4. Com o exame feito por uma das partes nos casos de antagonismos militares ou diplomáticos, a luta de grupos em conflito pode ser tratada do ponto de vista das ideias, motivos e desejos que impulsionaram um dos lados em disputa. Para um completo entendimento do que aconteceu, é necessário considerar as ações de ambos os lados. O resultado é o produto da interação de ambas as partes. Mas, para compreender suas ações, o historiador deve tentar ver como as coisas se apresentaram ao agente homem no momento crítico e não apenas como as vemos hoje, amparados por todo o conhecimento contemporâneo. A história da política de Lincoln nas semanas e meses que precederam a Guerra Civil é, sem dúvida, incompleta. Na realidade, nenhum estudo histórico é completo. Independente da simpatia que possa ter pelos confederados ou pelos nortistas, ou mesmo sendo neutro, o historiador deve tratar, de maneira objetiva, a política de Lincoln na primavera de 1861. Tal investigação é uma preliminar indispensável para responder à questão maior de como irrompeu a Guerra Civil.

Finalmente, aclarados estes problemas, podemos enfrentar a verdadeira questão: existe algum elemento subjetivo na compreensão da história e, se existe, de que maneira influencia o resultado dos estudos históricos?

Na medida em que a tarefa da compreensão seja estabelecer que as pessoas agissem motivadas por determinados julgamentos de valor e objetivando determinados fins, não pode haver discordância entre autênticos historiadores, isto é, aqueles desejosos de compreender efetivamente como ocorreram os acontecimentos passados. Pode haver incerteza, devido à insuficiência de informações. Mas isso nada tem a ver com a compreensão. Refere-se ao trabalho preliminar a ser realizado pelo historiador.

Entretanto, a compreensão tem outra tarefa a cumprir. Deve avaliar os efeitos produzidos por uma ação e a intensidade dos mesmos; deve lidar com a relevância das causas de cada ação.

Defrontamo-nos agora com uma das principais diferenças entre a física e a química, de um lado, e as ciências da ação humana, do outro. No domínio dos eventos físicos e químicos existem (ou, pelo menos, é correntemente aceitável que existam) relações constantes entre magnitudes, e o homem é capaz de descobrir essas constantes com um razoável grau de precisão, através de experiências de laboratório. No campo da ação humana, não existem tais relações constantes. Os economistas acreditaram, por algum tempo, que haviam descoberto uma relação constante entre as variações da quantidade de moeda e o preço das mercadorias. Supunham que um aumento ou diminuição da quantidade de moeda em circulação resultaria numa variação proporcional no preço das mercadorias. A economia moderna já demonstrou clara e irrefutavelmente a falácia desta suposição.[22] Estão inteiramente equivocados os economistas que pretendem substituir o que chamam de “economia qualitativa” por uma “economia quantitativa”. Não existem, no campo da economia, relações constantes e, consequentemente, nenhuma medição é possível. Se um estatístico conclui que um aumento de 10% na oferta de batatas em Atlantis, num determinado momento, foi acompanhado de uma queda de 8% no preço, não está estabelecido de forma alguma o que aconteceu ou o que poderá acontecer com uma variação na oferta de batatas em qualquer outro país ou em qualquer outro momento. Não “mediu” a “elasticidade da demanda” das batatas. Apenas estabeleceu um fato histórico único e específico. Nenhum homem inteligente duvida de que o comportamento dos homens em relação a batatas ou a qualquer outra mercadoria é variável. As pessoas avaliam as coisas de maneira diferente; a mesma pessoa muda sua avaliação quando mudam as circunstâncias.[23]

Fora do campo da história econômica, ninguém jamais ousou afirmar que prevalecem relações constantes na história humana. Nos conflitos armados do passado, um soldado europeu equivalia a vários soldados de povos mais atrasados. Mas ninguém cometeria a tolice de “medir” a dimensão da superioridade europeia.

A impraticabilidade da medição não decorre da falta de meios técnicos para a efetivação da medida. Deve-se à ausência de relações constantes. Se o problema fosse apenas de insuficiência técnica, pelo menos uma estimativa aproximada seria possível em alguns casos. Não é possível porque o problema principal está no fato de que não existem relações constantes. Os ignorantes positivistas repetem frequentemente que a economia é uma disciplina retrógrada por não ser “quantitativa”.

Ela não é quantitativa e não pode efetuar medições porque não existem constantes. Dados estatísticos referentes a eventos econômicos são dados históricos. Referem-se àquilo que já aconteceu numa situação histórica e que não acontecerá de novo. Fenômenos físicos podem ser interpretados com base no nosso conhecimento das relações constantes descobertas pela experimentação. Os acontecimentos históricos não permitem idêntico tratamento.

O historiador pode enumerar todos os fatores que contribuíram para provocar um determinado acontecimento, bem como todos os que o dificultaram ou concorreram para retardá-lo ou abrandá-lo. Mas não pode, a não ser pela compreensão, relacionar quantitativamente os vários fatores causais com os efeitos produzidos. Não pode, a não ser pela compreensão, atribuir, a cada um dos n fatores, seu peso, sua importância na produção do efeito P. No âmbito da história, a compreensão equivale, por assim dizer, à análise quantitativa e à medição.

A tecnologia nos pode dizer à espessura que deve ter uma chapa de aço para não ser perfurada por um tiro de um fuzil Winchester a uma distância de trezentas jardas. Pode, portanto, explicar por que um homem que se protegeu com uma chapa de aço de espessura conhecida foi ou não atingido por um tiro. A história, por outro lado, é incapaz de explicar com a mesma segurança por que o preço do leite subiu 10%, ou por que o presidente Roosevelt derrotou o governador Dewey nas eleições de 1944, ou por que a França adotou de 1870 a 1946 uma constituição republicana. Tais problemas só podem ser abordados pela compreensão.

A compreensão tenta atribuir a cada fator histórico sua relevância. Ao utilizar a compreensão, não podemos recorrer à arbitrariedade nem ao capricho. A liberdade do historiador é limitada pelo seu empenho de explicar satisfatoriamente uma realidade. Sua aspiração maior deve ser a busca da verdade. Mas há, na compreensão, necessariamente, um elemento de subjetividade. A compreensão do historiador está, sempre, matizada pelos traços de sua personalidade. Reflete sua mentalidade.

