O sistema bancário de reservas fracionárias

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N. do T.: Talvez o aspecto mais crucial de qualquer sistema econômico seja o seu sistema bancário.  Entretanto, essa é uma área sobre a qual pouquíssimas pessoas entendem.  Muitos, aliás, sequer conhecem seu funcionamento mais básico — algo que serve apenas para ajudar o regime.  No artigo a seguir, Murray Rothbard não apenas ensina o funcionamento dessa instituição, como também explica por que todo o sistema bancário que funciona sob a regulamentação de um banco central é um cartel por natureza — no caso, um cartel legalizado e fomentado pelo estado.  A história sobre o surgimento dos bancos centrais varia de país para país; porém, sua função de cartelizador do sistema bancário é a mesma, independente do continente.

 

O sistema bancário é uma parte particularmente hermética e misteriosa do sistema econômico; um dos problemas é que a palavra “banco” engloba muitas atividades distintas, e com implicações muito diferentes.  Durante o Renascimento, os Médici, na Itália, e os Fugger, na Alemanha, eram conhecido como “banqueiros”.  Entretanto, seus bancos não apenas eram privados como também surgiram como sendo uma atividade legítima, não inflacionária e altamente produtiva.  Essencialmente, eles eram “banqueiros-mercadores”, que começaram sua carreira como notórios comerciantes.  No decurso de sua profissão de comerciante, esses mercadores começaram a conceder crédito a seus clientes, e, no caso específico dessas duas grandes famílias de banqueiros, a parte de suas atividades que mexia com crédito ou operações bancárias passou a ofuscar suas outras atividades comerciais.  Essas empresas emprestavam dinheiro oriundo de seus próprios lucros e poupanças, e cobravam juros sobre esses empréstimos.  Assim, elas canalizavam sua própria poupança para investimentos produtivos.

Quando os bancos limitam-se a emprestar sua própria poupança, ou a mobilizar a poupança de terceiros, suas atividades são produtivas e irrepreensíveis.  Mesmo no atual sistema bancário, se eu comprar um Certificado de Depósito Bancário (CDB) resgatável em seis meses, e ganhar sobre essa aplicação uma determinada taxa de juros, estou apenas pegando minha poupança e emprestando-a ao banco, que, por sua vez, irá emprestá-la a terceiros e cobrar uma taxa de juros maior do que a que ele vai me pagar, sendo essa diferença embolsada pelo banco como recompensa pela tarefa de ter direcionado minha poupança para tomadores de empréstimos produtivos ou dignos de crédito.  Não há problema algum com esse processo.

O mesmo é válido até mesmo para os grandes “bancos de investimento”, que se desenvolveram à medida que o capitalismo industrial foi prosperando no século XIX.  Os banqueiros de investimentos normalmente utilizavam seu próprio capital, ou o capital investido ou emprestado por terceiros, para financiar a aquisição de capital de grandes corporações.  Eles faziam isso vendendo títulos a acionistas ou credores.  O problema com os bancos de investimento é que um de seus principais campos de investimento passou a ser o financiamento de títulos do governo.  Isso os mergulhou profundamente no mundo da política, dando-lhes um poderoso incentivo para pressionar e manipular governos para que estes aumentassem impostos, possibilitando assim o pagamento dos títulos governamentais em posse sua e de seus clientes.  Donde advém toda a poderosa e perniciosa influência política desfrutada pelos bancos de investimento nos séculos XIX e XX: em particular os Rothschild, na Europa Ocidental, e Jay Cooke e os Morgan, nos EUA.

Já no final do século XIX, os Morgan tomaram a iniciativa de pressionar o governo dos EUA para que este cartelizasse as indústrias nas quais eles, os Morgan, estavam interessados — primeiro as ferrovias e depois as fábricas.  A intenção era proteger esses setores da livre concorrência utilizando o poder do governo de modo que lhes possibilitasse restringir a produção e aumentar os preços.  Em particular, os banqueiros de investimento haviam se tornado um grupo bastante ativo na busca pela cartelização dos bancos comerciais.

Em certa medida, os banqueiros comerciais emprestam seu próprio capital e dinheiro adquiridos via CDBs.  Mas os bancos comerciais são, na verdade, “bancos de depósito” que se baseiam em uma fraude colossal: a ideia, na qual a maioria dos depositantes acredita, de que seu dinheiro está de fato no banco, pronto para ser resgatado a qualquer momento.  Se João tem uma conta-corrente de $1.000 em um banco local, João sabe tratar-se de um “depósito à vista”, isto é, ele sabe que o banco promete pagar-lhe $1.000 em dinheiro, de imediato, a qualquer momento que ele queira “retirar seu dinheiro”.  Naturalmente, os Joões desse mundo estão convencidos de que seu dinheiro está lá no banco, seguro, esperando para ser sacado a qualquer momento.  Portanto, eles pensam em suas contas-correntes como sendo o equivalente a um recibo de armazenagem.  Se uma pessoa coloca uma cadeira em um armazém antes de sair para uma viagem, ela espera recuperar essa cadeira assim que ela voltar e apresentar seu recibo.  Infelizmente, embora os bancos aparentemente funcionem como armazéns, os depositantes na realidade são sistematicamente iludidos.  Seu dinheiro não está lá.

Um armazém honesto garante que os bens entregues a seus cuidados estejam lá, no almoxarifado ou no cofre.  Mas os bancos operam bem diferentemente, pelo menos desde a época de bancos de depósito como o Banco de Amsterdã e o de Hamburgo, ainda no século XVII.  Estes de fato agiam como armazéns, lastreando todos os seus recibos com os ativos que eram nesses bancos depositados, como ouro e prata.  Essa forma honesta de banco de depósito é chamada de sistema bancário com 100% de reservas.  Porém, desde então os bancos assumiram o hábito de criar recibos de armazenagem (na época, notas bancárias; atualmente, depósitos em conta-corrente) sem qualquer lastro.  Essencialmente, eles se tornaram fraudadores que criam falsos recibos de armazenagem que circulam como se fossem genuínos e totalmente lastreados por cédulas de dinheiro.  Os bancos ganham dinheiro ao simplesmente criarem dinheiro do nada — antes, eles podiam criar suas próprias cédulas; hoje, eles criam apenas depósitos eletrônicos.

Esse tipo de fraude ou falsificação é dignificado com a alcunha “sistema bancário de reservas fracionárias”, o que significa que os depósitos bancários são lastreados por apenas uma pequena fração do dinheiro que o banco promete ter em mãos no momento do resgate.  [Nos EUA, esse valor sempre girou em torno de 10%.  No Brasil, ele era de 36% até outubro de 2008.  Atualmente está em 28%].

Vejamos como funciona o processo de reservas fracionárias na ausência de um banco central.  Eu crio o Banco Rothbard e invisto nele, como capital inicial, $1.000 em moeda física (se é ouro ou cédula de papel não interessa nesse caso).  Então eu “empresto” $10.000 para alguém, que irá ou gastar com consumo puro e simples ou investir em seus negócios.  Agora, como é que eu posso “emprestar” mais do que eu tenho?  Ahh, essa é a mágica da “fração” das reservas fracionárias.  Eu simplesmente crio uma conta-corrente de $10.000 e empresto alegremente esse valor para o senhor José.  E por que José vai querer esse empréstimo de mim?  Por que ele não procura outros meios?  Bom, como eu não preciso poupar $10.000 (apenas $1.000), eu posso cobrar juros menores do que cobrariam aqueles reais poupadores que porventura também estivessem dispostos a emprestar (nesse caso, $10.000 genuinamente poupados).  Eu estou em vantagem; eu posso simplesmente criar dinheiro do nada.  (Nos EUA, durante um período do século XIX, eu poderia emitir minhas próprias cédulas; hoje, o Federal Reserve monopoliza a emissão monetária. ).

Uma vez que os depósitos à vista no Banco Rothbard funcionam como o equivalente a dinheiro, a oferta monetária do país, magicamente, aumentou em $10.000.  O processo inflacionário e fraudulento começou.

O economista inglês do século XIX, Thomas Tooke, disse que “livre comércio no sistema bancário é o equivalente a um livre comércio de trapaça”.  Não obstante isso seja verdade, é válido lembrar que sob um livre mercado genuíno — isto é, um sistema em que não haja uma blindagem governamental ao setor — há obstáculos severos a esse processo fraudulento.  Um sistema bancário totalmente desregulamentado e sem a proteção estatal é chamado de “sistema bancário livre” ou “livre atividade bancária” (free banking).

Nesse sistema, por que alguém deveria confiar em mim?  Por que alguém iria aceitar as promessas de pagamento — isto é, o dinheiro eletrônico na conta-corrente — do Banco Rothbard?  E, mesmo que alguém confiasse em mim, ainda haveria outro problema grave: esse sistema bancário é de livre concorrência, sendo que a entrada no setor é livre.  E o Banco Rothbard está limitado à sua clientela.  Assim, após eu ter criado uma conta-corrente para José, na forma de empréstimo, ele irá gastar esse dinheiro.  Afinal, para que mais ele pediria um empréstimo?  E mais cedo ou mais tarde, esse dinheiro que ele gastou (eletronicamente) será gasto na compra de bens ou serviços de clientes de algum outro banco — por exemplo, do Banco Rockwell.

