Anarchy in the U.K.: A experiência inglesa com a proteção privada

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[Este texto é uma tradução do artigo publicado na edição do outono de 1994 da revista Formulations. Eu mantive a frase do título em inglês para não perder a referência à música do Sex Pistols.]

Entre os objetivos do nosso futuro Forum está considerar o alcance até o qual os seguros privados, numa sociedade livre, poderiam assumir as funções que atualmente atribuímos ao governo. Os princípios da economia do laissez-faire podem nos convencer de que as seguradoras privadas poderiam de fato assumir esses papéis, mas nós indubitavelmente nos sentimos mais seguros se essa conclusão teórica puder ser sustentada por exemplos concretos da história.

Numa edição anterior, eu discuti como uma forma particular de seguro, a associação de auxílio mútuo, agiu como um efetivo substituto privado para os programas assistenciais dos governos, particularmente na área do tratamento médico. (“How Government Solved the Health Care Crisis“, Formulations, vol. 1, no. 2). Nesta edição, minha preocupação será com o papel das associações de auxílio mútuo na provisão de segurança, e eu me focarei em dois exemplos históricos da Inglaterra, que tem uma longa história de provisão privada de serviços “do governo”.

Execução Legal por Auxílio Mútuo: A Borh

Antes da conquista normanda de 1066, o governo da Inglaterra era radicalmente descentralizado. O rei tinha pouca ou nenhuma influência na política interna; esta era deixada a cargo das moots [N.T.: “assembleias”], cortes locais que faziam julgamentos de acordo com o direito consuetudinário. O rei tinha autoridade principalmente sobre a política externa, e nesta ele agia simplesmente como um líder guerreiro, um tipo de empreendedor militar, cujos seguidores forneciam recursos financeiros e serviços militares voluntariamente. A Inglaterra não possuía uma força policial nem um exército permanente; a execução das leis e a defesa nacional eram prerrogativa e responsabilidade dos cidadãos armados.

Para a segurança, a mais importante unidade social era a borh. Uma borh era uma associação, tipicamente de doze pessoas, que se certificavam do bom comportamento uns dos outros. Se um membro de uma borh cometesse um crime, os outros membros se comprometiam a levá-lo à justiça — mas também a ajudá-lo a pagar a restituição pelo crime. (Restituição financeira em vez de retribuição era a sentença normal da maioria dos crimes; aqueles que se recusavam a pagar restituição eram postos fora da lei — isto é, qualquer um poderia matá-los impunemente.)

A borh pode se ter originado como um grupo de parentesco, mas se for esse o caso, seu aspecto familiar logo desapareceu; no apogeu do sistema anglo-saxão, as borhs eram arranjos puramente contratuais. Os indivíduos eram livres para se juntarem à borh que escolhessem e os membros daquela borh eram igualmente livres para aceitar ou recusar o pretendente; uma vez aceito, o indivíduo era livre para deixá-la, mas ele também poderia ser expulso. Uma vez que os membros da borh poderiam ser responsabilizados pelas ações uns dos outros, havia um forte incentivo para policiar o comportamento dos membros. Igualmente, havia um forte incentivo para pertencer a uma borh e não ser expulso, porque poucos queriam se relacionar com alguém que não pertencesse a nenhuma; essa pessoa era de fato um risco não-segurado, já que ele não tinha companheiros de borh para assumir a responsabilidade por ele. O sistema de borh assim criou um forte incentivo ao comportamento responsável.

Como nota Tom Bell:

“Esses acordos voluntários recíprocos têm um certo apelo atemporal. Considere os paralelos modernos: como agências de seguros, os grupos de fiação [borhs] ajudavam os membros a disseminar os riscos fazendo um pool de recursos; como agências de crédito, eles atestavam o bom comportamento de seus membros e negavam acesso a outros indivíduos que houvessem demonstrado inconfiabilidade; como companhias de cartão de crédito, elas davam suporte às reclamações e atos de seus membros.”

(“Polycentric Law”, p. 4.)

Pode-se argumentar que esse sistema poderia não funcionar na vasta, impessoal e altamente móvel sociedade atual, onde os laços próximos e o conhecimento pessoal requeridos por uma borh efetiva frequentemente não existem. A reputação, ao que parece, pode servir como um incentivo efetivo somente numa pequena comunidade onde todos conhecem uns os outros. Mas a experiência da Lei Mercante sugere o contrário: esse vasto sistema de direito privado que operava via reputação, crédito e boicote econômico foi capaz de regular as transações comerciais através de toda a Europa no fim da Idade Média entre mercadores de diferentes nações, sem o benefício da interação cara-a-cara nem da execução governamental. E na moderna era da informação de comunicação eletrônica instantânea, relatórios de crédito e coisas do tipo, pode-se muito bem esperar que a reputação sirva ainda mais efetivamente como uma ferramenta para manter a ordem social privadamente.