As ciências apriorísticas — a lógica, a matemática e a praxeologia — pretendem formular conclusões válidas incondicionalmente para todos os seres dotados da estrutura lógica da mente humana. As ciências naturais buscam obter conhecimentos válidos para todos os seres dotados não só da faculdade de raciocinar, mas também dos sentidos humanos. A uniformidade da lógica e das sensações humanas confere a esses ramos do conhecimento o caráter de validade universal. Pelo menos é esse o princípio que norteava o estudo dos físicos.

Somente em anos recentes começaram eles a perceber os limites dos seus esforços e, abandonando a excessiva pretensão dos físicos mais antigos, descobriram o “princípio da incerteza”. Admite, hoje, que existem fatos inobserváveis cuja impossibilidade de observação é uma questão epistemológica.[24]

A compreensão histórica nunca pode chegar a conclusões que sejam aceitas por todas as pessoas. Dois historiadores que estejam de inteiro acordo no que diz respeito aos ensinamentos das ciências não históricas e que também estejam de acordo em relação à interpretação dos fatos a serem considerados poderão discordar quanto à compreensão da relevância desses fatos. Podem estar de inteiro acordo ao estabelecer que os fatos a, b e c contribuíram para produzir o efeito P; não obstante, poderá discordar profundamente quanto à relevância da contribuição de a, b e c para produzir o resultado final. Na medida em que a compreensão pretende atribuir a cada fator a sua relevância, está sujeita à influência de julgamentos subjetivos. Certamente, estes não são julgamentos de valor, nem expressam as preferências do historiador. São julgamentos de relevância.[25]

Os historiadores podem divergir por várias razões. Podem adotar pontos de vista diferentes em relação aos ensinamentos das ciências não históricas; podem basear seu raciocínio no maior ou menor conhecimento dos dados históricos; podem ter uma compreensão diferente acerca dos motivos e objetivos dos agentes homens e dos meios que utilizaram. Sobre todas essas divergências, pode haver acordo mediante um exame racional “objetivo”; é possível alcançar um acordo em termos gerais. Mas quando os historiadores divergem com respeito a julgamentos de relevância, é impossível encontrar uma solução aceitável a todos os homens sensatos.

Os métodos intelectuais da ciência não diferem, em espécie, daqueles aplicados pelo homem comum no seu raciocínio cotidiano. O cientista utiliza as mesmas ferramentas que o leigo, embora com maior precisão e perícia. A compreensão não é um privilégio dos historiadores. Qualquer pessoa faz uso dela. Quando observa as condições de seu meio ambiente, qualquer pessoa é um historiador. Todas as pessoas usam a compreensão ao lidar com a incerteza de eventos futuros aos quais precisam ajustar suas próprias ações. O que distingue o raciocínio de um especulador é a compreensão que tem da relevância dos fatores que determinarão os eventos futuros. E — deixem-nos enfatizar mesmo neste princípio de nossas investigações — a ação visa sempre a situações futuras e, portanto, incertas. Sendo assim, é sempre especulação. O agente homem olha o futuro, por assim dizer, com olhos de historiador.

História natural e história humana

A cosmogonia, a geologia e a ciência que se ocupa das mutações biológicas são disciplinas históricas na medida em que lidam com eventos específicos do passado. Entretanto, utilizam os mesmos métodos epistemológicos das ciências naturais e, portanto, não precisam recorrer à compreensão. Às vezes, recorrem a estimativas aproximadas das magnitudes que são objeto de seu estudo. Mas tais estimativas não são julgamentos de relevância. São apenas um método de determinar relações quantitativas menos perfeito do que uma medição “exata”. Não devem ser confundidas com a situação no campo da ação humana, que se caracteriza pela ausência de relações constantes.

Quando falamos de história, o que temos em mente é apenas história da ação humana, cuja ferramenta mental específica é a compreensão.

A afirmativa de que a moderna ciência natural deve todo seu progresso ao método experimental é algumas vezes criticada, fazendo-se referência ao caso da astronomia. Ora, a astronomia moderna é essencialmente uma aplicação das leis físicas, descobertas experimentalmente em nosso planeta, aos corpos celestes. Antigamente, a astronomia estava baseada, sobretudo, na suposição de que os movimentos dos corpos celestes eram imutáveis.

Copérnico e Kepler simplesmente tentaram descobrir que tipo de curva a Terra faz em torno do Sol. Como o círculo era considerado a curva “mais perfeita”, Copérnico o escolheu para a sua teoria. Mais tarde, por idêntica suposição, Kepler substituiu o círculo pela elipse. Somente depois dos descobrimentos de Newton é que a astronomia tornou-se, verdadeiramente, uma ciência natural.

9. Sobre tipos ideais

A história lida com eventos singulares que não se repetem no fluxo irreversível dos acontecimentos humanos. Um evento histórico não pode ser descrito sem que se faça referência às pessoas nele envolvidas e ao local e data de sua ocorrência. Se um acontecimento pode ser narrado sem a necessidade de tais referências, não é um evento histórico, mas um fato das ciências naturais.

A informação de que o professor X, no dia 20 de fevereiro de 1945, realizou determinada experiência em seu laboratório é uma informação de natureza histórica. O físico considera, entretanto, que devemos abstrair-nos da pessoa do experimentador e da data e local da experiência. Considera apenas as circunstâncias que, em sua opinião, têm importância para atingir o resultado pretendido; essas circunstâncias, quando repetidas, produzirão de novo o mesmo resultado. Transforma o evento histórico num fato das ciências naturais empíricas. Desdenha a ativa participação do experimentador e tenta imaginar-se como um observador imparcial, narrando à realidade. Não compete à praxeologia tratar desses problemas epistemológicos.

Embora os eventos históricos sejam singulares e não se repitam, sua característica comum consiste no fato de ser, sempre, ação humana. A história os entende como ações humanas; concebe o seu significado por meio da cognição praxeológica e tenta compreender este significado pesquisando seus aspectos específicos e individuais. O que importa para a história é sempre o significado que os homens atribuem em cada caso: o significado que atribuem à situação que pretendem alterar, o significado que atribuem às suas ações e o significado que atribuem aos efeitos produzidos por suas ações.

