Como o governo da Itália gerou a máfia

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italygun2Além de seus ótimos vinhos, de suas praias agradáveis e de suas deliciosas mulheres, a Itália é também muito conhecida por algo menos edificante — a máfia.

Ainda mais interessante do que entender como essa tão poderosa “máquina” conseguiu entrar e se incrustar na sociedade italiana de maneira tão forte e significativa, é compreender o papel da máfia perante o governo central da Itália.

De um lado, é fácil dizer que a máfia e o sistema econômico corrupto dentro do qual ela funciona são moralmente errados e contraproducentes para o país.  De outro, sua presença pode ser de alguma valia para a economia de um país em determinadas situações, algo que é ainda mais verdade no caso da Itália.

Para entender como a corrupção se infiltrou nos altos escalões da sociedade italiana, é essencial entender o progresso da Itália ao longo do século XX, tanto política quanto economicamente.

A força de organizações criminosas como a “máfia siciliana“, a “Camorra” (da região de Nápoles), e a ‘Ndrangheta(da região da Calábria) sempre esteve relacionada às suas ligações com o setor da construção civil (por meio docontrole dos sindicatos), tipicamente por meio de um canal direto com o governo italiano.  Só que essas “associações” cresceram exponencialmente ao longo dos últimos 50 anos, criando impérios que já são claramente visíveis em todos os grandes setores da economia.

O estado italiano: um parceiro confiável da máfia

O crescimento da máfia foi aditivado pelo modelo político e econômico vigente na Itália durante a segunda metade do século XX após a Segunda Guerra Mundial.

Por quase quarenta anos, a Itália foi governada por um único partido político, o Democrazia Cristiana (que foi abolido em 1994 em decorrência da Operação Mãos Limpas).  O motivo dessa supremacia partidária na política foi a oposição da população à crescente força do Partido Comunista Italiano (o maior da Europa Ocidental durante as décadas de 1970 e 80), o qual era visto como uma crescente, perigosa e cada vez mais concreta ameaça.  A maioria das pessoas temia que tal partido tomasse o poder e implantasse um governo central de estilo soviético.  Esse sentimento foi especialmente endêmico durante o ápice da Guerra Fria.  Consequentemente, o partido Democracia Cristã vencia seguidamente as eleições.

Durante esse período em que a política italiana foi dominada por um único partido político, as ligações entre políticos e empresários se tornaram arraigadas, e isso estimulou o crescimento do crime organizado.

Em troca de propinas, os políticos asseguraram aos membros do crime organizado que as autoridades supostamente responsáveis por combatê-los, e que também recebiam subornos para fazer vista grossa, seriam as mesmas por um longo período de tempo.  Isso tornou toda a operação bem menos custosa e muito mais previsível.

Quando despida de toda a propaganda em contrário, a máfia nada mais é — quando age dentro de certos códigos de conduta — do que um grupo de empreendedores cuja atividade é fornecer a determinados consumidores bens e serviços cujo acesso no mercado legal foi ou proibido ou dificultado pelo governo.  No caso italiano, a máfia ofertava bens que ou estavam racionados após o término da guerra ou que eram pesadamente tributados (como cigarros).  Operando em um ambiente de instituições fracas, a máfia foi uma consequência natural dos desejos dos consumidores.

E a corrupção daí resultante reestruturou a economia da Itália quase que completamente.

Ainda no século XIX, essas associações corruptas ocorriam apenas nas regiões sul da Itália.  Dado que o sul da Itália sempre foi uma das sociedades menos produtivas de toda a Europa Ocidental, muito por causa da falta de confiança que impera na região, arranjos como a máfia conseguiram facilmente ganhar muita influência por lá, pois a máfia provê um mínimo de ordem social para seus membros, e a população em geral não oferece muita resistência à sua existência.

No entanto, com o fortalecimento do canal direto com o governo central, a máfia cresceu de maneira acelerada e, consequentemente, foi se expandindo para o norte do país, nas regiões mais industrializadas e muito mais desenvolvidas.  O que antes era um fenômeno local e restrito tornou-se nacional.  A máfia adentrou todos os grandes setores industriais do país, se entranhou nas instituições e criou uma intrincada rede de corrupção entre políticos, sindicatos, empresários e empreendimentos.

Como consequência dessa total infiltração, ainda em voga, o crime organizado se espalhou pela Itália como uma forma de câncer que se tornou intratável e que já progrediu até um estágio em que, se ele for removido, a economia italiana — já combalida — certamente irá se desintegrar.

Ou seja, mesmo que a cirurgia seja um sucesso total, o paciente irá morrer.

