O jiu-jítsu e a ciência econômica – muito mais em comum do que poderíamos imaginar

0
Tempo estimado de leitura: 8 minutos

Mises_jiujitsuEconomia e artes marciais?  Quais paralelos podemos traçar entre ambas?  Em primeiro lugar, as duas representam um tipo de conhecimento sistemático: a ciência econômica é o estudo da ação humana e de sua interação com bens e serviços, e as artes marciais são o estudo da melhor maneira de sobrepujar fisicamente outro homem.

Ambas são ideias que foram desenvolvidas por centenas de anos, e estão subdivididas em diversas escolas ou estilos.  No entanto, foi na metade do século XX que ambas desenvolveram um ramo invencível: na economia, consolidou-se a Escola Austríaca de Economia, tendo Ludwig von Mises como líder, e nas artes marciais, o jiu-jítsu brasileiro, tendo Hélio Gracie no comando.  E é sobre estas duas ramificações específicas da economia e das artes marciais que irei discorrer neste artigo.

O jiu-jítsu foi criado por monges indianos e, com o tempo, foi se espalhando pela Ásia até chegar ao Japão feudal, onde foi praticado e desenvolvido pelos samurais. Após o período Meiji, quando a ordem Samurai foi abolida e o Judô foi desenvolvido por Jigoro Kano, o jiu-jítsu chegou ao Brasil em 1914, com um aluno de Kano, Mitsuyo Maeda, conhecido como Conde Koma.  Em 1917, Koma ensinou sua arte para o jovem Carlos Gracie.  Carlos passou estes ensinamentos para seus irmãos e os Gracies começaram a praticar e a desenvolver esta arte marcial, dando origem a um novo estilo, o jiu-jítsu brasileiro.  E foi o irmão mais novo e mais fraco de Carlos, Hélio, quem aperfeiçoou mais eficientemente o jiu-jítsu, e se tornou um lutador “casca-grossa”.

Os irmãos Gracie começaram a abrir academias de jiu-jítsu e, para provar a superioridade de seu estilo, começaram a desafiar lutadores de outras artes marciais ou qualquer pessoa que duvidasse da eficiência de sua luta, colocando inclusive anúncios em jornais com estes desafios — e os Gracies derrotavam todos que apareciam.  Hélio se tornou o Gracie mais proeminente, sendo por muitos anos o lutador número um da família, e isto o transformou em uma celebridade no Brasil.  Em busca de reconhecimento mundial, Hélio desafiou o campeão mundial de jiu-jítsu, o japonês Kimura, que era 30 quilos mais pesado que Hélio.  Kimura se recusou a lutar com Hélio, dizendo que ele era o campeão e que se Hélio quisesse uma luta, deveria lutar com Kato, o vice-campeão — que também possuía uma enorme vantagem de peso — que também o derrotaria com facilidade.

A luta, no entanto, acabou ocorrendo, e Hélio derrotou Kato em 6 minutos, forçando Kimura a aceitar o desafio anterior.  Kimura declarou que se Hélio durasse mais do que 3 minutos, ele o consideraria o vencedor.  Em 1951, Kimura derrotou Hélio aos 13 minutos, quando Carlos jogou a toalha para evitar que o braço de Hélio fosse quebrado pela chave que Kimura lhe aplicou — e que depois foi batizada com seu nome.  Hélio se aposentou e era chegada a hora para a segunda geração dos Gracies assumir a tarefa de reivindicar a superioridade de sua arte.

Durante os anos de 1970, os filmes de Bruce Lee fizeram grande sucesso, e professores de kung fu e karatê apareceram para desafiar a hegemonia do jiu-jítsu.  Foi a vez de Rolls Gracie encarar o desafio.  Rolls era filho de Carlos, criado por Hélio, e foi o melhor lutador que a dinastia Gracie já produziu.  Ele derrotou facilmente o mestre de karatê, e nesta luta foi possível observar, na técnica de Rolls, o atual “Gracie jiu-jítsu” em sua forma totalmente desenvolvida — ele havia adicionado ao jiu-jítsu técnicas de wrestling e sambo.

Rolls morreu pouco tempo depois em um trágico acidente de asa-delta, o que fez com que outros lutadores passassem a representar a família Gracie em inúmeros desafios subsequentes.  O jiu-jítsu dos Gracie sempre venceu.

Porém, mesmo diante desta esmagadora superioridade, o “jiu-jítsu Gracie” não foi capaz de derrotar um oponente: Hollywood.  A imensa maioria do público mundial ainda acreditava que o kung fu e outros estilos semelhantes eram o supra-sumo das artes marciais.  Apenas alguns poucos estavam cientes da verdade sobre as artes marciais. Posso mencionar aqui o meu exemplo pessoal: em meados da década de 1980, mesmo vivendo no Brasil, eu ignorava completamente a supremacia do jiu-jítsu dos Gracie e, influenciado por filmes bobos como Karatê Kid, matriculei-me em uma academia de karatê, tornando-me anos depois um faixa preta de tae kwon do. Assim como o resto do mundo, só fui ter consciência da verdade sobre as artes marciais no começo dos anos 1990.

