O filósofo da propriedade privada

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[A Ética da Liberdade . Por Murray N. Rothbard . New York University Press, 1998 [1982] . xlix + 308 páginas]

O professor Hans-Hermann Hoppe, em sua nova e extraordinária introdução do livro A Ética da Liberdade, acerta magistralmente o alvo.  Ele faz um contraste entre Murray Rothbard e Robert Nozick, uma figura muito mais famosa entre os filósofos acadêmicos e os teóricos políticos.  Embora ambos os escritores abracem o libertarianismo (Nozick de forma muito menos ardorosa e consistente do que Rothbard), seus estilos de pensamento são inteiramente diferentes.  Nozick, segundo Hoppe, é impressionista e dado a voos de imaginação.  Rothbard, por outro lado, raciocina a partir da estrita dedução de axiomas autoevidentes.

Concorde ou não com ele em relação a Nozick, ninguém pode contestar a acurácia da caracterização de Rothbard feita pelo professor Hoppe.  Apesar de eu ter lido a Ética da Liberdade muitos anos antes de sua primeira publicação, e ter erroneamente pensado já conhecer bem o livro, relê-lo acabou por erradicar minha complacência.  Rothbard é ainda mais consistente e rigoroso do que eu havia imaginado.

Uma única ilustração já basta.  Como qualquer colegial sabe, Rothbard baseou toda a sua ética política no princípio da auto-propriedade (isto é, da soberania do indivíduo): cada pessoa é a dona legítima e de direito de seu próprio corpo.  Poucos libertários discordariam dessa posição; mas poucos – talvez ninguém – perceberam as implicações desse princípio tão claramente quanto Rothbard.

Para muitos libertários, a liberdade de contrato é o fator essencial, o elemento indispensável, o objetivo supremo de uma sociedade livre.  Mas como observa Rothbard, a ilimitada liberdade de contrato, longe de ser uma conseqüência da auto-propriedade, é na realidade uma contradição da mesma.  É claro que, considerando-se a auto-propriedade, e o direito de adquirir propriedade ao se “misturar o trabalho” a uma propriedade sem dono, pode-se incorrer livremente em todos os tipos de contratos com terceiros.

Infelizmente, muitos libertários, defensores fiéis do direto de se firmar contratos, consideram que o próprio contrato é algo absoluto, e, portanto, afirmam que todo contrato voluntário, qualquer que seja, deve ser legalmente executável na sociedade livre. O erro deles é não conseguir perceber que o direito de contrato deriva-se completamente do direito de propriedade privada, e que conseqüentemente os únicos contratos executáveis … deveriam ser aqueles em que o descumprimento das obrigações contratuais por uma das partes implica em roubo da propriedade da outra parte.

Você não pode, portanto, vender-se à escravidão.  Você pode voluntariamente submeter-se aos caprichos de terceiros; porém, caso mude de ideia, nenhuma força legal pode obrigá-lo a obedecer ordens de terceiros.  Por que não?  Porque, repetindo, o contrato não é algo absoluto: somente aquilo que cabe na ideia de auto-propriedade pode ser legalmente executável.  Você pode entregar apenas a sua propriedade, e não você próprio.

Até aqui, suspeito eu, a maioria dos libertários concordaria com Rothbard.  (Nozick, se eu o entendi corretamente, não).  Tão logo você pense em um contrato que vai escravizá-lo, a ilimitada liberdade de contrato perde sua aparente plausibilidade.  Mas Rothbard vai ainda mais além; e é aí que surge a imensa força de sua sistemática consistência.

Rothbard utiliza o princípio da auto-propriedade para solucionar um complicado problema da teoria legal.  Qual é a base para se fazer cumprir um contrato?  De acordo com alguns teóricos, incluindo eminências como Oliver Wendell Holmes e Roscoe Pound, um contrato é, essencialmente, uma promessa.  Como você prometeu, em troca de um pagamento, realizar algum ato, você pode ser compelido a manter a sua promessa.

Uma variante dessa posição afirma que um contrato faz com que os agentes envolvidos esperem um tipo específico de comportamento.  Eles irão correspondentemente planejar suas ações e sofrer prejuízos caso suas expectativas sejam frustradas.  Para ajudar a garantir que as expectativas sejam cumpridas, os contratos devem ser legalmente cumpridos.

Rothbard facilmente despacha essas teorias.  Tanto o ‘contrato como promessa’ quanto o ‘contrato como expectativa cumprida’ são uma negação da auto-propriedade.  Você pode alienar apenas a sua propriedade, mas não a sua vontade.  Rothbard chega à drástica – embora estritamente lógica – conclusão de que nenhuma promessa desse tipo pode ser executada.  Um contrato legalmente vinculante é somente aquele que envolve uma transferência de títulos entre os agentes envolvidos no momento em que o contrato é firmado.