O aspecto segundo o qual a história ordena e classifica a infinita variedade de eventos é o seu significado. O único princípio que aplica para sistematização do objeto de seus estudos — homens, ideias, instituições, entidades sociais e artefatos — é a afinidade de seus significados. De acordo com esta afinidade de significados é que a história concebe os tipos ideais.

Os tipos ideais são conceitos específicos empregados na investigação histórica e na apresentação de seus resultados. São conceitos de compreensão e, como tal, são inteiramente diferentes dos conceitos e categorias praxeológicos e dos conceitos das ciências naturais. Um tipo ideal não é um conceito de classe, porque sua descrição não indica os elementos característicos cuja presença determina com precisão e sem ambiguidade a que classe pertence. Um tipo ideal não pode ser definido; deve ser caracterizado pela enumeração dos aspectos cuja presença, de um modo geral, determina se, num caso concreto, estamos ou não diante do tipo ideal em questão. É peculiar ao tipo ideal o fato de que nem todas as características precisam estar sempre presentes. Se a falta de algumas características impede, ou não, que se considere um determinado espécime como tipo ideal depende do julgamento de relevância que é feito pela compreensão. O tipo ideal, em si mesmo, é o resultado de uma compreensão dos motivos, ideias e objetivos dos indivíduos agentes e dos meios de que se utilizam.

Um tipo ideal não tem nada a ver com dados estatísticos ou com médias. A maior parte de suas características não é passível de determinação numérica e, por esta razão, não poderia ser objeto do cálculo de médias. Mas esta não é a razão principal. Estatísticas médias indicam o comportamento dos membros de uma classe ou de um tipo já definido em relação a aspectos que têm em comum, aspectos estes que não são os mesmos que foram adotados para defini-lo. O fato de já pertencer a uma classe ou a um tipo deve ser do conhecimento do estatístico antes de começar a investigar outros aspectos e de utilizar o resultado dessa investigação para o estabelecimento de médias. Podemos calcular a idade média dos senadores ou podemos calcular médias relativas a algum aspecto específico para todas as pessoas de uma mesma idade. Mas é logicamente impossível dizer que uma pessoa é membro de uma classe em função de dados médios.

Nenhum problema histórico pode ser tratado sem a ajuda dos tipos ideais. Mesmo quando o historiador lida com um só personagem ou com um único evento, não tem como evitar a referência a tipos ideais. Fala-se de Napoleão, tem que se reportar a tipos ideais como comandante, ditador, líder revolucionário; se trata da Revolução Francesa, utiliza tipos ideais como revolução, desintegração de um regime estabelecido, anarquia.

Às vezes, a referência a um tipo ideal consiste meramente no registro de sua inaplicabilidade ao caso em questão. De qualquer forma, todos os eventos históricos são descritos e interpretados com base em tipos ideais. O leigo, também, ao lidar com eventos do passado ou do futuro, faz uso, ainda que inconscientemente, de tipos ideais.

Se a alusão a um determinado tipo ideal é ou não útil e conveniente para a percepção adequada dos fenômenos, é algo que só pode ser determinado por meio da compreensão. Não é o tipo ideal que determina a compreensão; ao contrário, é o desejo de uma melhor compreensão que requer a elaboração e a utilização dos tipos ideais.

Os tipos ideais são elaborados utilizando-se ideias e conceitos formulados pelas ciências não históricas. Qualquer cognição de fenômenos históricos está condicionada pelos ensinamentos de outras ciências, depende delas e não pode jamais contradizê-las. Mas o conhecimento histórico lida com temas e métodos diferentes dos das outras ciências, as quais, por sua vez, não utilizam a compreensão. Consequentemente, os tipos ideais não devem ser confundidos com conceitos das ciências não históricas, nem tampouco com conceitos e categorias praxeológicas. Eles — os tipos ideais — nos proporcionam, certamente, as ferramentas mentais indispensáveis ao estudo da história. Entretanto, não nos proporcionam a compreensão de eventos singulares que constituem o próprio tema da história. Um tipo ideal, portanto, nunca pode resultar exclusivamente de um conceito praxeológico.

Ocorre com frequência que um termo usado pela praxeologia para designar um conceito praxeológico também é utilizado pelo historiador para designar um tipo ideal. Neste caso, o historiador usa uma mesma palavra para expressar duas coisas diferentes. O termo é aplicado, às vezes, com seu significado praxeológico e, mais frequentemente, para designar um tipo ideal. Neste último caso, o historiador atribui ao termo em questão um significado diferente daquele que lhe atribui a praxeologia; transforma o seu significado ao transferi-lo para outro campo de conhecimento. O conceito da palavra “empresário” para a economia é diferente do que é atribuído pela história econômica ao tipo ideal “empresário”. (Um terceiro conceito para a mesma palavra é o seu significado legal). O conceito econômico da palavra “empresário” é um conceito precisamente definido e que representa uma função claramente integrada na estrutura de uma teoria econômica de mercado.[26] O tipo ideal “empresário”, como entendido pela história, não abrange as mesmas pessoas. Ninguém, ao se referir ao “empresário” do ponto de vista histórico, estará referindo-se ao engraxate, ao motorista de seu próprio táxi, ao pequeno comerciante ou ao pequeno agricultor. O que a economia estabelece com relação à função empresarial é rigorosamente válido para qualquer empresário, independentemente de quaisquer condições geográficas ou temporais e dos diversos ramos de atividade. O que a história econômica estabelece para seus tipos ideais pode variar em função das circunstâncias particulares de idade, país, ramo de negócio e muitas outras condições. Para a história, tem pouca utilidade um conceito geral de empresário. Interessa-se mais por tipos de empresários, tais como o americano da época de Jefferson, o alemão da indústria pesada no tempo de Guilherme II, o da indústria têxtil da Nova Inglaterra nas décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial, o protestante da haute finance de Paris, os empresários autodidatas etc., etc.

Se a utilização de um determinado tipo ideal é recomendável, ou não, depende essencialmente do modo como compreendemos os acontecimentos. É muito comum, hoje em dia, recorrer a dois tipos ideais: o regime político dos partidos de esquerda (progressista) e o dos partidos de direita (fascistas). Entre os primeiros, encontram-se as democracias ocidentais, algumas ditaduras latino-americanas e o bolchevismo russo; o segundo compreende o fascismo italiano e o nazismo alemão. Esta tipificação é o resultado de um determinado modo de compreensão. Outro modo seria contrastar democracia e ditadura.

