O que é a economia e por que estudá-la

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Trecho do primeiro capítulo do livro Economics for Real People

[A economia] é universalmente válida e absoluta e simplesmente humana.

– LUDWIG VON MISES, Ação Humana

 

Quando nos aproximamos, pela primeira vez, de uma ciência que queremos conhecer, surge a pergunta: “Que é que ela estuda?” Outra maneira de tratar a questão é indagar: “Que pressupostos básicos esta ciência traz consigo para a sua investigação do mundo?” Num primeiro passo, ao lidar com um novo assunto, você geralmente tenta fazer uma idéia do que ele trata. Antes de comprar um livro de biologia, toma a resolução de que irá ler sobre organismos viventes; no início de um curso de química, adquire a certeza de que irá estudar os modos pelos quais a matéria se combina em diferentes formas.

Muitos pensam, de modo geral, estar familiarizados com a economia. Entretanto, se você perguntar por aí, verá que as pessoas têm dificuldade em definir a disciplina. “É o estudo do dinheiro”, talvez lhe digam. “Tem a ver com negócios, lucro e perda, e assim por diante”, outro afirmará. “Não, ela trata de como a sociedade escolhe distribuir a riqueza”, argumentará outra pessoa. “Nada disso! É a busca por padrões matemáticos que descrevem o movimento de preços”, teimará uma quarta. O professor Israel Kirzner assinala, em The Economic Point of View, que até mesmo entre economistas profissionais há “uma série de formulações do ponto de vista econômico que são assombrosas em sua variedade.”

A razão primária dessa confusão é que a economia é uma das mais jovens ciências conhecidas pelo homem. Certamente que houve uma proliferação de novos ramos das ciências atuais, nos séculos que se passaram desde que a economia se tornou reconhecida como disciplina à parte; mas a biologia molecular, por exemplo, é uma divisão da biologia, não uma ciência inteiramente nova.

A economia, no entanto, é diferente. A existência de uma ciência econômica própria pode ser rastreada até a descoberta de que há uma previsível regularidade na interação das pessoas em sociedade, e que essa ordem veio à luz sem que tivesse sido planejada por ninguém.

A intuição desta regularidade, que se destaca tanto da regularidade mecânica do universo físico quanto dos planos traçados por um indivíduo qualquer, foi o primeiro surgimento da idéia de ordem espontânea na consciência científica do Ocidente. Antes do advento da economia como ciência, simplesmente se supunha que, caso encontrássemos ordem nas coisas, estas deveriam ter sido ordenadas por alguém – por Deus, em se tratando das leis físicas, e por certos indivíduos, em se tratando de objetos fabricados pelo homem e de instituições.

Os primeiros filósofos políticos propuseram diversos esquemas para organizar a sociedade humana. Se o plano falhava, seu criador geralmente dava por certo que os governantes ou os cidadãos não tinham sido virtuosos o suficiente para o pôr em prática. Não lhe ocorria, a esse planejador, que o plano contradissesse leis universais da ação humana e que, portanto, não pudesse dar certo, não importa quão virtuosos fossem os participantes.

O progresso da liberdade humana que teve início na Europa, durante a Idade Média, e que culminou na Revolução Industrial, expôs uma terrível lacuna no esquema de conhecimento então vigente. Cada vez mais, a sociedade européia ocidental estava deixando de ser explicitamente ordenada pelo comando de um soberano. Uma a uma, iam caindo as restrições à produção. O ingresso nas profissões deixou de ser estritamente controlado por uma guilda; ainda assim, de algum modo parecia haver aproximadamente o número certo de carpinteiros, ferreiros, pedreiros, e assim por diante. Não mais se requeria licença real para que alguém passasse a fazer parte duma linha de produção; no entanto, ainda que qualquer pessoa pudesse abrir uma cervejaria, o mundo não estava mergulhado em cerveja; uma vez mais, a quantidade fabricada se mostrava bem perto da necessária. Mesmo sem ninguém para elaborar um plano mestre para as importações de uma cidade, a variedade de bens que nela aportava parecia cerca da correta. No século XIX, o economista francês Frédéric Bastiat comentou a respeito da mágica desse fenômeno, exclamando: “Paris é abastecida!” A economia não criou tal regularidade, nem mesmo precisa encarar a tarefa de provar que ela existe – vemo-la à nossa frente todos os dias -, mas precisa, isso sim, explicar como a mesma regularidade acontece.

