Da imoralidade e da ineficiência do estado: uma análise Rothbardiana (Concurso IMB)

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Nota do IMB: o artigo a seguir faz parte do concurso de artigos promovidos pelo Instituto Mises Brasil (leia mais aqui).  As opiniões contidas nele não necessariamente representam as visões do Instituto e são de inteira responsabilidade de seu autor.

Introdução

O libertarianismo é uma corrente relativamente recente do pensamento político. Entretanto, é verdade que alguns de seus fundamentos encontram-se nos escritos de alguns pensadores americanos do século XIX, tais como Lysander Spooner (1808-1887) e Benjamin Tucker (1854-1939) e do economista belga Gustave de Molinari (1819-1912). Todavia, seu corpo teórico mais detalhado e abrangente surgiu em princípios da década de 1970 nos EUA, especialmente nos trabalhos do economista e filósofo Murray N. Rothbard (1926-1995), um dos mais ilustres pensadores da escola austríaca de economia.

O impacto de suas obras nos círculos libertários americanos lhe projetou como o maior expoente do libertarianismo contemporâneo. A grande realização de Rothbard, contudo, não se limitou na esfera política. Publicou importantes trabalhos na área da teoria econômica, na história do pensamento econômico, na história econômica americana e na filosofia política liberal. Todos os seus trabalhos têm como núcleo a defesa da liberdade individual. Uma das grandes realizações do autor foi ter unificado a teoria econômica com a filosofia política, esta por ele chamada simplesmente de ética, resultado que culminou na justificação econômica e ética de uma posição libertária extremada, também conhecida como anarcocapitalismo[1], isto é, uma sociedade sem estado, mas baseada no princípio da propriedade privada.

O presente artigo tem por objetivo apresentar um exame crítico do Estado a partir do pensamento de Rothbard. Para o nosso autor, o Estado cai em duas graves deficiências injustificáveis: uma de ordem econômica e outra de ordem moral. Sendo que a de ordem moral é a principal para Rothbard rejeitar qualquer chance de legitimidade para o Estado. Por fim, considera-se que sua análise fornece importantes componentes para se pensar uma sociedade livre, justa e próspera.

1. Fundamentos Teóricos

1.1 O Teorema da não-agressão e o direito à propriedade

De acordo com nosso autor (Rothbard, 2002), o credo libertário se fundamenta num axioma central: nenhum homem ou grupo de homens pode cometer uma agressão contra a pessoa ou a propriedade do outro. Rothbard definiu este axioma como “teorema da não agressão”. Daí que agressão se define como o início do uso ou ameaça do uso da violência física contra a pessoa ou a propriedade do outro. Portanto, agressão é sinônimo de invasão.

A defesa libertária ao direito de propriedade privada é baseado no direito natural conforme demonstrado por John Locke:

Cada homem tem uma propriedade particular em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. (Locke, 2005: 38, § 27)

Sendo o indivíduo detentor exclusivo de seu próprio corpo e de sua propriedade legitimamente adquirida[2], ele possui por implicação lógica o direito de usufruir e gozar livremente de sua propriedade desde que o seu uso não implique numa agressão à pessoa ou à propriedade do outro, bem como, possui o direito à sua preservação e a autodefesa contra a agressão alheia. Portanto, a teoria libertária mostra que violar o direito de propriedade do homem significa também violar a sua liberdade. Na equação rothbardiana, tem-se que liberdade é uma extensão necessária do direito à propriedade.

De acordo com o pensador libertário, o princípio do direito à propriedade exclusiva que cada indivíduo possui de seu próprio corpo e dos lugares e bens por ele possuídos antes de qualquer outro está de pleno acordo com a nossa intuição moral. Rothbard (2002) nota que se A não for proprietário de seu corpo físico e da propriedade por ele originalmente apropriada, produzida ou adquirida voluntariamente resta apenas duas alternativas. Aprimeira, que um indivíduo B submeta o indivíduo A a seu jugo, expropriando o direito do outro a posse de seu próprio corpo e dos lugares e bens por ele possuídos, produzidos ou adquiridos. A questão que se impõe é: mas porque B teria esse direito sobre a propriedade e a pessoa de A? Ou, qual critério moral justificaria que B seja senhor e A seja servo? Para o libertário esta posição não se justifica, pois ela relativiza um código moral para os mesmos homens. Para Rothbard, é intuitivo e auto-evidente que uma moral humana, que se quer universal, deva rejeitar um princípio que assegure que um homem ou grupo de homens tem o direito de expropriar e subjugar o outro a força.