Mas tudo o que o Banco Rockwell recebeu foi dinheiro eletrônico (um recibo de armazenagem em nome do Banco Rothbard). E o Banco Rockwell não está muito interessado em manter uma conta-corrente em meu banco; ele quer ter suas próprias reservas monetárias (moeda física) para que ele próprio possa criar dinheiro em cima dessas reservas (esse ato de criar dinheiro fictício sobre dinheiro real é chamado de ‘piramidar’, pois trata-se de um pirâmide invertida: a base é menor do que o topo).  Portanto, se o Banco Rockwell receber um cheque ou um depósito eletrônico (via cartão de débito) de $10.000 em nome do Banco Rothbard, ele vai demandar a transferência de $10.000 em moeda física, para que ele possa piramidar em cima dela.

Mas eu, obviamente, só tenho $1.000, e não posso pagar esses $10.000.  Portanto, estou acabado. Quebrado e falido.  Em termos de justiça, eu deveria ir para a cadeia como um fraudador.  E tanto eu quanto a falsa conta-corrente que criei estaríamos fora do jogo e fora da oferta monetária.

Assim, sob um sistema de livre concorrência, e sem o governo para ajudar os fraudadores, haveria um espaço bastante limitado para a prática da falsificação permitido pelas reservas fracionárias.  Os bancos até poderiam formar cartéis para se protegerem mutuamente, mas geralmente cartéis não funcionam bem em um mercado onde não há proteção governamental, onde o governo não suprime e elimina aqueles concorrentes que insistem em quebrar cartel — nesse caso, para quebrar o cartel bastaria que um banco concorrente exigisse o pagamento de algum outro banco que tivesse praticado essa falsificação em larga escala.

Banco Central

Daí é possível entender todo o esforço que os próprios banqueiros fizeram para que o governo cartelizasse sua indústria através de um banco central.  A instituição do banco central começou com o Banco da Inglaterra na década de 1690, espalhou-se para o resto do mundo ocidental nos séculos XVIII e XIX, até que finalmente foi imposto nos EUA em 1913.  Particularmente entusiasmados com a ideia de um banco central estavam os banqueiros de investimento, como os Morgan, pioneiros na ideia do cartel econômico e que, já a essa época, haviam se expandido para o setor de bancos comerciais.

No sistema atual de bancos centrais, o governo concede ao Banco Central o monopólio da emissão de cédulas monetárias, que passam então a ser o “padrão” monetário do país.  Sabemos que os indivíduos usam dinheiro tanto em sua forma física (cédulas e moedas metálicas) como em sua forma eletrônica (depósitos bancários).  Assim, se eu quiser resgatar $1.000 em cédulas de minha conta bancária, o banco tem de ir ao Banco Central e sacar esse dinheiro da conta-corrente que esse banco tem junto ao Banco Central.  Ou seja, Banco Central age como o banco dos banqueiros.

Essas contas-correntes que os bancos mantêm junto ao Banco Central são obrigatórias e constituem suas reservas compulsórias, sobre as quais eles podem ‘piramidar’, criando uma quantia fictícia de dinheiro inversamente proporcional à taxa que determina essas reservas compulsórias.  É o Banco Central quem determina o valor dessas taxas.  [Nos EUA, o compulsório é 10% do valor total dos depósitos em conta-corrente, o que significa que os bancos americanos podem criar dinheiro no valor de até 10 vezes o total de reservas compulsórias (1/0,10); no Brasil, como o compulsório atual é de 28%, esse valor é de até 3,6 vezes (1/0,28)].

Veja como esse processo de fraudulência funciona no mundo atual.  Digamos que o Banco Central, como de praxe, decide que quer expandir (leia-se inflacionar) a oferta monetária.  O Banco Central então vai até o mercado (chamado de “open market” ou mercado aberto) e compra um ativo.  Não importa qual ativo ele compra; o ponto importante é que ele vai criar dinheiro eletronicamente, simplesmente apertando teclas em um computador.  O Banco Central poderia, caso quisesse, comprar qualquer ativo que lhe aprouvesse, inclusive ações, edifícios ou moeda estrangeira.  Na prática, ele compra títulos do Tesouro.

Suponhamos que o Banco Central queira comprar $10.000.000 em títulos do Tesouro.  Esses títulos estarão em posse de um dealer “aprovado” pelo governo. [Dealers são instituição credenciadas para efetuar essas operações de mercado aberto.  No Brasil, os dealers são os principais bancos do país. Veja a lista deles].  Nesse caso, o Banco Central vai simplesmente acrescentar eletronicamente $10.000.000 na conta-corrente que esse dealertem junto ao BC (o compulsório) em troca dos títulos do Tesouro.  De onde o BC tirou os $10.000.000 para pagar o dealer?  De lugar nenhum.  Ele criou esse dinheiro do nada.  O dealer (um banco qualquer) agora está com excesso de reservas depositadas junto ao BC.  A “oferta monetária” do país aumentou em $10.000.000; nenhuma outra conta-corrente sofreu qualquer decréscimo.  Houve um aumento líquido de $10.000.000.