Muitos estudiosos contribuíram com o despertar da compreensão de que a economia era um novo modo de olhar para a sociedade. As origens da ciência econômica se estendem ainda mais no passado do que comumente se pensa, com certeza até pelo menos ao século quinze, época do trabalho realizado pelos Escolásticos Tardios na Universidade de Salamanca, na Espanha, o que mais tarde motivou Joseph Schumpeter a lhes conferir o título de primeiros economistas.

Adam Smith pode muito bem não ter sido o primeiro economista, como por vezes é chamado; porém, mais do que qualquer outro filósofo social, ele popularizou a noção de que os seres humanos, deixados livres para perseguirem seus próprios objetivos, promoveriam uma ordem social que nenhum deles havia conscientemente planejado. Como ele celebremente escreveu n’A Riqueza das Nações, o homem livre age como se “guiado por uma mão invisível para promover um fim que não fazia parte de sua intenção.”

Em sua magnum opus, Ação Humana, o economista austríaco Ludwig von Mises escreveu que essa descoberta deixou as pessoas tomadas de:

estupefação, [pois descobriram] que existe outro aspecto, diferente do bom e do mau, do justo e do injusto, segundo o qual a ação humana podia ser considerada. Na ocorrência de fenômenos sociais prevalecem regularidades às quais o homem tem de ajustar suas ações, se deseja ser bem-sucedido.

Mises assim descreveu as dificuldades iniciais em determinar a natureza da economia:

Na nova ciência, tudo parecia problemático. Ela era uma intrusa no sistema tradicional de conhecimento; as pessoas estavam perplexas e não sabiam como classificá-la nem como designar o seu lugar. Por outro lado, estavam convencidas de que a inclusão da economia no sistema de conhecimento não necessitava de uma reorganização ou expansão do programa existente. Consideravam completo o seu sistema de conhecimento. Se a economia não cabia nele, a culpa só podia estar no tratamento insatisfatório aplicado pelos economistas aos seus problemas. (Ação Humana)

O sentimento de estupefação para muitas pessoas logo foi substituído pelo de frustração. Elas tinham idéias para reformar a sociedade, e agora descobriam, plantada no meio do caminho, a incipiente ciência da economia. Esta lhes advertia, a esses reformadores, que alguns planos para a organização social falhariam, qualquer fosse a perícia com que seriam executados, por violarem leis básicas da interação humana.

Interrompidos em seus percursos, em razão dos feitos dos primeiros economistas, alguns desses reformadores, como Karl Marx, tentaram invalidar a disciplina como um todo. Os economistas, redargüia Marx, estavam apenas descrevendo a sociedade tal como a haviam encontrado sob dominação dos capitalistas; não há verdades econômicas que se apliquem a todos os homens em todos os tempos e lugares; mais especificamente, as leis formuladas pela escola clássica, por escritores como Smith, Thomas Malthus e David Ricardo, não se aplicarão àqueles que viverem na futura utopia socialista. Diziam os marxistas que, de fato, esses pensadores não passavam de apologistas da exploração das massas pela minoria abastada; os economistas clássicos eram, para dizê-lo ao estilo dos marxistas chineses, lacaios dos porcos imperialistas fazedores de guerra.

Em tal medida Marx e semelhantes pensadores sucederam no objetivo de minar as bases da economia, que a fragilidade destes fundamentos se evidenciou.  Pois se os economistas clássicos haviam descoberto de fato muitas verdades econômicas, também se deixaram contaminar, em suas teorias, por certas inconsistências, por exemplo, a incapacidade de formular uma teoria de valor que fosse coerente. (Trataremos adiante mais detalhadamente desta dificuldade em particular.)

Foi Mises quem, baseando-se no trabalho de economistas austríacos que vieram antes dele (como Carl Menger), finalmente reconstruiu a economia “sobre o sólido fundamento de uma teoria geral da ação humana.”

Pode ser importante, para determinados propósitos, diferenciarmos entre a ciência geral da ação humana, que Mises denominava praxeologia, e a economia enquanto ramo da ciência que lida com as trocas monetárias. Contudo, uma vez que o termo praxeologia não seja de uso corrente, e não seja importante, num livro introdutório, traçar uma demarcação rígida entre a economia e o resto da praxeologia, usarei o termo economiapara me referir à ciência da ação humana, como um todo. O próprio Mises frequentemente assim o emprega: “A economia… é a teoria de toda ação humana, a ciência geral das imutáveis categorias da ação e do seu funcionamento em quaisquer condições imagináveis sob as quais o homem age” (Ação Humana).