Rorion Gracie estava morando na Califórnia desde a década de 1970, ensinando e promovendo o “jiu-jítsu Gracie”, desafiando e vencendo lutadores locais — a esta altura, uma tradição familiar.  Em 1993, ele teve uma ideia que iria transformar o mundo das artes marciais para sempre, e iria de uma vez por todas provar qual estilo era o melhor: ele inventou o Ultimate Fighting Championship (UFC), um torneio de artes marciais sem regras e sem divisões por peso, que na realidade tinha apenas uma característica distinta do que a família vinha fazendo nas últimas décadas: ele seria transmitido pela TV americana e veiculado ao redor do mundo.

Rorion também criou o octógono, um ringue gradeado, ideal para este tipo de luta. O lutador escolhido para representar os Gracies não foi Rickson, que era o musculoso atual campeão da família, mas sim seu irmão Royce, que, como seu pai Hélio, não era um sujeito nada intimidador fisicamente — embora mais alto do que Hélio. Royce venceu todas as lutas das primeiras edições do torneio, derrotando grandes mestres das mais variadas artes marciais.  Só que, desta vez, o mundo todo pôde ver a família Gracie em ação.

Daquele momento em diante, todo o mundo soube que, se alguém quisesse se tornar um bom lutador, teria de aprender jiu-jítsu — ou seria derrotado por um lutador que soubesse jiu-jítsu.  Não foi apenas uma vitória de Royce; foi a vitória suprema do jiu-jítsu estilo Gracie sobre todos os outros estilos.  Foi como a descoberta da América por Colombo: os europeus já haviam estado aqui antes, mas foram suas navegações cruzando o Atlântico que levaram ao conhecimento geral da existência do continente americano, mudando o mundo para sempre.

Pouco depois do UFC, Rickson foi para o Japão e venceu facilmente os melhores lutadores japoneses, confirmando aquilo que Royce havia demonstrado nos EUA.

Agora, falemos sobre ciência econômica.  As origens da Escola Austríaca podem ser encontradas nos trabalhos dos escolásticos tardios da Universidade de Salamanca, na Espanha, que descobriram e explicaram as leis econômicas.  Estes ensinamentos foram desenvolvidos por intelectuais europeus como Cantillon, Turgot, Bastiat e Say até 1871, quando Carl Menger, professor de economia na Universidade de Viena, condensou-os com a teoria da utilidade marginal e fundou a Escola Austríaca de Economia, marcada pela publicação da obra Princípios de Economia Política.

O primeiro adversário de Menger e da Escola Austríaca foi a Escola Historicista Alemã, representada por Gustav von Schmoller e outros. Menger os enfrentou e os derrotou durante uma disputa intelectual chamada de Methodenstreit durante os anos de 1890. Menger teve muitos discípulos, entre eles o arquiduque Rudolf von Habsburg, príncipe da família imperial da Áustria.  Mas foi Eugen von Böhm-Bawerk quem levou os ensinamentos do mestre a novos patamares, aplicando-os a diversos temas, desenvolvendo ainda mais a Escola Austríaca.  Böhm-Bawerk também enfrentou batalhas intelectuais, principalmente contra os marxistas, e saiu vitorioso refutando definitivamente a teoria da exploração do socialismo-comunismo.

No entanto, foi somente com um aluno de Böhm-Bawerk que a Escola Austríaca se desenvolveria em um estilo invencível.  Ludwig von Mises reconstruiu a ciência econômica sobre sólidas fundações epistemológicas, colocando a economia como um ramo de uma ciência maior — a praxeologia —, dando a ela o status de uma disciplina axiomática lógico-dedutiva.  Mises começou a aperfeiçoar a Escola Austríaca em 1912, com a publicação de The Theory of Money and Credit, e já em 1920, com a publicação do ensaio O cálculo econômico sob o socialismo, ele derrotou todos os pensadores socialistas, demonstrando que o socialismo era impraticável.

Durante toda a sua vida, Mises teve inúmeras disputas intelectuais com todos os tipos de adversários — socialistas, marxistas, positivistas, intervencionistas, neoliberais etc. —, e teve muitos estudantes, que por sua vez também enfrentaram subsequentemente este tipo de batalha.  Provavelmente uma das mais importantes batalhas foi lutada por um aluno de Mises, Friedrich August von Hayek, contra John Maynard Keynes.