Mas isso é apenas o início do processo inflacionário e fraudulento.  O banco que recebeu esses $10.000.000 ainda está com esse dinheiro parado em suas reservas compulsórias junto ao BC.  Isso significa que suas reservas cresceram $10.000.000 e que — a menos que haja alguma elevação da taxa do compulsório — o banco pode agora ‘piramidar’ sobre elas.  Esse banco pode agora criar novas contas-correntes baseadas nessas reservas e, à medida que esse dinheiro recém-criado vai vazando para outros bancos (como aconteceu com o Banco Rothbard), cada um desses outros bancos, através do mesmo processo, pode montar seu próprio esquema inflacionário, até que o sistema bancário como um todo tenha aumentado seus depósitos à vista em $100.000.000, dez vezes a compra original de ativos feita pelo BC [nesse exemplo, a taxa de compulsório foi de 10%.  No Brasil, como uma taxa de 28%, o valor final seria de aproximadamente $35.700.000].

Quando o sistema bancário pode manter reservas que totalizam apenas 10% de seus depósitos, como no exemplo acima, o “multiplicador monetário” — a quantia de depósitos que os bancos podem expandir sobre suas reservas — é 10.  Uma compra de ativos no valor de $10 milhões feita pelo BC gera um aumento de dez vezes — $100 milhões — na oferta monetária do sistema bancário como um todo.

Curiosamente, todos os economistas concordam com a mecânica desse processo, ainda que eles, obviamente, discordem fortemente quanto à avaliação moral ou econômica desse processo.  Mas infelizmente, o público em geral, não iniciado nos mistérios do sistema bancário, segue acreditando que seu dinheiro permanece “no banco”.

Dessa forma, o Banco Central age como o criador e o xerife de um gigantesco cartel bancário protegido pelo governo; o BC, além de socorrer aqueles bancos que estão em dificuldades, ainda centraliza e coordena todo o sistema bancário de modo que todos os bancos possam inflacionar conjuntamente.  Sob um sistema bancário livre e desregulamentado, um banco que inflacionasse mais do que seus concorrentes estaria em eminente perigo de falência.  Porém, quando há um banco central, todos os bancos podem confortavelmente inflacionar em conjunto.

Por fim, suponhamos que, amanhã, todo o público repentinamente se desse conta da fraude que é o sistema bancário, corresse para os bancos e, em uníssono, exigisse a retirada de seu dinheiro.  O que aconteceria?  Os bancos instantaneamente se tornariam insolventes, pois possuem apenas uma pequena fração de todo o dinheiro que devem aos seus perplexos clientes.  Uma opção seria implementar um enorme aumento nos impostos para ressarcir esses correntistas.  Porém, é óbvio que tal medida não seria muito palatável.  Assim, a única coisa que o BC poderia fazer — e isso seria exclusivamente de sua competência — seria imprimir uma quantia suficiente de dinheiro para pagar todos os correntistas.

Desnecessário dizer que os correntistas, agora encorajados por esse gigantesco socorro, irão prontamente redepositar essa enorme quantidade de dinheiro nos bancos, aumentando o total de reservas bancárias e possibilitando uma imediata expansão da oferta monetária, seguindo os mesmos preceitos já descritos.  Uma inflação rampante e a destruição total da moeda seriam as conseqüências inevitáveis.

3 COMENTÁRIOS

  1. Na ausência de um Banco Central o sistema bancário, em conjunto, poderia definir uma taxa de reservas fracionarias limitando a quantia de oferta monetária que possa ser expandia, no entanto, essa taxa seria “controlada” pela probabilidade de seus clientes retirarem um volume de moeda maior ao existente em depósito nestes bancos. Estou correto?

  2. Estou olhando o balanço do Banco Itaú aqui agora. Pode me mostrar em qual linha eu consigo visualizar onde o banco “cria dinheiro”?
    A contabilidade segue a regra básica das partidas dobradas, ou seja se lanço algo no ativo, tenho uma contra partida no passivo e vice versa.
    Pois bem, se o banco tem R$ 1.000 de PL, vc está afirmando que é possível que ele empreste 3.6 vezes, ou seja se ele quiser pode ao invés de lançar R$ 1.000 de caixa, ele poderia fazer empréstimos e lançar R$ 3.600 nos seus ativos. Qual é a contrapartida no passivo?

  3. O autor tem toda a razão de chamar o sistema de ”pirâmide” invertida. Minha única dúvida é sobre como estabelecer na prrática – depois de séculos de vigência desse sistema – a quantidade de moeda ”correta” por assim dizer para eliminar o vício de origem do sistema.

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