A segunda alternativa seria que cada homem possuísse parte da propriedade de todos os outros. Rothbard chamou essa alternativa de comunismo universal. Mas ele igualmente rejeita esta hipótese, pois ela culmina numa insolúvel contradição lógica. Ora, se cada um é co-proprietário do corpo e das propriedades do outro, ninguém pode tomar qualquer iniciativa sem antes pedir autorização para as outras partes co-proprietárias. Fica evidente que a propriedade comunal levaria a humanidade à inação e ao auto-extermínio[3], até porque no plano mundial seria impossível ter o aval de cada homem antes de tomar alguma iniciativa. Mas pior ainda, de fato ninguém poderia dar a sua própria opinião se antes não lhe fosse atribuído a propriedade exclusiva de si mesmo. Assim sendo, a única possibilidade moral que resta, segundo Rothbard, é a noção do direito exclusivo à propriedade que cada indivíduo tem sobre seu próprio corpo e por implicação lógica isto se estende ao direito de propriedade aos frutos do seu trabalho, ou seja, a original concepção lockeana do direito à propriedade dos objetos externos.

2. Trocas Voluntárias e Agressão

Sendo o princípio da não-agressão o elemento fundador do credo libertário, decorre que os homens possuem o direito para produzir e realizar trocas voluntárias com suas propriedades. Para fortalecer o argumento, oportuna se faz a distinção feita pelo sociólogo alemão Franz Oppenheimer em seu livro The State, frequentemente citado por Rothbard, onde ele distingue duas maneiras de se adquirir riquezas: o meio econômico e o meio político. O primeiro (meio econômico) consiste no resultado de trocas livres e voluntárias realizadas entre duas pessoas ou dois grupos. O resultado das livres trocas, ou livre comércio, não é um resultado de soma zero, porque as partes que realizam as trocas esperam obter benefícios mútuos, caso contrário não haveria a relação. Este arranjo voluntário de trocas se dá via mercado. É o meio econômico. O segundo meio de se adquirir riqueza, dizia Oppenheimer, é o meio político, onde uma pessoa ou grupo de pessoas expropria os recursos alheios via força e exploração. Oppenheimer nos diz que este meio de obter riquezas é genuinamente praticado pelos assaltantes e pelo Estado, uma vez que este obtém sua renda através da força coercitiva (taxação) sobre os súditos. Ou seja, o livre mercado constitui-se também num elemento legítimo das relações humanas conforme a teoria libertária.

Com base nisso, Rothbard pretende mostrar que a ação humana virtuosa somente pode se realizar sob condições de liberdade. As relações livres e contratuais, isto é, aquelas que se expressam no mercado, são os meios legítimos e morais para as relações humanas. No tocante à caridade, Rothbard (2004, cap. 6, PM) rejeita a idéia de que o Estado possa ser um ente caridoso, pois na prática o Estado tira de uns via força (impostos) para dar à outros. Para o pensador libertário não pode haver virtuosidade e caridade num contexto de violação de direitos, no caso, a violação da própria liberdade. E a ação só pode ser virtuosa onde haja a liberdade para agir e escolher agir virtuosamente.

3. O Estado

Como vimos acima, o libertarianismo se opõe a toda e qualquer forma de agressão e enxerga que ao longo da história e na atualidade sempre houve um agressor central, dominante e avassalador dos direitos do homem: o Estado. Rothbard acentua que

The libertarian, in short, insists on applying the general moral law to everyone, and makes no special exemp­tions for any person or group. But if we look at the State naked, as it were, we see that it is universally allowed, and even encouraged, to commit all the acts which even non-libertarians concede are reprehensible crimes. The State habitually commits mass murder, which it calls “war,” or sometimes “suppression of subversion”; the State engages in enslave­ment into its military forces, which it calls “conscription”; and it lives and has its being in the practice of forcible theft, which it calls “taxation.” The libertarian insists that whether or not such practices are supported by the majority of the population is not germane to their nature: that, regardless of popular sanction, War is Mass Murder, Conscription is Slavery, and Taxation is Robbery. The libertarian, in short, is almost completely the child in the fable, pointing out insistently that the em­peror has no clothes. (Rothbard. 2002: 23)

Os libertários alertam para a existência de um paradoxo moral na própria existência do Estado. Ele é a única instituição social que obtém sua renda via ação não-voluntária e não-contratual, ou seja, ele subsiste através da coerção violenta sobre a propriedade e a renda de quem obtém seus ganhos por meio das trocas livres e voluntárias. Se qualquer pessoa ou instituição social tentar obter sua renda através da violência coercitiva sobre a propriedade ou renda alheia imediatamente se enquadrará em ação criminosa, segundo as leis da mesma instituição que vive precisamente por meio deste expediente. Como diz Rothbard “o libertário aplica a lei moral geral para todos e não faz exceção especial a qualquer pessoa ou grupo”.

O filósofo libertário Barnett (1976), mostra que o Estado pela sua própria natureza não pode obedecer as suas próprias leis e códigos legais. Decorre que se o Estado é incapaz de obedecer as suas próprias leis, então ele é necessariamente ineficiente e auto-contraditório como legislador. Para Rothbard, portanto, há uma impossibilidade moral em conceder legitimidade à existência do Estado.

Nosso autor mostrou também a inerente ineficácia do Estado como fornecedor de bens públicos[4]. O Estado sendo um monopolista territorial sobre a oferta de alguns produtos ou serviços, como por exemplo, proteção e segurança, tende sistematicamente a reduzir a qualidade do serviço ao mesmo tempo em que aumenta o seu preço. Livre da competição ou da possibilidade da entrada de novos concorrentes no mercado e obtendo sua renda via cobrança de impostos e não através do pagamento voluntário, o Estado mantém-se num ambiente sem os incentivos constantes para aprimorar seus serviços, buscar a eficiência e a qualidade. Segundo Rothbard, a grande questão é

how is the government to decide how much protection to provide and how much taxes to levy? For, contrary to the limited gov­ernment theory, “protection” is no more a collective, one-lump “thing” than any other good or service in society. (Rothbard, 2002b: 180).

Rothbard desafia a concepção de que o Estado pode ser capaz de fornecer com eficiência qualquer serviço que se proponha. De fato, ele expõe três dúvidas teóricas de difícil solução. Quanto de proteção o Estado deve fornecer? A que custo? E quem decidirá a qualidade da proteção que cada pessoa deverá receber? De fato, “proteção” pode implicar qualquer coisa, desde um guarda costa armado por pessoa até um exército altamente equipado. De forma contundente, conclui Rothbard

Mas quem decidirá sobre quanto de proteção a ser produzida, uma vez que é inegável que toda pessoa estaria melhor protegida do roubo e da agressão se estivesse contando com um guarda-costa armado do que se não tivesse? No livre mercado, decisões sobre quanto e em que qualidade de qualquer bem ou serviço a ser ofertada a cada pessoa é feita pelos meios das compras voluntárias de cada indivíduo; mas qual critério pode ser aplicado quando as decisões são tomadas pelogoverno? A resposta é nenhum critério, pois tais decisões governamentais só podem ser puramente arbitrárias. (Rothbard, 2002b: 181).

Um pensador alinhado à escola austríaca de economia e um dos mais destacados seguidores de Rothbard em atividade, o economista e filósofo Hans-Hermann Hoppe, também revela as incontornáveis implicações de o Estado possuir o monopólio da última decisão em caso de conflitos (ultimate decision-making). Isto é, o Estado também se outorga a condição monopolista de último árbitro em todo caso de conflito, inclusive conflitos envolvendo ele mesmo, não havendo possibilidade de apelo acima ou para além de sua própria estrutura.

As noted, the government is the ultimate judge in every case of conflict, including conflicts involving itself. Consequently, instead of merely preventing and resolving conflict, a monopolist of ultimate decision-making will also provoke conflict in order to settle it to his own advantage. That is, if one can only appeal to government for justice, justice will be perverted in the favor of government, constitutions and supreme courts notwithstanding. Indeed, these are governmentconstitutions and courts, and whatever limitations on government action they may find is invariably decided by agents of the very same institution under consideration. (Hoppe, 2006).

Inserido neste irremediável contexto de arbitrariedade econômica-alocativa conforme mostrado por Rothbard; motivado, como todo mundo é, pelo auto-interesse e a desutilidade do trabalho e ainda equipado com o monopólio de última decisão em caso de conflito e o poder exclusivo de taxação, o objetivo dos agentes governamentais serão invariavelmente o de maximizar os gastos em proteção e ao mesmo tempo minimizar a produção de proteção. A consequência inevitável do Estado, ainda que uma vez considerado mínimo, será a sua sistemática expansão sobre a liberdade individual. Lamentavelmente, a história do Estado moderno registra este fenômeno, conforme demonstrou à exaustão Hoppe (2001).

Considerações Finais

De acordo com Rothbard, verifica-se que do ponto de vista econômico-utilitário o Estado é uma entidade que sofre de uma irresistível inclinação à ineficiência, isto é, ao ostensivo desperdício dos escassos recursos econômicos. Porém, para o autor americano, a crítica ao Estado, é antes de tudo de ordem moral, ainda que moral e utilidade, embora separadas, acabem sinalizando o mesmo caminho, isto é, o de adotar uma postura categórica de rejeição à entidade estatal.