Neste caso, o bolchevismo russo, o fascismo italiano, o nazismo alemão e a ditadura latina americana fariam parte do tipo ideais ditadura e os sistemas ocidentais pertenceriam ao tipo ideal democracia.

A Escola Historicista de Wirtschaftliche Staatswissenschaften[27] na Alemanha, e o Institucionalismo, nos Estados Unidos, cometeram um erro fundamental ao considerar a economia como uma ciência que estuda o comportamento de um tipo ideal, o homo oeconomicus. De acordo com essa doutrina, a economia clássica ou ortodoxa não lida com o homem como ele realmente é e se limita a analisar a conduta de um ser fictício ou hipotético guiado exclusivamente por motivos “econômicos”, isto é, pelo desejo de conseguir o maior ganho possível, material ou monetário. Este suposto personagem, fruto da imaginação de uma filosofia espúria, não tem, nem nunca teve contrapartida na realidade. Nenhum homem é motivado exclusivamente pelo desejo de se tornar tão rico quanto possível; muitos sequer são influenciados por este anseio desprezível. É desnecessário, ao se estudar a vida e a história, perder tempo ocupando-se de tal homúnculo irreal.

Mesmo que fosse esse o significado da economia clássica, o homo oeconomicus certamente não seria um tipo ideal. O tipo ideal não é apenas a personificação de uma faceta ou de um aspecto dos vários desejos e objetivos do homem. É a representação de fenômenos complexos da realidade tanto de homens como de instituições ou de ideologias.

Os economistas clássicos tentaram explicar a formação dos preços. Tinham plena consciência do fato de que preços não é um produto das atividades de um grupo de pessoas, mas o resultado de uma interação de todos aqueles que atuam no mercado. Era esse o significado de sua afirmativa segundo a qual a oferta e a procura determinam a formação de preços. Entretanto, os economistas clássicos falharam nas suas tentativas de estabelecer uma teoria de valor que fosse satisfatória. Não conseguiram encontrar uma explicação para o aparente paradoxo de valor. Ficaram desorientados diante do pretenso paradoxo que afirma ser o “ouro” mais valioso que o “ferro”, embora este seja mais “útil” que aquele. Por isso não puderam elaborar uma teoria geral de valor e não puderam perceber que o comportamento dos consumidores é a verdadeira fonte dos fenômenos de produção e de troca no mercado. Esta deficiência os forçou a abandonar o ambicioso propósito de desenvolver uma teoria geral da ação humana. Tiveram que se contentar com uma teoria que explicava apenas as atividades dos homens de negócio, sem remontar às escolhas individuais como razões finais, determinantes da ação. Lidaram apenas com as ações dos homens de negócios ansiosos por comprar pelo menor preço e vender pelo mais caro. O consumidor não foi considerado na elaboração de suas teorias. Mais tarde, os epígonos da economia clássica explicaram e justificaram essa deficiência como um procedimento intencional e metodologicamente necessário. Asseguravam que os economistas clássicos restringiam, deliberadamente, o campo de suas investigações a apenas um aspecto da ação humana: o aspecto “econômico”. Asseguravam, ainda, que os economistas clássicos desejavam usar a imagem fictícia de um homem impelido apenas por motivos “econômicos”, embora tivessem plena consciência do fato de que os homens reais são impelidos por muitos outros motivos “não econômicos”. Lidar com estes outros motivos, asseverava um grupo desses exegetas, não é tarefa da economia, mas de outros ramos do conhecimento. Outro grupo admitia que o estudo desses motivos “não econômicos” e de sua influência na formação dos preços também era tarefa da economia, mas acreditavam que devia ser deixada para futuras gerações. Mostraremos, num estágio posterior destas nossas investigações, que essa distinção entre motivos “econômicos” e “não econômicos” da ação humana é insustentável.[28] Por ora o importante é consignar que essa doutrina do lado “econômico” da ação humana deturpa inteiramente os ensinamentos dos economistas clássicos. Nunca afirmaram o que essa doutrina lhes atribui.

Tentaram compreender a verdadeira formação de preços — não de preços fictícios, como os que seriam determinados se os homens agissem sob a influência de hipotéticas condições, diferentes daquelas que realmente ocorrem. Os preços que tentavam explicar e realmente explicam — embora sem remontar suas origens às preferências do consumidor — são preços reais de mercado. A oferta e procura a que se referem são fatores reais determinados por todos os motivos que instigam os homens a comprar ou vender. O que havia de errado na sua teoria era o fato de não associar a demanda às preferências dos consumidores; faltou-lhes uma teoria da demanda que fosse plenamente satisfatória. Mas nunca em seus textos consideraram que a demanda fosse determinada exclusivamente por motivos “econômicos”, no sentido de serem distintos de motivos “não econômicos”. Como restringiram sua teorização às ações dos homens de negócios, não trataram dos motivos do consumidor final. Não obstante, sua teoria dos preços pretendia ser uma explicação dos preços reais, independentemente dos motivos e ideias que impulsionavam os consumidores.

A moderna economia subjetiva tem seu início com o esclarecimento do aparente paradoxo do valor. Nem limita seus teoremas apenas às ações dos homens de negócios, nem lida com um fictício homo oeconomicus. Trata das categorias inexoráveis de qualquer ação humana. Seus teoremas relativos a preços de mercadorias, salários e juros se referem a todos esses fenômenos, sem qualquer referência aos motivos que levavam as pessoas a comprar ou vender ou a se abster de comprar ou de vender. Já é tempo de abandonar inteiramente qualquer referência à tentativa estéril de justificar a deficiência dos economistas mais antigos através do apelo ao ilusório homo oeconomicus.

