Capítulo I — A Ciência da Justiça

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Seção I

 

A ciência do meu e do teu — a ciência da justiça — é a ciência de todos os direitos humanos; de todos os direitos do homem à sua pessoa e à sua propriedade; de todos os seus direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade.

É a ciência que, sozinha, pode dizer a qualquer homem o que ele pode e não pode fazer; o que ele pode e não pode ter; o que ele pode e não pode dizer sem infringir os direitos das outras pessoas.

É a ciência da paz — e a única ciência da paz: visto que é a ciência que, sozinha, pode nos dizer sob quais condições os homens podem ou devem viver em paz uns com os outros.

As condições são simplesmente estas: a saber, primeiro, que cada homem deve fazer em relação a todos os outros tudo aquilo que a justiça requeira que ele faça; por exemplo, ele deve pagar as suas dívidas; devolver a propriedade pega emprestada ou roubada do dono; e reparar qualquer dano que tenha ocasionado à pessoa ou à propriedade dos outros.

A segunda condição é a de que cada homem deve se abster de fazer a todos os outros o que quer que a justiça requeira que ele se abstenha de fazer; por exemplo, ele deve se abster de roubar, furtar, incendiar, assassinar, bem como de praticar qualquer outro crime contra a pessoa ou a propriedade dos outros.

Uma vez que essas condições sejam satisfeitas, os homens estão em paz e devem permanecer em paz uns com os outros. No entanto, quando qualquer dessas condições é violada, os homens entram em guerra entre si. E eles devem necessariamente permanecer em guerra até que a justiça seja restabelecida.

Através dos tempos, pelo que a história nos informa, onde quer que os homens tenham tentado viver em paz, tanto os instintos naturais quanto a sabedoria coletiva da raça humana reconheceram e prescreveram, como condição indispensável, a obediência a esta única obrigação universal: a saber, a de que cada um deve viver honestamente em relação aos outros.

A antiga máxima que resume o dever do homem para com os seus semelhantes é simplesmente esta: “Viver honestamente; não lesar ninguém; dar a cada um o que lhe é devido.” [1]

Toda essa máxima pode ser realmente expressada nas palavras viver honestamente, já que viver honestamente significa não lesar ninguém e dar a cada um o que lhe é devido.

 

Seção II

 

O homem, sem dúvida, tem muitos outros deveres morais para com os seus semelhantes, tais como alimentar os famintos, vestir os desagasalhados, abrigar os sem-teto, cuidar dos doentes, proteger os indefesos, prover assistência aos fracos e esclarecer os ignorantes. Mas essas são simplesmente obrigações morais, das quais, em cada caso particular, cada homem deve ser o seu próprio juiz quanto a se, como e em que medida ele pode ou deve exercê-las. Contudo, quanto à sua obrigação legal (jurídica) — isto é, quanto ao dever de viver honestamente em relação aos demais —, os outros não apenas podem julgar, mas também, para a própria proteção deles, devem julgar. E, se necessário, podem legitimamente compeli-lo a exercê-la. Eles podem fazer isso agindo sozinhos ou em concerto. Podem fazê-lo de imediato, quando surgir a necessidade; ou deliberada e sistematicamente, caso preferirem e caso a conveniência admitir.
Seção III

 

Embora seja do direito de qualquer um e de todos — de qualquer único homem ou conjunto de homens, não menos um do que o outro — repelir a injustiça e compelir ao exercício da justiça, para si mesmos e para todos aqueles que sejam injustiçados, a fim de que se evitem erros resultantes da pressa e da paixão e a fim de que todos possam descansar com a certeza de que serão protegidos sem apelo à força, é evidentemente desejável que os homens se associem, de forma livre e voluntária, para a manutenção da justiça entre si e para a proteção mútua contra a força dos criminosos. É também altamente desejável que acordem entre si algum plano ou sistema de procedimentos judiciais, o qual, no processo das causas, deve assegurar cautela, deliberação, exaustiva investigação e, tanto quanto possível, liberdade de toda influência além do desejo de fazer justiça.

Entretanto, tais associações só podem ser legítimas e desejáveis enquanto permanecerem puramente voluntárias. Nenhum homem pode legitimamente ser coagido a sustentar — ou a se juntar a — uma associação contra a sua vontade. O seu próprio interesse, o seu próprio julgamento e a sua própria consciência — somente esses — devem determinar se ele vai ou não se juntar a esta ou àquela associação; ou mesmo se ele vai ou não se juntar a qualquer uma. Se ele escolher depender, para a proteção dos seus direitos, só de si mesmo e da assistência voluntária que outras pessoas venham a livremente lhe oferecer quando a necessidade surgir, o homem tem total direito de fazer isso. E esse caminho seria razoavelmente seguro de ser trilhado se ele manifestasse a comum prontidão da humanidade, em casos parecidos, de ir em assistência e em defesa das pessoas prejudicadas e se ele mesmo “vivesse honestamente, não lesasse ninguém e desse a cada um o que lhe seja devido”. Pois esse homem é razoavelmente certo de sempre oferecer o suficiente aos amigos e aos defensores em caso de necessidade, mesmo que tenha ou não se juntado a qualquer associação.

Certamente, não se pode requerer que nenhum homem sustente — ou se junte a — uma associação cuja proteção ele não deseja. Nem se pode esperar que nenhum homem sustente — ou se junte a — qualquer associação cujos planos ou métodos de procedimento ele não aprova, ainda que seja provável que ela atinja o seu professado propósito de assegurar a justiça e de, ao mesmo tempo, evitar a injustiça. Seria absurdo sustentar — ou juntar-se a — uma associação que fosse, em sua opinião, ineficiente. Sustentar — ou juntar-se a — uma associação que praticasse ela própria injustiças seria criminoso. Ele precisa, portanto, possuir a mesma liberdade de se associar ou não para esse propósito, como para qualquer outro, de acordo com o que os seus próprios interesses, o seu próprio juízo ou a sua própria consciência ditarem.

Uma associação para proteção mútua contra a injustiça é como uma associação para proteção mútua contra incêndios ou naufrágios. E não há mais legitimidade ou razão em compelir qualquer homem a sustentar — ou a se juntar a — uma dessas associações contra a sua vontade, o seu julgamento ou a sua consciência do que há em compeli-lo a sustentar — ou a se juntar a — qualquer outra cujos benefícios (caso ofereça algum) ele não deseja ou cujos propósitos e métodos ele não aprova.
Seção IV

 

Nenhuma objeção pode ser feita a essas associações voluntárias com base no argumento de que elas não possuiriam o conhecimento da justiça — como uma ciência — que seria necessário para capacitá-las a assegurar a justiça e evitar a injustiça. A honestidade, a justiça, o direito natural, trata-se de um assunto muito evidente e simples, facilmente entendido pelas mentes comuns. Aqueles que desejem saber qual é a justiça, em qualquer caso particular, raramente têm de ir muito longe para encontrá-la. Ela é verdadeira; e ela, como qualquer outra ciência, deve ser aprendida. Mas é também verdadeiro que ela é facilmente aprendida. Embora seja tanto ilimitada em suas aplicações quanto sejam as infinitas relações e condutas do homem para com os outros, ela é, no entanto, constituída de alguns princípios elementares simples, dos quais a verdade pode ser quase que intuitivamente percebida por toda mente comum. E quase todos os homens têm a mesma percepção do que constitui a justiça ou do que a justiça requer quando eles entendem de forma similar os fatos dos quais as suas inferências devem ser derivadas.

Os homens, vivendo em contato uns com os outros e tendo relações em conjunto, em grande medida não podem evitar aprender a lei natural, ainda que quisessem. As relações dos homens com os outros homens; as suas posses separadas e os seus desejos individuais; a disposição de cada um de exigir — e nisso insistir — o que ele acredita que lhe seja devido e de resistir — e delas ressentir-se — a todas as invasões do que ele acredita serem os seus direitos; tudo isso, continuamente, força as suas mentes a perguntarem: “Este ato é justo ou injusto?”, “Esta coisa é minha ou dele?”. E essas são as perguntas do direito natural, questões que, em relação à grande maioria dos casos, são respondidas de forma semelhante pela mente humana em todo lugar. [2]

As crianças aprendem os princípios fundamentais do direito natural desde muito cedo. Assim, elas rapidamente entendem que uma criança não pode, sem justa causa, agredir ou ferir de outra forma outra criança; que uma criança não pode assumir qualquer controle arbitrário ou dominação sobre outra; que uma criança não pode, por força ou fraude, obter aquilo que pertence a outra; que, se uma criança infligir qualquer uma dessas coisas a outra, não apenas a criança prejudicada tem o direito de resistir e, se necessário, de punir quem a prejudicou e compeli-la a restituir o dano, mas também as outras crianças, bem como todas as outras pessoas, têm o direito — e o dever moral — de assistir a parte prejudicada na defesa dos seus direitos e na reparação dos seus danos. Esses são os princípios fundamentais do direito natural, o qual governa as mais importantes relações humanas. E, contudo, as crianças os aprendem mais cedo do que quando aprendem que três mais três são seis ou que cinco e cinco são dez. As brincadeiras infantis não podem ser executadas sem uma constante preocupação com eles; e é igualmente impossível que as pessoas de qualquer idade vivam juntas em paz em quaisquer outras condições.

Não seria extravagância dizer que, na maioria dos casos — se não em todos —, a humanidade em geral, os jovens e os velhos, aprende esse direito natural muito antes de aprender os significados das palavras com o qual o descrevemos. Na verdade, seria impossível fazer as pessoas entenderem o real significado das palavras se elas não entendessem a natureza das coisas em si mesmas. Fazê-las entender os significados das palavras justiça e injustiça antes de saberem a natureza das coisas em si mesmas seria tão impossível quanto fazê-las entender o significado das palavras quente e frio, seco e molhado, luz e escuridão, branco e preto, um e dois antes de conhecerem a natureza das coisas em si mesmas. O homem, necessariamente, precisa conhecer os sentimentos e as ideias não menos do que as coisas materiais antes que possa conhecer os significados das palavras através das quais os descrevemos.

 


NOTAS

[1] Lembremos o famoso escrito do célebre jurista romano Ulpiano na sua obra Digesta (ou Pandectae): “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere.” [“Os preceitos da justiça são estes: viver honestamente; não lesar outrem; dar a cada um aquilo que é seu.”] (Nota do Revisor — N. do R.)

[2] Sir William Jones, um juiz inglês na Índia e um dos mais instruídos juízes que já viveram, familiarizado tanto com o direito asiático quanto com o direito europeu, declara:

“É prazeroso notar a similaridade — ou, melhor dizendo, a identidade — daquelas conclusões que a razão pura, desenviesada, em todas as eras e em todas as nações, raramente deixa de derivar naqueles processos jurídicos que não estão agrilhoados e algemados pelas instituições positivas.” — Jones on Bailments, 133.

Ele quer dizer que, quando nenhuma lei foi feita em violação à justiça, os tribunais, “em todas as eras e em todas as nações”, “raramente” deixaram de concordar sobre o que é a justiça.

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