Sem embargo, alguns poderiam criticar esta posição alegando que os libertários ignoram um dado elementar da natureza humana: uma certa tendência à agressão e à violência, pois que desprezam a necessidade do Estado para ordenar e regular o convívio social. No entanto, esta crítica seria precipitada, visto que os libertários não ignoram a natureza humana em geral nem a sua inclinação à violência e à agressão em particular. Os libertários simplesmente alertam que desta tendência natural do homem ao conflito não se segue, nem tampouco se justifica, a necessidade do monopólio estatal. Os teóricos libertários inferem que é precisamente do fato de “o homem ser o lobo do próprio homem” (na famosa frase de Hobbes) que haverá de surgir no mercado indivíduos, grupos e cooperativas, que fornecerão serviços de proteção à vida e à propriedade[5].

Se isto parece razoável, a questão que resta explicar diz respeito ao modo em que se darão os serviços de polícia e tribunais de arbitragem de conflito, enfim, como garantir o convívio social pacífico e a justiça num ambiente regulado apenas por agências privadas de proteção. Rothbard procurou responder esta questão mostrando em seu monumental tratado de economia Man, Economy, and State (1962) como funcionaria uma sociedade livre. Em Power and Market (1970) e em For a New Liberty (1973) mostrou como agências de proteção e segurança funcionariam numa sociedade livre. De acordo com nosso autor, diante da alternativa estatal, as relações voluntárias e contratuais são econômica e moralmente superiores em fornecer quaisquer produtos ou serviços à sociedade. O espaço não nos permitirá entrar nos detalhes desta perspectiva, contudo, uma lição que pode-se extrair a partir do exposto é que algo precisa ser pensado em relação a ordenação social, política e econômica das sociedades contemporâneas, especialmente quando vemos que o Estado moderno tem sistematicamente assumido poderes cada vez mais discricionários sobre a vida e a liberdade individual. E, finalmente, acredita-se que a análise rothbardiana pode nos auxiliar a compreender melhor as razões e implicações da expansão estatal. Levar isso em conta é indispensável para sabermos com mais rigor a quem e aonde combater as excrescências econômicas, políticas e sociais que observamos em nossa sociedade.

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[1] Usarei de modo intercambiável os termos “anarcocapitalismo”, “sociedade libertária” e “sociedade livre”, apenas para aliviar o texto de excessivas repetições.

[2] A justificação do direito de propriedade para Rothbard é somente para a propriedade legitimamente adquirida, isto é, somente as propriedades obtidas através da apropriação original de recursos não possuídos por ninguém (homesteading), e pelos métodos de produção e das trocas voluntárias, isto é, pelo método do livre mercado. Evidentemente que caridade e doações se enquadram aqui.

[3] Este argumento é também apresentado por Locke no Segundo Tratado sobre o Governo, § 28.

[4] Para uma demonstração da falácia no próprio conceito de bem público, ver Rothbard (2004: 1029-1036) e Hoppe (1989).

[5] Conforme ilustra a lei de associação de Ricardo, a tendência natural do homem é a cooperação e não o conflito, embora este também se faça presente, porém não com a preponderância suposta por Hobbes que efetivamente enxergava um conflito civil em torno do poder estatal monárquico e inversamente associava-o ao “estado de natureza” do homem, em seu livro O Leviatã (1651).

Referências Bibliográficas

BARNETT, Randy E. “Fuller, Law, and Anarchism.” The Libertarian Forum, February 1976, pp. 5-7.

HOPPE, Hans-Hermann. Democracy: The God That Failed. Transaction Publisher, 2001.

HOPPE, Hans-Hermann. “Fallacies of the Public Goods Theory and the Production of Security.” Journal of Libertarian Studies, Vol. 9 Num. 1, Winter 1989, pp. 27-46

HOPPE, Hans-Hermann. “The Idea of a Private Law Society.” Disponível em: https://www.mises.org/story/2265. Acesso em 25/11/2006.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Martin Claret, 2005

ROTHBARD, Murray N. For a New Liberty: The Libertarian Manifesto. Macmillan Publishing Co., Inc. Online Edition Ludwig von Mises Institute, 2002.

ROTHBARD, Murray N. Man, Economy and State with Power and Market. Mises Institute. Scholar Edition, 2004. Na citação “2004: PM” para Power and Market.

ROTHBARD, Murray N. The Ethics of Liberty. New York University Press, 2002b.

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