10. O modo de proceder da economia

O escopo da praxeologia é a explicação da categoria ação humana. Tudo o que precisamos para deduzir qualquer teorema praxeológico é o conhecimento da essência da ação humana. É um conhecimento que já possuímos, porque somos seres humanos; está presente em todos os seres de descendência humana que, por razões patológicas, não tenham sido reduzidos a uma existência meramente vegetativa. Nenhuma experiência especial é necessária para que se compreendam esses teoremas e nenhuma experiência, por mais rica que fosse, poderia revelá-los a um ser que não soubesse, a priori, o que é ação humana. O único modo de perceber estes teoremas é a análise lógica do conhecimento, inerente ao ser humano, do que seja a categoria ação. Precisamos refletir e procurar entender em que consiste a ação humana. Como a lógica e a matemática, o conhecimento praxeológico está em nós; não vem de fora.

Todos os conceitos e teoremas da praxeologia estão implícita na categoria ação humana. A tarefa fundamental consiste em extraí-los e deduzi-los, em explicar suas implicações e definir as condições universais da ação em si. Uma vez conhecidas as condições necessárias para qualquer ação, devemos ir mais adiante e procurar definir — é claro que num sentido formal e categorial — que condições gerais mínimas são necessárias para determinadas formas de ação. Seria possível lidar com esta segunda tarefa delineando todas as condições imaginárias e deduzindo, a partir delas, todas as consequências logicamente possíveis. Um sistema que procurasse tudo compreender estabeleceria uma teoria relativa à ação humana, não apenas como ocorre nas condições e circunstâncias existentes no mundo real onde o homem vive e age. Lidaria também com ações hipotéticas que poderiam ocorrer sob condições irrealizáveis em mundos imaginários.

Porém, o objetivo da ciência é entender a realidade. Não é uma ginástica mental ou um passatempo lógico. Por esse motivo, a praxeologia restringe suas investigações ao estudo da ação sob as condições e pressuposições que existem no mundo real. Somente estuda a ação sob condições que não ocorreram ou que nunca ocorrerão, nas duas hipóteses seguintes: quando trata de situações que, embora não reais mais no presente e no passado, poderiam tornar-se reais no futuro; e quando examina condições irreais ou irrealizáveis se este exame é necessário para uma adequada percepção do que está ocorrendo sob as condições existentes na realidade.

Entretanto, essa referência à percepção da realidade, à experiência, não afeta o caráter apriorístico da praxeologia e da economia. A experiência meramente orienta nossa curiosidade na direção de certos problemas e a desvia de outros. Indica o que devemos pesquisar, mas não nos diz como deveríamos proceder na nossa busca do conhecimento. Além do mais, não é a experiência, mas simplesmente o raciocínio, que nos indica as situações hipotéticas irrealizáveis que devemos investigar para entender melhor o que acontece no mundo real.

A desutilidade[29] do trabalho não é uma característica categorial e apriorística. Podemos, sem incorrer em contradição, imaginar um mundo no qual o trabalho não provoque desconforto, e podemos descrever as situações que prevaleceriam em tal mundo.[30] Mas, no mundo real, o que existe é a desutilidade do trabalho. Somente teoremas baseados no pressuposto de que ninguém paga para trabalhar, são aplicáveis para a compreensão do que ocorre em nosso mundo.

A experiência nos ensina que existe a desutilidade do trabalho. Mas não nos ensina diretamente. Não há nenhum fenômeno que se apresente como desutilidade do trabalho. Existem apenas dados colhidos pela nossa experiência que são interpretados, com base em conhecimento apriorístico, como significando que os homens consideram o lazer — ou seja, a ausência do trabalho — como uma situação mais desejável do que o dispêndio de trabalho, evidentemente mantidas constantes as demais condições. Percebemos que os homens renunciam a vantagens que poderiam obter se trabalhassem mais — isto é: estão dispostos a fazer sacrifícios para usufruir o lazer. Inferimos deste fato que o lazer é considerado um bem e que o trabalho é considerado uma carga. Mas não seria possível chegar a essa conclusão sem uma prévia percepção praxeológica.

Uma teoria de troca indireta e todas as teorias que dela derivam — como a teoria do crédito circulante[31] — são aplicáveis apenas para interpretar eventos num mundo no qual seja praticada a troca indireta. Num mundo em que só se praticasse a troca direta, uma teoria da troca indireta seria mero passatempo intelectual. É pouco provável que os economistas de tal mundo se ocupassem com os problemas da troca indireta, moeda e tudo o mais. É menos provável ainda que a ciência econômica viesse a existir nesse mundo imaginário. Entretanto, em nosso mundo real, esses estudos são uma parte essencial da teoria econômica.

O fato de a praxeologia, ao se preocupar com a compreensão da realidade, intensificar sua investigação sobre aqueles problemas de maior interesse para seu propósito não altera o caráter apriorístico de seu raciocínio. Mas determina a maneira pela qual a economia, até agora a única parte estruturada da praxeologia, apresenta os resultados de seus esforços.

A economia não adota o mesmo procedimento que a lógica e a matemática. Não se limita a formular um sistema de meros raciocínios aprioristas desvinculados da realidade. Adota, nas suas análises, pressupostos que sejam úteis para compreensão da realidade. Não existe, nos tratados e monografias sobre economia, uma separação marcada entre a ciência pura e a aplicação prática de seus teoremas e situações históricas ou políticas específicas.

Para apresentação sistematizada de suas conclusões, a economia adota uma forma na qual estão entrelaçadas a teoria apriorística e a interpretação de fenômenos históricos.

É óbvio que este procedimento é necessário, tendo em vista a própria natureza e essência do tema que a economia aborda. Já deu provas de sua utilidade. Entretanto, não devemos subestimar o fato de que a utilização deste procedimento singular, e inclusive algo estranho do ponto de vista da lógica, requer cautela e sutileza, e que mentes superficiais e pouco críticas são frequentemente induzidas ao erro pelo emprego descuidado desses dois diferentes métodos epistemológicos.

Não existe algo que se possa chamar de método histórico de análise econômica ou mesmo uma economia institucional. Existem economia e história econômica; e as duas não devem ser confundidas. Todos os teoremas de economia são necessariamente válidos, sempre que ocorrerem as premissas por eles adotadas. Claro está que não têm significação prática em situações onde tais condições não existam. Os teoremas referentes à troca indireta não são aplicáveis a situações onde não exista troca indireta. Mas isto não diminui sua validade.[32]

As tentativas, por parte de muitos políticos e importantes grupos de pressão, de desacreditar a economia e de difamar os economistas têm provocado confusão no debate econômico. O poder embriaga tanto um ditador como uma maioria democrática. Ainda que, relutantemente, sejam forçados a admitir que estejam sujeitos às leis da natureza, rejeitam a própria noção de lei econômica. Não são eles os que legislam como lhes convém? Não são eles que têm o poder de derrotar seus adversários? Nenhum senhor guerreiro admite qualquer limite ao seu poder, a não ser aquele que lhe é imposto por uma força militar superior à sua.

Sempre existirão penas servis para redigir complacentemente doutrinas adequadas aos detentores do poder. E chamam estas deturpações de “economia histórica”. De fato, a história econômica é um extenso registro de políticas de governo que falharam porque foram elaboradas com um imprudente desrespeito às leis da economia.

É impossível compreender a história do pensamento econômico se não atentarmos para o fato de que a economia tem sido um desafio à vaidade dos detentores do poder. Um verdadeiro economista jamais será benquisto por autocratas e demagogos, que sempre o considerarão um intrigante e que, quanto mais estiverem intimamente convencidos de que suas objeções são corretas e fundamentadas, mais o odiarão.

Diante de toda essa agitação frenética, é oportuno consignar o fato de que o ponto de partida de todo raciocínio praxeológico e econômico, ou seja, a categoria ação humana, não dá margem a qualquer crítica ou objeção. Nenhum apelo a quaisquer considerações históricas ou empíricas pode invalidar a afirmativa segundo a qual os homens têm o propósito de atingir determinados fins. Nada que se possa dizer sobre irracionalidade, sobre os abismos insondáveis da alma humana, sobre a espontaneidade dos fenômenos vitais, sobre automatismos, reflexos ou tropismos, pode invalidar a afirmativa segundo a qual o homem usa sua razão para realizar seus desejos e aspirações. Tendo por princípio inabalável a categoria ação humana, a praxeologia e a economia progridem passo a passo por meio do raciocínio dedutivo. Definindo, com precisão, premissas e condições, constroem um sistema de conceitos e extraem por meio de raciocínio logicamente incontestável todas as conclusões possíveis. Em relação às conclusões assim obtidas, só se podem admitir duas atitudes: ou se evidenciam erros lógicos na série de deduções que produziram as conclusões ou se deve reconhecer sua correção e validade.

É inútil alegar que a vida e a realidade não são lógicas. A vida e a realidade não são nem lógicas nem ilógicas; são simplesmente dados. Entretanto, a lógica é o único instrumento de que o homem dispõe para compreendê-las. É inútil alegar que a vida e a história são inescrutáveis e inefáveis e que a razão humana não consegue penetrar na sua essência.

Aqueles que assim pensam se contradizem ao formular teorias — sem dúvida teorias espúrias — sobre aquilo que consideram inescrutáveis. Muitas coisas estão fora do alcance da mente humana. Mas o homem só poderá adquirir um conhecimento, por menor que seja se utilizar a capacidade que lhe é proporcionada pela razão.

Não menos ilusórias são as tentativas de contrapor a compreensão aos teoremas da economia. O domínio da compreensão histórica é tão somente a elucidação daqueles problemas que não podem ser inteiramente explicados pelas ciências não históricas. A compreensão não pode contradizer as teorias formuladas pelas ciências não históricas. A compreensão não pode ir além de, por um lado, estabelecer o fato de que as pessoas são motivadas por certas ideias, visam a atingir certos fins e aplicam certos meios para atingir estes fins; e, por outro, atribuir aos vários fatores históricos a sua relevância, na medida em que isto não possa ser feito pelas ciências não históricas. A compreensão não autoriza nenhum historiador a afirmar que o exorcismo foi, em algum momento, um meio adequado de devolver a saúde a uma vaca doente. Tampouco lhe é permitido sustentar que uma lei econômica não era válida na antiga Roma ou no império dos incas.

O homem não é infalível. Busca a verdade, isto é, a mais adequada compreensão da realidade que lhe é permitida pelas limitações de sua mente e de sua razão. O homem nunca poderá ser onisciente. Nunca poderá ter absoluta certeza de não serem equivocadas as suas conclusões e de não ser um erro aquilo que considera uma verdade incontestável. O mais que o homem pode fazer é submeter sempre todas as suas teorias ao mais rigoroso exame crítico.

Para o economista, isto significa rastrear todos os teoremas econômicos até a sua origem certa e inquestionável — a categoria ação humana — e comprovar, pela mais cuidadosa análise, todas as premissas e inferências desde esta origem até o teorema em exame. De modo algum pudesse pretender que esse procedimento seja uma garantia de que erros não serão cometidos. Mas é, sem dúvida, o método mais eficaz de evitá-los.

A praxeologia — portanto também a economia — é um sistema dedutivo. Sua força provém do ponto de partida de suas deduções, ou seja, de categoria ação humana. Nenhum teorema econômico, que não esteja consistentemente ligado a esta origem por uma irrefutável sequência lógica, pode ser considerado como válido. Qualquer afirmativa proclamada sem esta ligação é arbitrária e insustentável. Não é possível tratar qualquer parte da economia sem enquadrá-la numa teoria geral da ação.

As ciências empíricas partem dos eventos singulares e progridem do que é individual e específico para o que é mais universal, o que lhes possibilita um tratamento mais compartimentalizado. Podem lidar com segmentos de seu campo de investigação sem se preocupar com o conjunto. Em contrapartida, o economista não pode, jamais, ser um especialista. Ao lidar com qualquer problema, deve ter sempre uma visão abrangente de todo o conjunto.

Os historiadores costumam incorrer neste erro. São propensos a inventar teorias ad hoc. Chegam, às vezes, a esquecer de que é impossível inferir relações causais do estudo de fenômenos complexos. Sua pretensão de investigar a realidade sem qualquer referência ao que depreciativamente qualificam como ideias preconcebidas e inúteis. Na verdade, aplicam inadvertidamente doutrinas populares que há muito tempo já foram desmascaradas como falaciosas e contraditórias.