A conclusão de nosso autor é consequência natural de sua premissa; mas por que aceitar o axioma da auto-propriedade?  Aqui, mais uma vez, percebi o quão instrutiva foi minha releitura.  Imaginava eu já ter apreendido toda a essência do argumento de Rothbard em minha mente.  Ele argumenta que todas as sociedades possuem três alternativas: cada pessoa é dona de si própria, algumas pessoas são donas de outras, ou cada pessoa é dona de partes de todas as outras.[1]

Até aí, tudo bem.  Mas aí percebi que eu estava errado.  Estava disposto a pensar que Rothbard em seguida iria recorrer a intuições morais.  Afinal, não é óbvio que cada pessoa deveria ser dona de si própria e que a escravidão deveria ser rejeitada?

Porém o real argumento de Rothbard é muito mais sutil e complexo do que o esboço que estava entranhado em minha mente.  Sua defesa da auto-propriedade é baseada fortemente na questão do fato [juridicamente, uma questão que deve ser resolvida baseando-se em fatos e evidências]. Todas as pessoas, na realidade, estão no controle da sua própria mente.  Se eu obedeço a alguém, sou eu que em ultima instância estará tomando essa decisão; e a ameaça de violência da parte dessa pessoa caso eu siga minhas próprias vontades em nada altera a situação.  Sou eu quem decide se vou ceder às ameaças.

“E daí?”, você pergunta.  “Mesmo que Rothbard esteja certo quando diz que você não pode, de alguma forma, alienar suas vontades, como ele chega à conclusão que ele quer?  Partindo-se do fato de que você controla as suas vontades, como é possível concluir, baseando-se em um julgamento ético, que você não pode ameaçar violência contra outro auto-proprietário?  Não estaria Rothbard incorrendo naquela temida falácia, a derivação de um ‘deve’ a partir de um ‘é’?”

A esse discordante, Rothbard iria alegar uma exceção.  Ele de fato deriva um ‘deve’ de um ‘é’, porém ele nega incorrer na tal falácia.  Antes, Rothbard sustenta que princípios éticos advêm da natureza do homem.  É pelo fato de o homem possuir livre arbítrio que se pode concluir que ele não deve ser coagido por outros, a menos é claro que ele inicie alguma violência: nesse caso, sustenta Rothbard, o violentado pode responder com toda a força necessária. (“Tolstoiano” não é, no vocabulário de nosso autor, uma palavra elogiosa).

Rothbard está certo?  Se estiver, então ele subverteu o modo dominante de se fazer filosofia moral hoje em dia.  Ao apresentar o seu caso, Rothbard demonstra a sua notável capacidade erudita de extrair de um vasto conjunto de fontes exatamente aquilo de que precisa.  As obras de filósofos aristotélicos pouco conhecidos, como John Wild e John Toohey, conferem grande efeito à construção argumentativa de Rothbard.[2]

Rothbard baseia seu sistema na auto-propriedade e defende esse princípio por meio da ética da lei natural.  Mas não é apenas na fundação e na consistente elaboração de seu sistema que ele demonstra a sua habilidade.  À medida que ia relendo o livro, assombrava-me repetidamente com a freqüência com que Rothbard antecipava as contestações de seus críticos.

Se você pode adquirir uma propriedade sem dono por meio da ideia lockeana da apropriação original – isto é, misturando o seu trabalho a uma terra sem dono -, isso não estaria injustamente privilegiando o primeiro possessor?  Imagine um grupo de marinheiros náufragos nadando em direção a uma ilha desabitada.  É certo dizer que a primeira pessoa a chegar nela tornar-se-á a sua dona?  Poderia ele então recusar a entrada de seus colegas, a menos que estes lhe pagassem aluguéis exorbitantes?  Se ele puder fazer isso, não teria então algo de errado com esse sistema, supostamente firme em sua lógica?

De maneira alguma.  Rothbard facilmente desmonta a contestação.

Crusoé, ao aportar em uma imensa ilha, pode alardear grandiosamente ao vento sua “posse” de toda ilha.  Mas, na realidade natural, ele somente possui a parte que ele coloniza e coloca em uso.. Observe que não estamos dizendo que, a fim de que a propriedade sobre terras seja válida, ela precisa ser usada continuamente.  O único requerimento é que a terra seja colocada em uso uma vez, e deste modo se torne propriedade daquele que misturou seu trabalho com a terra, que estampou a marca de sua energia pessoal nela.

Podemos imaginar outra objeção a esse ponto.  Suponha que Rothbard possa lidar com as objeções de que os primeiros possuidores podem, nesse sistema, dominar todas as propriedades apenas para exigir um preço muito alto para vendê-las.  Entretanto, por mais lógica que tenha esse sistema, não seria ele irrelevante em termos práticos?