O que finalmente destruiu o sistema de borhs foi a sujeição da Inglaterra em 1066 pelo invasor normando Guilherme, o Conquistador, que consolidou sua vitória completando uma centralização do poder real que havia começado já no século IX com Alfredo, o Grande. Guilherme e seus sucessores submeteram o sistema de borhs à supervisão e controle reais, em parte para que uma grande fração das compensações financeiras administradas pelas borhs fosse desviada para os cofres reais.

Qualquer que fosse a razão, os conquistadores normandos introduziram o sistema Frankpledge, que substituiu as borhs por tithings, grupos de dez pessoas que tinha a mesma função que nas antigas borhs — com a exceção crucial de que a associação a uma tithing não era voluntária. Sem o direito de livre entrada e saída, e o direito correlacionado de recusar admissões ou expulsar, o sistema Frankpledge não pôde reproduzir os incentivos do sistema anterior. O sistema de borhs penalizava o comportamento irresponsável; mas sob o sistema Frankpledge, uma tithing não tinha influência comparável sobre seus membros, que agora poderiam ter más condutas impunemente. O elemento da competição foi eliminado — com resultados previsivelmente ruins.

Execução Legal por Auxílio Mútuo: Os Caçadores de Ladrões

No fim do século XVIII e no começo do século XIX, o auxílio mútuo em relação à lei estava ativo na Inglaterra novamente. A Inglaterra não tinha força policial no sentido moderno antes de 1829, quando o Secretário do Interior Sir Robert Peel (daí o termo “Bobby”) estabeleceu a Scotland Yard na área de Londres; similares administrações policiais para outras áreas foram criadas nos anos 1830 e 1840. A liberal clássica feminista e reformadora social Josephine Butler reagiu com alarme, escrevendo uma áspera denúncia do estado policial em seu livro Government by Police.

Mas antes do reino dos Bobbies, a execução das leis na Inglaterra dependia pesadamente de organizações conhecidas como Associações para a Perseguição de Criminosos [N.T.: “Associations for the Prosecution of Felons”] — também conhecidas como associações caçadoras de ladrões. Imagine um cruzamento entre uma Neighborhood Watch [N.T.: uma associação de moradores dedicada a evitar crimes, contatando a polícia ao sinal de atitudes suspeitas], uma agência de seguros e uma posse estilo Velho Oeste. As pessoas num local particular fariam um pool com seus recursos e ofereceriam seus próprios serviços para sustentar suas associações de caçadores de ladrões. A associação manteria seus olhos abertos para assaltantes (particularmente aqueles que roubavam casas com placas de membro da associação!). Se um crime (contra um membro de uma associação) ocorresse, a associação perseguiria o culpado, ou pagaria para perseguirem o culpado, freqüentemente cooperando com associações similares de outros distritos — e assim usariam os recursos do pool para pagar pelo processo numa corte do governo (a justiça criminal não era livre nesse tempo).

O sistema tradicional inglês — com raízes na antiguidade anglo-saxã, mas se extendendo até tão recentemente quanto o século XIX — está a mundos de distância do moderno sistema de polícia centralizada e de controle de armas. Sob o velho sistema, todo cidadão homem capaz era efetivamente um policial, e o comportamento desses policiais não era regulado por decreto governamental, mas pelas leis econômicas do interesse próprio. A despeito de importantes diferenças nos detalhes, tanto as borhs quanto os caçadores de ladrões operavam de acordo com o princípio do seguro mútuo: os indivíduos reuniam seus recursos e esforços para proteção mútua.

Seguros para segurança são uma fantasia libertária? Pelo contrário — são história.

 

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Bibliografia:

H. W. Arthur. Without the Law: Administrative Justice and Legal Pluralism in Nineteenth-Century England. University of Toronto Press, Toronto, 1985.

Tom Bell. “Polycentric Law”, Humane Studies Review, Vol. 7, no. 1, 1991/92.

Bruce Benson, The Enterprise of Law: Justice Without the State. Pacific Research Institute, San Francisco, 1990.

Stephen Davies. “Private Provision of Public Goods in Nineteenth-Century Britain”. Paper não-publicado.

Douglas Hay and Francis Snyder, eds. Policing and Prosecution in Britain, 1750-1850. Oxford University Press, Oxford, 1989.

Albert Loan. “Institutional Bases of the Spontaneous Order: Surety and Assurance”. Humane Studies Review. Vol. 7, no. 1, 1991/92.

William Alfred Morris. The Frankpledge System. Longmans Green, New York, 1910.

 

Tradução de Erick Vasconcelos

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