11. As limitações dos conceitos praxeológicos

As categorias e conceitos praxeológicos foram formulados para compreensão da ação humana. Tornam-se contraditórios e sem sentido, se tentarmos aplicá-los a circunstâncias diferentes das existentes na vida real. O ingênuo antropomorfismo das religiões primitivas é inaceitável ao pensamento filosófico. Da mesma forma, é igualmente questionável a pretensão de certos filósofos em definir, usando conceitos praxeológicos, os atributos de um ser absoluto, livre de todas as limitações e fraquezas do ser humano.

Os filósofos e teólogos escolásticos, e também os teístas e deístas do Iluminismo, conceberam um ser absoluto e perfeito, eterno, onisciente e onipotente e que, apesar disso, planejava e agia, objetivava atingir fins e empregava meios para atingir esses fins. Ora, só age quem se considera em uma situação insatisfatória, e só reitera a ação quem não é capaz de suprimir o seu desconforto de uma vez por todas. Quem age está descontente com sua situação e, portanto, não é onipotente. Se estivesse satisfeito, não agiria e se fosse onipotente, já teria, há muito tempo, suprimido completamente a sua insatisfação. Um ser todo-poderoso não tem necessidade de escolher entre várias situações de maior ou menor desconforto. A onipotência pressupõe o poder de atingir qualquer objetivo e desfrutar a felicidade plena, sem ser incomodado por quaisquer limitações. Mas isto é incompatível com o próprio conceito de ação. Para um ser todo-poderoso, não existem as categorias meios e fins. Está acima de qualquer percepção, conceitos ou compreensão que sejam inerentes ao ser humano. Para um ser todo-poderoso, quaisquer “meios” lhe permitem realizar tarefas ilimitadas; pode empregar todos os “meios” para atingir qualquer fim ou pode atingir todos os fins sem empregar nenhum “meio”. Está além da capacidade da mente humana lucubrar o conceito de onipotência até as suas últimas consequências lógicas. Os paradoxos são insolúveis. Teria o ser todo-poderoso o poder de realizar algo que não lhe fosse possível modificar mais tarde? Se tiver este poder, então existem limites à sua força e ele não é todo-poderoso; se lhe falta este poder, só por este fato já não é todo-poderoso.

Acaso serão compatíveis a onipotência e a onisciência? A onisciência pressupõe que todos os acontecimentos futuros já estão inalteravelmente determinados. Se existe a onisciência, a onipotência é inconcebível. A impossibilidade de alterar o predeterminado curso dos acontecimentos é uma restrição de poder incompatível com o conceito de onipotência; são limitados o seu poder e o seu controle sobre os fenômenos. A ação é uma manifestação do homem que está restringido pelos limitados poderes de sua mente, pelas características fisiológicas de seu corpo, pelas vicissitudes de seu meio ambiente e pela escassez de fatores dos quais depende o seu bem estar. É inútil aludir às imperfeições e fraquezas do ser humano, quando se pretende descrever um ente absolutamente perfeito. A própria ideia de perfeição absoluta é, sob todos os aspectos, autocontraditória. O estado de perfeição absoluta só pode ser concebido como algo completo, final e não sujeito a qualquer mudança. A menor mudança poderia apenas reduzir sua perfeição e transformá-lo num estado menos perfeito que o anterior; a simples possibilidade de que ocorra uma mudança é incompatível com o conceito de perfeição absoluta. Mas a ausência de mudança — isto é, a completa imobilidade, imutabilidade e rigidez — são equivalentes à ausência de vida. A vida e a perfeição são incompatíveis, como também o são a morte e a perfeição.

O ser vivo não é perfeito porque é passível de sofrer mudanças; o morto não é perfeito porque lhe falta a vida.

A linguagem dos homens que vivem e agem utiliza formas comparativas e superlativas ao comparar situações melhores ou piores. A noção de absoluto não permite comparações; é uma noção limite. O absoluto é indeterminável, impensável e inexprimível. É uma concepção quimérica. Não existe felicidade plena, nem pessoas perfeitas, nem eterno bem estar. Qualquer tentativa para descrever as condições de um País das Maravilhas ou a vida dos anjos resulta em paradoxos insuperáveis. Em qualquer situação existem limitações e não perfeição; existem tentativas de superar obstáculos, assim como frustração e descontentamento.

Quando os filósofos já não se interessavam mais pelo absoluto, os utopistas retomaram o tema, elaborando sonhos sobre o Estado perfeito. Não percebem que o Estado, o aparato social de compulsão e coerção, é uma instituição criada para lidar com a imperfeição humana, e que sua função essencial consiste em aplicar punições em minorias, a fim de proteger as maiorias das consequências danosas de certas ações. Com homens “perfeitos”, não haveria necessidade de compulsão e coerção. Os utopistas, entretanto, não levam em consideração a natureza humana nem as inexoráveis condições de vida humana. Godwin imaginava que o homem pudesse tornar-se imortal quando fosse abolida a propriedade privada.[33] Charles Fourier tartamudeava sobre oceanos contendo limonada ao invés de água salgada.[34] O sistema econômico de Marx, cegamente, ignora a existência da escassez material dos fatores de produção. Trotsky chegou a afirmar que no paraíso proletário “o homem médio alcançará o nível intelectual de um Aristóteles, de um Goethe ou de um Marx. E sobre estes cumes, novas alturas serão alcançadas”.[35]

Atualmente, as quimeras mais populares são a estabilização e a segurança. Analisaremos estes slogans mais adiante.
[1] A história econômica, a economia descritiva e a estatística econômica também são história. O termo sociologia é empregado com dois significados diferentes. A sociologia descritiva lida com os fenômenos históricos da atividade da ação humana que não são abordados pela economia descritiva; de certo modo, invade o campo da etnologia e da antropologia. Por outro lado, a sociologia geral aborda experiência histórica de unir o ponto de vista mais universal de vista do que os outros ramos da história. A própria história, por exemplo, se ocupa de unir determinada cidade ou cidades num período especifico, ou de um determinado ou de certa geografia. Max Weber em seu tratado principal (Wirtschaft und Gesellschaft Tiilingen, 1922, p. 513-600) trata da cidade em geral, isto é, com toda a experiência histórica relativa às cidades, sem qualquer limitação de períodos históricos, áreas geográficas, individual ou povos, nações, raças e civilizações.