Afinal, a maioria dos títulos de propriedade atuais não se originou de uma linha clara de transmissão; as propriedades não necessariamente descenderam lockeanamente de um primeiro proprietário.  Muito pelo contrário, não seria desarrazoado imaginar que muitos títulos de propriedade de terras, caso sejam rastreados, revelarão atos de violenta expropriação.  Mesmo agora podemos estar transgredindo terras que originalmente pertenciam a tribos indígenas.  Uma tentativa de pôr em prática o sistema rothbardiano não levaria rapidamente ao caos?[3]

Como de costume, Rothbard havia ele próprio pensado nessa objeção.  Ele responde que o ônus da prova cabe àquele que contesta o título de propriedade da terra.  Se o embargante não puder comprovar sua reivindicação, então o possessor atual é o proprietário legítimo de sua terra.  Na ausência de uma evidência clara fornecida pelo embargante de que a terra foi forçosamente arrebatada dele ou de seus ancestrais, a alegação do atual possessor de que a terra é sua permanece válida.

Mas e se o embargante conseguir provar sua reivindicação?  Nesse caso, Rothbard está inteiramente preparado para levar ao cabo as implicações de seu sistema.  Muitos proprietários de terras na América Latina iriam, em um mundo rothbardiano, ver-se em iminente empobrecimento.

[Um] mercado verdadeiramente livre, uma sociedade verdadeiramente libertária devotada à justiça e aos direitos de propriedade, só pode ser estabelecida [no mundo subdesenvolvido] acabando-se com as injustas reivindicações feudalistas à propriedade. Mas os economistas utilitaristas, que não se baseiam em nenhuma teoria ética dos direitos de propriedade, acabam cedendo à defesa de qualquer que seja o status quo em existência.

A breve referência aos economistas utilitaristas sugere um outro aspecto do pensamento rothbardiano, um que o professor Hoppe enfatizou de modo percuciente.  Nosso autor era ávido por distinguir seu pensamento dos outros pensamentos que faziam defesas alternativas – e erradas, em sua opinião – do livre mercado.  Uma de suas críticas me é de particular interesse, por razões pessoais.

Durante muitos anos, Murray, à sua maneira naturalmente afável, me provocava por causa de minha indevida predileção por Nozick.  Eu tolamente resistia aos seus conselhos, embora com o tempo acabei vendo a luz.  Após uma renovada atenção ao seu capítulo dedicado a Nozick, custo a entender por que demorei tanto a mudar de ideia.

Como Rothbard demonstra, uma parte essencial do argumento de Nozick em prol do estado baseia-se em um equívoco crucial.  Rothbard sustenta que, idealmente, serviços de proteção deveriam ser ofertados por agências de proteção privadas operando em regime de livre concorrência.  Uma agência que detenha o monopólio compulsório – isto é, um governo – não é necessária e muito menos desejável.

Contra Rothbard, Nozick desfere um argumento que, a princípio, parece devastador.  Conceda a Rothbard seu anarquismo de mercado, sugeriu Nozick.  E então, de uma maneira inteiramente consistente com o sistema rothbardiano, uma agência monopolista irá surgir.  Assim, esse sistema irá se destruir a si próprio.

Aceitando o desafio, Rothbard aponta uma fraqueza crucial no argumento de Nozick.  Nozick se preocupa demasiadamente com casos em que as agências de proteção entram em desacordo quanto aos procedimentos apropriados a serem utilizados no julgamento de criminosos.  Um resultado que Nozick examina minuciosamente é um possível acordo entre as agências em uma corte de apelações.

Até aí Nozick está no caminho certo, e o próprio Rothbard dá muita ênfase à necessidade de acordos exatamente desse tipo.  Porém, de acordo com Nozick, agências que entram em acordos desse tipo já se aglutinaram em uma única agência.  Rothbard acha esse argumento sem tom nem som: será verdade que os disputantes que concordam em ir a um arbitramento repentinamente constituem uma única empresa?  A refutação que Nozick faz de Rothbard baseia-se inteiramente em uma definição arbitrária.

Abordei apenas alguns poucos tópicos desse rico e provocante livro.  Entretanto, ao fazer isso, temo ter testado a paciência de meus leitores com minhas constantes recordações.  Mas é que esse livro significa muito para mim [e pode ser lido na íntegra e em português aqui].

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Notas

[1] Será que essas alternativas são completas?  Variações e combinações da segunda e da terceira podem ser prontamente delineadas, porém isso não iria requerer mudança alguma nos fundamentos do argumento de Rothbard.

[2] Em conversas privadas, Murray sempre falou de sua admiração pela obra de Toohey.

[3] Já ouvi essa objeção sendo violentamente feita por Gordon Tullock.

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