O futuro do dólar – uma importante e ignorada declaração de Ben Bernanke

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2008_01_bernankeO presidente do Banco Central americano, Ben Bernanke, fez um discurso sinistro no dia 4 de outubro.  Não obteve nenhum destaque na mídia.  Não obteve destaque justamente porque foi muito sinistro.

O assunto abordado foi a vindoura crise fiscal do governo americano.  Não haverá maneira fácil de evitá-la, disse ele.  O Congresso americano terá de decidir qual gasto irá cortar.  Isso significa que o Congresso terá de decidir quais lobistas e grupos de interesse terão de ser ignorados.  Depois ele terá de decidir quais impostos serão elevados.  Qual pirão ficará sem a farinha?

O Congresso americano vem adiando essa decisão dupla desde que o governo Nixon exterminou de vez o pouco que restava do padrão-ouro, acabando com o padrão ouro-câmbio.

A essência da política é saber comprar votos com o dinheiro dos pagadores de impostos, de modo que o número de votos que você vai perder seja sempre menor que o número de votos que você vai conseguir comprar.  Em outras palavras, você precisa saber enganar.  Cada beneficiário deve chegar à seguinte conclusão: “Nesse esquema, vou ganhar mais do que terei de pagar”.  Dado que todos os participantes não podem estar corretos em seu julgamento, o fardo dos impostos tem de estar bem escondido.

Há outros dois fatores que também devem estar bem escondidos: o aumento dos déficits e o aumento da expansão monetária.

É aqui que Bernanke começou a disparar advertências para o Congresso.  Em seu discurso, ele mandou um aviso: o Fed não vai aceitar ficar com a culpa.  Ele não vai destruir o dólar (isto é, continuar expandindo a oferta monetária) a fim de que o Congresso continue podendo fazer seu jogo do engano.

Essa foi a Declaração de Independência de Bernanke.  A mídia não deu destaque e tampouco debateu o assunto.  Creio que o Congresso também não.

FECHANDO UMA SAÍDA

Vou guiar você leitor através do discurso.  À medida que você lê o que Bernanke diz, mantenha em mente essa pergunta: “O que ele está tentando dizer para o Congresso?”.

Ele deixou claro que o Congresso americano não pode seguir mantendo sua atual política.  Os mercados não permitirão.  Ele disse que haverá um dia do ajuste de contas: as taxas de juros vão subir.  Em algum momento futuro, os credores irão decidir que o governo dos EUA não mais é um devedor confiável.

Esse alerta vai visa a atingir o cerne de todo o procedimento de enganação efetuado pelo Congresso.  Bernanke disse que os juros irão subir.  Porém, todos sabem que os juros subirão para uma dívida já vastamente expandida, o que significa que o serviço da dívida encarecerá.  Os déficits atuais continuam elevando o total da dívida nacional.  O fardo dos juros atualmente está baixo porque as taxas de juros estão em mínimos não vistos desde a Grande Depressão.  Atualmente, não custa muito para seguir rolando a dívida.

O mesmo também é válido para os mercados de capitais privados.  Os tomadores de empréstimo podem continuar expandindo o nível de sua dívida pessoal porque suas parcelas mensais estão baixas em decorrência das baixas taxas de juros.  Isso seduz o público americano a contrair ainda mais dívidas.  Bernanke mencionou esse fato brevemente.  Ele consegue ver o que está por vir.  Quando as taxas de juros subirem, os americanos terão de restringir seu endividamento e reduzir suas compras.

Bernanke disse à plateia que a porta de saída atualmente mantida aberta pelos emprestadores será fechada.  Caso os juros pagos pelo governo continuem baixos, eles simplesmente irão reduzir suas compras desses papeis da dívida, parando de financiar o governo.

Essa foi uma maneira de dizer que a classificação AAA dada ao governo americano será rebaixada.  A ideia de que você nunca perde ao comprar títulos da dívida do governo americano irá entrar em extinção.  Trata-se de uma declaração e tanta feita por um presidente do Fed.  Atingiu em cheio os planos do Congresso americano de continuar adiando eternamente o dia do acerto de contas.

A intenção de Bernanke foi mostrar que uma das duas portas de saída será fechada pelo mercado.  Os emprestadores irão fechá-la.  Eles o farão por interesse próprio.

Isso irá deixar apenas uma outra saída: a disposição do Banco Central para comprar os títulos da dívida do Tesouro americano.  Ele nunca se refere diretamente a essa hipótese.

Enquanto eu lhe guio através do discurso, mantenha essa pergunta em sua mente: “Por que ele está dizendo isso para o Congresso?”  Eu consigo pensar em uma razão superficial: ele está dizendo ao Congresso para não contar com o Fed, pois este não irá socorrer o governo quando os emprestadores começarem a dizer “não”.  Ele está dizendo que o Congresso deve começar a impor cortes no orçamento, pois o Fed irá deixar os juros subirem.  Todo o jogo de enganação terá de acabar nesse momento.

Bernanke estava dizendo para o Congresso americano começar a decidir quis grupos de interesse ficarão sem farinha no pirão.

SEM SAÍDA

Ele estava tentando conseguir a atenção do Congresso.  Entretanto, isso foi indireto.  Ele não fez o discurso em uma sessão do Congresso.  Ele o fez para um grupo em Rhode Island — algo fora da tradição.

Não há como contornar a situação — enfrentar esses desafios irá requerer que os elaboradores de políticas econômicas e o público em geral tomem algumas decisões muito difíceis e aceitam alguns sacrifícios.

Decisões muito difíceis?  Sacrifícios?  Congresso?  A regra do jogo no Congresso é evitar decisões difíceis e sacrifícios.  O Congresso sempre supõe que o Banco Central estará lá como o emprestador de última instância.

Intuo que esse discurso foi a tentativa de Bernanke de mandar um sinal: “Não contem com o Fed para socorrê-los.”

E então ele ofereceu esperança.  Mas foi uma esperança puramente hipotética.

Mas a história já deixou claro que os países que continuamente gastam além de suas posses padecem de um crescimento mais lento de suas rendas e do seu padrão de vida, e estão propensos a maiores instabilidades econômicas e financeiras.  Inversamente, uma boa gestão fiscal é o alicerce do crescimento sustentável e da prosperidade.

Pergunto: Por que os EUA deveriam esperar uma boa gestão fiscal do Congresso?  Para quando?  O Congresso americano vem jogando o jogo do “deixa pra depois” desde que eu comecei a monitorar suas atividades: há meio século.  Bernanke sabe disso.

Qual nação do Ocidente já adotou uma “boa gestão fiscal”?  Todas elas estão incorrendo em déficits.  Todas elas dependem de seus bancos centrais para socorrê-las de tempos em tempos.

Bernanke estava dizendo ao Congresso que o jogo do deixar para depois deve acabar.  Porém, não agora!  Não é imperativo que algo seja feito por ora.  Tudo pode ser adiado.  Com efeito, deve ser adiado.

Por ora, o déficit orçamentário se estabilizou e — enquanto a economia e os mercados financeiros continuarem se recuperando — ele deve se reduzir em relação à renda nacional ao longo dos próximos anos.  As atuais condições econômicas não permitem muita margem para uma redução significativa do déficit nos próximos dois anos; com efeito, um aperto fiscal prematuro poderia colocar a recuperação econômica em risco.

Isso autoriza o Congresso americano a continuar “deixando pra depois” até 2012.  É isso que o Congresso quer ouvir.  Mas Bernanke escondeu uma pílula envenenada no bolo da festa.

No médio e no longo prazo, entretanto, a história é bastante diferente.

Ninguém em qualquer legislatura presta atenção em qualquer coisa distante mais do que dois anos.  Por isso Bernanke concentrou seu discurso em 2012 e adiante.  Isso significa que o Congresso não pedirá que ele elabore mais suas palavras.

JARGÕES BUROCRÁTICOS

Bernanke utilizou jargões burocráticos convencionais.  “Desafio” significa “politicamente insolúvel”.  “Sacrifício” significa “o que os americanos fizeram durante a Segunda Guerra Mundial”.  “Difícil” significa “adiável”.

E então ele listou os “desafios”.  E de fato são desafios.

Se as atuais políticas forem mantidas, e mantendo-se hipóteses razoáveis quanto ao crescimento econômico, o orçamento federal manter-se-á em um caminho insustentável nos próximos anos, com a razão dívida federal em poder do público/renda nacional aumentando em taxas crescentes.

Pegou essa?  Insustentável.  Significa “que não pode ser mantido”.  Significa “sem saída”.  Significa “sem perspectiva”.

Ademais, à medida que a dívida nacional seguir crescendo, o mesmo ocorrerá com o pagamento do serviço da dívida, o que por sua vez irá gerar um aumento nos já déficits programados.