O que Mises entende por “ação humana”? Deixemo-lo falar:

Ação humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida. (Ação Humana)

Numa linha parecida, o filósofo britânico Michael Oakeshott descreveu a ação humana como a tentativa de substituir o que é pelo que deve ser, aos olhos daquele que age.

A fonte da ação humana é o descontentamento, ou, caso você prefira considerar o copo como estando metade cheio, a idéia de que a vida pode ser melhor do que é no presente. Julga-se “o que é” como algo insuficiente. Pois se nos contentarmos com o jeito como as coisas estão neste momento, perderemos a motivação para agir (qualquer ato só poderia torná-las piores!). Mas tão logo nos damos conta de algo, em nosso mundo, que consideramos ser menos que satisfatório, ergue-se a possibilidade de agir com vistas a remediar tal situação.

Por exemplo, você se espicha numa rede, perfeitamente satisfeito com o mundo, tudo o mais seguindo o curso natural das coisas, quando o seu repouso é perturbado por um zumbido. Ocorre-lhe que você se sentiria muito mais à vontade se o som cessasse; em outras palavras, é capaz de pressentir condições mais propícias. Neste caso, você está experimentando o primeiro componente da ação humana, o descontentamento.

Somente o descontentamento, todavia, não é suficiente para agirmos. Antes de tudo, você precisa entender acausa desse mal-estar. Ah, claro, o barulho; e, no entanto, não basta meramente desejarmos que desapareçam os ruídos. Precisamos descobrir o que está causando o barulho. Para agirmos, necessitamos entender que cada causa é o efeito de alguma outra causa; temos de ser capazes de seguir uma cadeia de causa e efeito até atingirmos um ponto em que percebemos que a nossa intervenção, a nossa ação romperá a cadeia e extinguirá o nosso descontentamento. Há que enxergar um plano onde nos possamos mover do que é ao que deve ser.

Se o zunido vem de um avião que o sobrevoa, você não irá agir. (A menos que a sua casa esteja equipada com um canhão antiaéreo, nada há que você possa fazer em relação ao avião.) Você precisa crer que a sua ação pode causar um efeito no mundo. Para agir, simplesmente, não é essencial que você esteja correto em sua crença! O homem primitivo muitas vezes acreditou que representar determinados ritos pudesse melhorar o meio em que vivia, talvez trazendo chuva durante a estiagem ou quem sabe fazendo com que se multiplicassem as manadas que ele caçava. Até onde sei, esses truques não funcionavam; a crença de que funcionariam, porém, era o bastante para levar as pessoas a agirem de acordo com eles.

Ora, você olha ao redor para achar a causa do barulho e depara com um mosquito. Talvez você possa fazer algo em relação ao zumbido – pode esmagar o mosquitinho. Você está estudando uma finalidade, no caso, a de se livrar do mosquito; percebe que alcançá-la lhe trará um benefício – o ruído acabará, e você poderá descansar sossegado.

Logo, você poderia se levantar e matar o mosquito. Mas algo diferente também lhe passa pela cabeça: simplesmente ficar à toa, deitado na rede. Tem agora de travar uma luta corpo-a-corpo com outro componente da ação humana: precisa fazer uma escolha. É óbvio que seria uma beleza se livrar do mosquito – mas para tanto você terá de se levantar. Uma maçada. A vantagem que você espera obter em se safando do mosquito se dará sob custo de levantar-se. Se o benefício da ação supera o custo, mais ganhará você com o agir.

Embora frequentemente usemos ganho para nos referirmos ao benefício monetário, o termo possui também sentido mais amplo, como na frase: “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” Ora, todas as ações que levamos a cabo, seja a compra de ações ou o retiro numa montanha para meditarmos, fazemo-las de olho no ganho, nesse sentido psíquico. Conforme indica a citação acima, se nos decidimos a levar uma vida santa na pobreza, é porque esperamos que o resultado final nos seja mais proveitoso que o preço de nos entregarmos à busca das riquezas do mundo: esperamos lucrar com a escolha.

As escolhas implicam levarmos em conta os meios necessários para alcançarmos os nossos objetivos. Eu não me importaria de ser o homem mais forte do mundo, mas, se considero esse propósito, sou obrigado a ter em mente, também, o que deveria fazer para realizá-lo. Precisaria ter acesso a equipamentos de musculação, comprar suplementos alimentares, bem como passar muitas horas, todos os dias, fazendo exercícios. Em nosso mundo, nada do que desejamos aparece simplesmente por ação do desejo. Muitas coisas que queremos, até mesmo algumas de que necessitamos para viver, só podem ser obtidas com dispêndio de tempo e esforço. Equipamentos de musculação não caem do céu (graças a Deus!), e, se perco horas e horas por dia levantando peso, não tenho como usar essas mesmas horas escrevendo um livro ou brincando com os meus filhos.