O fato de que a corrupção sempre esteve profundamente enraizada nas estruturas políticas, sociais e econômicas da Itália faz com que seja ainda mais difícil para o país cumprir com suas obrigações perante a União Europeia.  Será um grande desafio para a Itália sair de sua atual recessão tendo um sistema tão corrupto e insalubre.  A dívida pública do país está acima de 130% do PIB.  Uma das obrigações para um país permanecer membro da zona do euro é manter seu endividamento público abaixo de 60% do PIB, e o déficit orçamentário anual abaixo de 3% do PIB.  Embora a meta para o déficit esteja quase cumprida, o país não está nem perto de cumprir o primeiro critério (muito embora, para sermos justos, poucos países da zona do euro estão).

Um dos motivos do desarranjo das contas públicas, que levaram a dívida pública para os atuais 130% do PIB, é justamente a já enraizada ordem político-econômica.  Há muitos interesses poderosos que seriam afetados caso uma genuína austeridade fosse adotada, o que torna qualquer medida desse tipo virtualmente impossível.

Para piorar, os partidos políticos relevantes estão todos dentro do próprio governo.  Ao passo que nos outros países ocidentais as finanças estão uma bagunça porque os próprios eleitores não aceitam abrir mão de benesses, na Itália, os políticos que votam o orçamento são os mesmos que irão diretamente utilizar esse dinheiro para beneficiar a si próprios e aqueles que estão politicamente ligados a eles.

A instabilidade econômica da Itália não apenas está destruindo sua economia desde dentro, mas também por fora.  Investidores externos (outros europeus, americanos, árabes, chineses etc.) não querem ter de lidar com um esquema tão corrupto.  Isso cria uma instabilidade totalmente perceptível: não há qualquer possibilidade real de crescimento econômico, tanto por causa desse descontrole governamental quanto por causa de escassez de investimento estrangeiro.

No ano passado, a Itália conseguiu atrair apenas 1,4% do seu PIB em investimento estrangeiro direto, bem abaixo da média europeia, de 3,3%.

O que pode ser feito?

O partido Liga Norte (Lega Nord) recentemente propôs que as regiões do norte do país, mais produtivas e mais prósperas, se separassem das regiões do sul, mais pobres e mais estagnadas.  As regiões sul são onde as máfias estão mais fortemente concentradas.  Não obstante, a corrupção é endêmica e está por todo o país.

O fato é que a Itália precisa da ajuda da Europa.  O que impede que a corrupção se espalhe ainda mais pelo país é o fato de que o sistema italiano é de alguma forma restringido por um sistema ainda maior: a União Europeia.  O Pacto de Estabilidade e Crescimento, que determina que os governos mantenham suas finanças em ordem, cria alguma pressão que obriga o governo italiano a pelo menos manter seus déficits sob controle.  Ao longo das décadas de 1970 e 80, esse insalubre sistema político-empresarial conseguiu transformar a Itália no país mais fortemente endividado da Europa.  Pressões externas da UE obrigaram o governo italiano a colocar suas finanças em uma trajetória um pouco mais sustentável.

Entre o surgimento do euro e crise financeira de 2008, a dívida do governo italiano em relação ao PIB caiu 20%, e a inflação de preços anual, que apresentou uma média superior a 10% durante as décadas de 1970 e 80, caiu para menos de 3% na década de 2000.  Ajudou nesse processo a criação da moeda única em 2002.  Incapaz de imprimir dinheiro para financiar diretamente seus gastos, o governo italiano (assim como outros países inflacionistas do sul da Europa) foi forçado a ser mais responsável com o dinheiro dos pagadores de impostos do país.

A Itália realmente está em uma situação difícil.  A corrupção controlada pela máfia e que perpassa todo o país — do governo aos empresários — está tão profundamente arraigada, que tornou praticamente impossível qualquer reforma econômica.  A única maneira de fazer uma reforma na Itália seria eliminando o governo central.  O sistema que hoje existe é resultado de um poder político que cresceu de maneira irrestrita ao longo de quarenta anos, e que hoje se tornou onipresente. (Ironicamente, tal resultado foi em resposta ao temor de um poder político irrestrito ainda maior, na forma do comunismo).  Se esse sistema indesejável não puder ser modificado, os italianos terão de mudar a única coisa que ainda podem mudar — o lugar em que vivem.

Os italianos mais jovens, especialmente os mais ambiciosos e capacitados, estão maciçamente deixando o país, uma tendência que foi intensificada desde o início da recessão de 2009.  Deixar sua pátria pode acabar sendo um pequeno preço a se pagar caso o resultado seja a abolição do falido sistema vigente.  Apenas isso pode fazer com que uma Itália melhor surja das cinzas.

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