Trata-se de um redemoinho.  Os déficits tornar-se-ão retroalimentáveis.  Será cada vez mais difícil controlá-los.  Hoje, com a taxa básica de juros extremamente baixa, os déficits já estão crescendo incessantemente.  O que acontecerá quando os juros subirem?

Expectativas de déficits amplos e crescentes no futuro podem inibir os gastos correntes das famílias e das empresas — por exemplo, reduzindo a confiança nas perspectivas de longo prazo da economia ou aumentando a incerteza quanto à futura carga tributária e aos gastos do governo —, reprimindo desta forma a recuperação.

Ele estava alertando o Congresso de que os efeitos do adiamento serão o aumento dos juros.  Se os juros subirem, os consumidores irão cortar seus gastos.  Isso irá produzir uma recessão, ou ao menos um desaquecimento.  E isso, consequentemente, vai reduzir as receitas de impostos.  Portanto, quando os juros subirem, ficará mais difícil para o governo americano coletar impostos.  De novo, temos aí um redemoinho.  Ao adiar os cortes de gastos, o Congresso americano fará com que o desastre seja pior quando os juros subirem.  Como disse Bernanke, isso irá diminuir a capacidade do Congresso de escapar da encrenca.

Preocupações com a situação fiscal de longo prazo do governo também podem restringir a flexibilidade da política fiscal em responder às atuais condições econômicas.

Tradução: “O Congresso terá pouca flexibilidade quando os emprestadores disserem não.”

Consequentemente, medidas tomadas hoje para melhorar a situação fiscal de longo prazo do país não apenas ajudariam a garantir uma estabilidade econômica e financeira no longo prazo, como também poderiam aprimorar a perspectiva econômica de curto prazo.

Observe a voz passiva: medidas tomadas.  Pergunta: “Exatamente quem deve tomar exatamente quais medidas?” Resposta: silêncio.  Bernanke não iria identificar qual pirão terá de ficar sem a farinha. Isso é problema do Congresso, não dele.

Nossos desafios fiscais são especialmente intimidantes porque são predominantemente o produto de poderosas tendências subjacentes, e não fatores temporários ou de curto prazo.

Tradução: isso veio pra ficar.  Por quê?  Porque é uma questão demográfica.  Trata-se de um fluxo que já está no encanamento e não pode ser revertido.

Duas das mais importantes forças propulsoras serão o envelhecimento da população americana — cujo ritmo irá se intensificar ao longo das próximas décadas, quando a geração nascida no pós-guerra irá se aposentar — e os crescentes custos da saúde.  À medida que as necessidades de serviços de saúde da população envelhecida forem aumentando, os programas federais voltados para a saúde tornar-se-ão, de longe, a maior fonte única de desequilíbrios fiscais no longo prazo.

Qual congressista irá se levantar e dizer “Vamos cortar os fundos dos aparelhos médicos que mantêm a vovó viva”?  Nenhum?  Bem, então de fato teremos “desafios intimidantes”.  “Desafios intimidantes” significa “depois que eu me aposentar”.

Aqui em Rhode Island, assim como em outros estados, a aposentadoria de funcionários públicos estaduais, em conjunto com os contínuos aumentos nos custos da saúde, fará com que os fundos de pensão estaduais e os planos de saúde desses aposentados tornem-se crescentemente difíceis de serem atendidos.  Estimativas do passivo a descoberto de todos os sistemas de pensão estaduais variam bastante, mas alguns pesquisadores apresentaram valores tão altos quanto US$2 trilhões, ainda no final de 2009.

O que os estados estão fazendo para lidar com isso?  Exatamente o que o Congresso americano está fazendo para lidar com os déficits do programa Medicare (programa de responsabilidade da Previdência Social americana que reembolsa hospitais e médicos por tratamentos fornecidos a indivíduos acima de 65 anos de idade): absolutamente nada.

Como já apontei, as projeções do Congressional Budget Office (agência federal responsável pelos cálculos e análises do orçamento do governo) apontam um crescimento incontrolável dos déficits e da dívida do governo, a taxas crescentes.  É fato que projeções são de alguma forma meros exercícios de hipóteses.  Quase que por definição, trajetórias insustentáveis de déficits e dívidas nunca irão se realizar de fato, pois os credores jamais se disporiam a emprestar para um país cuja dívida fiscal em relação à renda nacional esteja crescendo sem limites.  Herbert Stein, um sábio economista, certa vez disse que “Se algo não pode prosseguir para sempre, irá parar.”  De um jeito ou de outro, ajustes fiscais suficientes para estabilizar o orçamento federal certamente irão ocorrer em um determinado momento.

Em que momento?  Quando o Fed parar de comprar títulos do Tesouro.  Então haverá um calote.  É claro que Bernanke nunca irá utilizar essa palavra politicamente incorreta.  Porém, está claro que ele espera que o Congresso intua isso.

E o Congresso irá ter essa intuição?  É claro que não.  Ele irá deixar pra depois.

ALERTA TOTAL

Bernanke seguiu em sua lengalenga monótona, como sempre faz.  Ele listou tudo aquilo de que todo mundo sabe e sempre ignora.  Mas ele cumpriu sua obrigação.  Ele deu seu alerta, sem dar especificidades.  Ser específico é algo que ele nunca é.  Mas ele terminou dizendo isso.

Hoje eu destaquei os desafios fiscais dos EUA.  Nos últimos anos, a recessão e a crise financeira, em conjunto com as medidas políticas tomadas atenuas seus efeitos, erodiram nossa situação fiscal.  Uma economia em crescimento deverá reduzir os déficits no curto prazo, mas nossas finanças públicas estão em um caminho de longo prazo insustentável, refletindo em grande parte o envelhecimento de nossa população e o contínuo aumento nos custos da saúde.  Não devemos subestimar esses desafios fiscais; uma reação omissa a eles irá pôr em risco nosso futuro econômico.

O Congresso será omisso em sua reação?  É claro que sim.  O futuro econômico dos EUA está em risco?  É claro que sim.

Normas fiscais bem concebidas não substituem a determinação política de se tomar decisões difíceis, porém as experiências americana e internacional sugerem que elas podem ajudar os legisladores em certas circunstâncias.

Em outras palavras, elas não vão funcionar se não houver determinação política para impor sacrifício aos eleitores.  Existe tal determinação?  É claro que não.  Portanto, agora que sabemos que as normas fiscais não funcionarão, paremos com essa torcida por normas fiscais.

Com efeito, a implementação de uma norma fiscal poderia mandar um importante sinal para o público de que o Congresso está sério quanto à obtenção de uma sustentabilidade fiscal de longo prazo, o que por si só seria bom para restaurar a confiança.  Uma norma fiscal poderia também enfocar e institucionalizar apoio político para a responsabilidade fiscal.  Dada a importância de se obter uma estabilidade fiscal de longo prazo, discussões adicionais sobre normas e abordagens fiscais parecem bem justificadas.

Fim do discurso.  Aplausos.  Almoço.

Estou dizendo que o discurso foi um exercício de futilidade?  É claro que sim.  Bernanke sabe disso?  É claro que sim.  Alguma coisa irá mudar até o dia em que o Congresso americano der de cara com o muro e descobrir que os emprestadores pararam de emprestar?  Não.

CONCLUSÃO

Haverá um grande calote.  Creio que Bernanke sabe disso.  Seu discurso serviu para que ele possa no futuro dizer “Não digam que eu não os alertei.”

O que ele realmente estava dizendo?  Isso: “O Federal Reserve não irá agir para socorrer o Congresso.” Ele estava dizendo que ambas as portas de saída irão se fechar: os empréstimos privados para o governo e as compras de títulos feitas pelo Fed.

É por isso que ele gastou tanto tempo na ameaça da elevação dos juros.  Se o Fed estiver lá para socorrer o Congresso, mantendo os juros lá em baixo por meio de uma hiperinflação monetária, então o Congresso nunca precisará arrumar suas contas.  Porém, Bernanke estava dizendo ao Congresso justamente o oposto: que ele terá de arrumar a casa.

Conclusão: o Fed não irá hiperinflacionar a base monetária.

Eu não sei se o Congresso irá entender a mensagem.  Mas é bom que o resto do mundo entenda.

O Congresso irá continuar jogando o jogo do “deixa para depois”.  Mas chegará o dia em que o Fed não mais irá ajudar o Congresso a continuar jogando esse jogo.  Esse será o dia do acerto de contas.

Bernanke estava dizendo que o Congresso terá de nacionalizar o Fed caso queira continuar jogando esse seu jogo de empurra.  O Fed não irá destruir os grandes bancos destruindo o dólar para salvar o Congresso.

O discurso de Bernanke foi feito para os grandes bancos.  Eles acabaram de mandar um memorando para o Congresso.  É bom que o Congresso leia esse memorando.

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