[2] Poucos filósofos tinham mais familiaridade vários ramos do conhecimento contemporâneo que Berguson. Entretanto, uma observação casual do seu ultimo livro, evidencia claramente que Berguson ignorava totalmente o teorema fundamental de valor e de troca. Falando de troca ele comenta: “l’on ne peut le pratiquer sans s’étre demandé si les deux objets échangés sont bien de méme valeur, c’est-à-die échangeables contre un même troisiéme.” (Les Deux Sources de law morale et de la religion .Paris, 1932, p. 68.

[3] Apriorismo metodológico é a doutrina segundo a qual existe conhecimento que antecede a experiência (ou as percepções sensoriais). (N.T.)

[4] Lévy-Bruhl, How Natives Think, trans. by L.A. Clare. New York, 1932, p. 386.

[5] Ibid., p. 377.

[6] Lévy-Bruhl, Primitive Mentality, trans. by L.A. Clare New York, 1923, p. 27-29.

[7] Ibid., p. 27.

[8] Ibid., p. 437.

[9] Ver os brilhantes estudos de Ernest Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen. Berlin, 1925, vol. 2, 78.

[10] A ciência diz Meyerson is “l’acte per lequel nous ramenons á l’identique ce qui nous a, tout d’abord, paru n’être pas tel.” (De L’Explication dans dles sciences. Paris, 1927. p. 154). Ver também Morris R. Cohen, A Preface to Logic. New York, 1944, pp. 11-14.

[11] Henri Poincaré. La science et Phypothèse.Paris. 1918. p. 69

[12] Felix Kaufmann. Methodolgy of Social Science, Londres. 1944. p. 46-47

[13] Albert Einstein. Geometrie und Erfahrung. Berlin, 1923, p. 3.

[14] Ver E.P. Cheyney, Law in History and Other Essays. New York, 1927, p. 27.

[15] Ver adiante p………, a crítica da teoria coletivista da sociedade.

[16] Universalismo é o conceito holístico ou coletivista que considera a sociedade como uma entidade que tem vontade e objetivos próprios, independentes e separados daqueles dos indivíduos. Ao sustentar que famílias e comunidades dirigem o desenvolvimento dos indivíduos, os universalistas consideram os agregados sociais, tais como as nações, como um todo articulado ao qual as funções do indivíduo deve subordinar-se. Um proponente moderno do universalismo foi Othmar Spanm, 1878-1950, cujas ideias serviram de base ao nazismo. Extraído de Mises Made Easier. Percy Greaves Jr., op. cit. (N.T.)

[17] Realismo conceitual é a teoria segundo a qual abstrações universais, classes gerais ou tipos ideais não constatáveis na prática têm uma realidade independente, igual e, às vezes, superior à realidade de suas partes componentes individuais. Por exemplo, o realismo conceitual considera o termo abstrato “capital” como algo concreto e real, com usos e características diferentes dos “bens de capital” que o constituem. Outro exemplo é o de “renda nacional”. Extraído de Mises Made Easier. Percy Greaves Jr., op. cit. (N.T.)

[18] Gestaltpsychologie — escola de psicologia que sustenta que os homens percebem o significado ou a realidade das coisas de acordo com a forma, padrão, configuração ou arranjo como um todo, e não pela decomposição em partes ou unidades separadas do todo. Exemplos: uma melodia tem maior significado para o ouvinte do que as notas isoladas; três linhas iguais formando um triângulo equilátero têm uma significação diferente das mesmas linhas dispostas de outra maneira. (N.T.)

[19] Understanding — esta palavra, traduzida por “compreensão”, será frequentemente usada, ao longo deste livro, com o seguinte significado: “o poder da mente humana de perceber ou apreender o significado de uma situação com a qual se defronta. Compreensão é mais o resultado da percepção intelectual do que do conhecimento factual, embora não deve nunca contradizer os ensinamentos válidos dos outros ramos do conhecimento, inclusive os das ciências naturais. A compreensão é usada por todo o mundo e é o único método apropriado para lidar com a história e com a incerteza das condições futuras, ou em qualquer situação em que o nosso conhecimento seja incompleto.” Extraído de Mises Made Easier. Percy L. Greaves Jr., op. cit. (N.T.)

[20] Henri Bergson, La pensée et le mouvant, 4. ed., Paris, 1934, p. 205.

[21] Ver Ch. V. Langlois e Ch. Seignobos, Introduction to the Study of History. Trad. G.G. Berry, Londres, 1925, p. 205-208.

[22] Ver adiante pág ……

[23] Ver adiante pág ……

[24] Ver A. Eddington, The Philosophy of Physical Science, Nova Iorque, 1939, p. 28-48.

[25] Como não estamos fazendo uma dissertação sobre epistemologia geral, mas, apenas, a base indispensável de um tratado de economia, não é necessária enfatizar as analogias entre a compreensão da relevância histórica e a tarefa do médico ao fazer um diagnóstico. A epistemologia da biologia está fora dos limites da nossa investigação.

[26] Ver adiante pág…..

[27] Os aspectos econômicos da ciência política. (N.T.)

[28] Ver adiante pág…..

[29] Disutility — o estado ou capacidade de produzir consequências indesejáveis, tais como aborrecimento, desconforto, irritação, incômodo, dor ou sofrimento. O contrário de utilidade. (N.T.)

[30] Ver adiante pág ….

[31] Crédito circulante — crédito oferecido pelos bancos sob a forma de notas bancárias (notas promissórias sem juros, pagáveis contra apresentação) ou depósitos à vista criados especialmente para este fim. Distingue-se do crédito oferecido com base em seus próprios fundos ou com base em fundos depositados pelos seus clientes. O crédito circulante coloca, à disposição dos tomadores, fundos novos, criados sem que tenha havido diminuição ou restrição nos fundos disponíveis para as demais pessoas. (N.T.)

[32] Ver Frank H. Knight, The Ethics of Competition and Other Essays, Nova Iorque, 1935, p.139.

[33] William Godwin, An Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on GeneralVirtue and Happiness, Dublin, 1793, vol. 2, p. 393-403.

[34] Charles Fourier, Theory des quatre mouvements, Obras completas, 3. ed., Paris, 1846, vol.1, p. 43.

[35] Leon Trotsky, Liberature and Revolution. Trad. por R. Strunsky, Londres, 1925, p. 256.

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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