Para o homem mortal, o tempo é, entre todos, o bem mais escasso. Até mesmo para Bill Gates, o tempo se acha em pequeno estoque. Mesmo que Gates possa, numa mesma manhã, custear o fretamento de jatinhos particulares para Aruba e para o Taiti, ainda assim não poderá voar para ambos os lugares simultaneamente! Ser humano é saber que os nossos dias na terra estão contados, e que é mister escolhermos como usá-los. Porque vivemos num mundo de escassez, o uso dos meios para atingir um fim envolve custos; para mim, o preço de consumir o meu tempo levantando pesos é determinado pelo quanto valorizo as outras maneiras com as quais eu poderia gastá-lo.

Para a economia, o valor dos objetivos particulares que podemos mirar é subjetivo. Ninguém no mundo poderá me dizer se uma hora despendida no levantamento de pesos é mais ou menos valiosa, para mim, do que uma hora empregada no escrever. Tampouco existe uma maneira de medir objetivamente a diferença na minha valoração destas atividades. Ninguém inventou um “valorímetro”. Expressões como “Aquele jantar foi duas vezes melhor que o de ontem à noite” são meramente figuras de linguagem, que não encerram uma verdadeira capacidade de medir a satisfação; o modo de comprová-lo, como notou Murray Rothbard, é perguntar: “Duas vezes o quê?”. Pois bem, nós nem sequer dispomos de uma unidade com que possamos medir a satisfação.

A natureza subjetiva do valor foi um dos principais insights de Carl Menger. O valor, para os economistas clássicos, constituía um paradoxo. Intentaram basear sua teoria de valor, através de alguma medida objetiva, no trabalho envolvido na produção de um bem ou na utilidade desse mesmo bem. Considere, porém, o simples caso de um diamante encontrado, durante um passeio, jogado no chão: trabalho algum foi necessário para produzir a jóia, nem se trata de algo mais útil, ao menos no que toca diretamente à manutenção da vida, do que um copo d’água. Menger cortou o nó górdio ao fundamentar a sua teoria de valor neste fato singelo: os objetos são valiosos porque os agentes humanos os têm nessa conta.

A economia austríaca não se dá ao trabalho de julgar se é sábia ou não a nossa escolha de objetivos a serem buscados; não nos diz se estamos errados ao valorizarmos certa quantidade de horas de lazer mais que determinada soma de dinheiro; não concebe o homem como criatura meramente preocupada com o ganho monetário. Nada há de “não-econômico” no fato de alguém doar uma fortuna ou abrir mão de um trabalho muito bem remunerado para se tornar monge.

A questão de haver ou não valores objetivos não interessa à economia. Uma vez mais, não se deve aqui entender que a economia austríaca é hostil a qualquer religião ou sistema de ética. Eu pessoalmente sei de economistas austríacos que são católicos, ateus, judeus ortodoxos, budistas, objetivistas, protestantes e agnósticos, e, caso conhecesse eu mais economistas, não tenho dúvidas de que poderia mencionar muçulmanos, hinduístas, e outros. A economia deveria, muito apropriadamente, deixar a comparação dos valores a cargo da ética, da religião e da filosofia; a nossa ciência não é uma teoria de tudo, mas tão somente uma teoria das conseqüências da escolha. Quando a estudamos, tomamos os objetivos humanos como um dado fundamental: por alguma razão, as pessoas escolhem certos fins e agem com vistas neles. O objetivo da nossa ciência é explorar as implicações desses fatos.

Mises afirmou na introdução a Ação Humana:

Toda decisão humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha, o homem escolhe não apenas entre diversos bens materiais e serviços. Todos os valores humanos são oferecidos para opção. Todos os fins e todos os meios, tanto os resultados materiais como os ideais, o sublime e o básico, o nobre e o ignóbil são ordenados numa seqüência e submetidos a uma decisão que escolhe um e rejeita outro. Nada daquilo que os homens desejam obter ou querem evitar fica fora dessa ordenação numa escala única de gradação e de preferência. A moderna teoria de valor estende o horizonte científico e amplia o campo dos estudos econômicos.

 

Tradução de Davi James Dias

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