Durante os anos 1930, Hayek era um professor na London School of Economics, e era o mais influente economista austríaco no mundo anglo-saxão.  Ele era, portanto, o homem para enfrentar Keynes, que havia publicado sua Teoria Geral em 1936.  Hayek foi um aluno de Mises, mas antes disso ele já era um discípulo de Friedrich von Wieser, e iria permanecer essencialmente um wieseriano pelo resto de sua vida.  Foram as inconsistências de sua abordagem wieseriana/walrasiana a respeito do equilíbrio geral que o levaram a sucumbir diante de Keynes.

Keynes apresentou uma teoria totalmente falaciosa — sem nenhuma inovação sobre o que já existia —, mas sua teoria fornecia um adorno e um linguajar científicos em defesa dos gastos governamentais, da inflação, dos déficits e de todo o resto que os políticos adoram fazer.  Com o tempo, sem uma refutação sólida, o tsunami keynesiano varreu o mundo da economia.

Na verdade, a ciência econômica da Escola Austríaca misesiana só foi se desenvolver completamente nos anos 1940, quando Mises publicou Nationalökonomie (1940) e Ação Humana (1949).  Apenas os estudantes de Mises dos anos 1940 em diante seriam os verdadeiros misesianos, como Murray Rothbard, Hans Sennholz, Israel Kirzner, Ralph Raico e George Reisman.  Os misesianos — os estudantes de Mises e os estudantes destes estudantes de Mises — continuaram enfrentando batalhas intelectuais contra outras escolas de pensamento econômico, e continuaram vencendo todas. Rothbard foi um lutador exímio que aperfeiçoou a ciência econômica misesiana em muitas maneiras e encarou todos os tipos de adversários. Muitos desses avanços e disputas podem ser vistos em publicações vultosas como Man, Economy and State e Economic Controversies.

Apesar de todas essas vitórias e de toda a sua superioridade, a Economia Austríaca misesiana não é o “estilo” dominante de ciência econômica no mundo. A ciência econômica misesiana está onde o jiu-jítsu dos Gracie estava 20 anos atrás — amplamente desconhecida e praticada por uma pequena minoria.  Nós austríacos tivemos grandes mestres como Hélio e Rolls, e hoje em dia temos grandes lutadores como Royce e Rickson, mas parece que está faltando um Rorion.  Estamos tentando de muitas formas alterar o paradigma econômico.  O economista austríaco Robert Murphy está desafiando o famoso keynesiano laureado com o prêmio Nobel Paul Krugman há algum tempo.  Krugman já debateu ao vivo outro austríaco, Ron Paul, mas foi apenas um debate informal em um curto telejornal (Paul Vs Paul).  No decorrer de suas duas últimas campanhas presidenciais, Ron Paul promoveu a escola austríaca misesiana como ninguém havia feito até então; porém, isso foi incapaz de causar qualquer abalo ao mainstream econômico — o keynesianismo continua dominando o mundo acadêmico e a mídia.

Os Gracies também se esforçaram por muitas décadas, e sem sucesso, fazendo coisas como este seminário de 1988 promovido por Chuck Norris (no qual ele conta a história de quando Hélio Gracie, com 75 anos, o colocou para dormir), ou a tentativa de Rorion de também usar Hollywood, quando ele dirigiu as cenas de luta de Mel Gibson no filme Máquina Mortífera, ou quando ele próprio atuou em um filme B (mostrando definitivamente que o jiu-jítsu não servia para filmes, ao contrário do kung fu e sua plasticidade).  Foi somente com o UFC que eles finalmente atingiram uma audiência significativa.

Obviamente, a ciência econômica nunca será algo tão popular quanto as lutas de UFC, e disputas intelectuais jamais atrairão o grande público.  Mas a ciência econômica possui seu público e o zeitgeist econômico influi muito mais na vida cotidiana das massas do que a dominância de uma arte marcial em particular.

Quando Hélio Gracie já estava bem idoso, perguntaram a ele o que era um homem fraco.  E ele respondeu: “Eu sou um homem fraco.  Eu nasci fraco e vou morrer fraco.  Eu derrotei meus adversários apenas porque eu sabia jiu-jítsu.”  Ele lutou sua vida inteira para provar a superioridade de seu estilo — e conseguiu. O mundo veio a saber sobre esta superioridade do jiu-jítsu brasileiro “de estilo Gracie” somente após as vitórias de Royce no UFC.

Mises também lutou toda a sua vida para demonstrar o que é uma ciência econômica válida; para provar a superioridade da Economia Austríaca misesiana — e ele conseguiu.  Mas poucos estão a par deste fato.  Como estourar essa bolha intelectual é o maior dos desafios que os austríacos têm diante de si.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui