Por que é impossível argumentar contra a propriedade privada sem cair em autocontradição

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Nesse artigo, primeiramente irei expressar a teoria geral da propriedade como sendo um arranjo de regras aplicáveis a todos os bens, cujo intuito é ajudar a evitar todos os conflitos sociais possíveis, e então irei demonstrar como essa teoria geral está implícita no princípio da não-agressão.  De acordo com o princípio da não-agressão, um indivíduo pode fazer o que quiser com o seu próprio corpo, desde que ele, ao agir assim, não agrida o corpo de outra pessoa.  Da mesma forma, esse indivíduo pode fazer uso de quaisquer outros meios escassos, assim como faz uso de seu próprio corpo, desde que esses meios escassos já não tenham sido apropriados por outra pessoa — isto é, desde que eles ainda estejam em seu estado natural, sem proprietário.

Tão logo recursos escassos tenham sido visivelmente apropriados — tão logo um indivíduo “misture seu trabalho” nesses recursos, para utilizar a frase de John Locke, e haja sinais objetivos disso —, então a propriedade (o direito ao controle exclusivo) poderá ser adquirida somente por meio de uma transferência contratual de títulos de propriedade, do proprietário anterior para o próximo; e qualquer tentativa de delimitar unilateralmente esse controle exclusivo facultado ao proprietário, ou qualquer transformação não solicitada das características físicas dos meios escassos em questão, será — em inteira analogia com agressões contra o corpo de terceiros — uma ação injustificável.

A compatibilidade desse princípio com o da não-agressão pode ser demonstrada por meio de um argumentum a contrario.  Primeiro, deve ser notado que, se ninguém tivesse o direito de adquirir e controlar qualquer coisa exceto seu próprio corpo (uma regra que passaria no teste formal da universalização), então qualquer sobrevivência seria impossível, todos nós deixaríamos de existir, e o problema da justificação de declarações normativas simplesmente também não existiria.  A existência desse problema só é possível porque nós estamos vivos, e nossa existência se deve ao fato de que nós não aceitamos — e não podemos aceitar — uma norma proibindo a propriedade sobre outros meios escassos além do nosso próprio corpo.  Logo, o direito de adquirir e se tornar proprietário de tais bens deve ser assumido como existente.

Agora, se assumirmos isso, mas não aceitarmos que um indivíduo tem o direito de adquirir tais direitos de controle exclusivo, por meio de seu próprio trabalho, sobre objetos naturais e nunca utilizadas (fazendo algo com objetos com os quais ninguém mais já havia feito qualquer coisa antes), e aceitarmos que outras pessoas tenham o direito de desconsiderar a propriedade desse indivíduo sobre objetos em que elas jamais trabalharam ou puseram para algum uso em particular, então se está dizendo que é correto adquirir títulos de propriedade não por meio do trabalho (isto é, estabelecendo algum elo objetivo entre uma determinada pessoa e um determinado recurso escasso), mas simplesmente por declaração verbal, por decreto.

Entretanto, defender que títulos de propriedade sejam adquiridos por meio de declarações e decretos é incompatível com o supracitado princípio da não-agressão em relação ao corpo de terceiros.  Pois, em primeiro lugar, se um indivíduo pudesse de fato se apropriar de algo por mero decreto, isso implicaria ser também possível decretar que o corpo de outra pessoa passasse agora a ser deste indivíduo.  Claramente isso estaria em conflito com o vigente princípio da não-agressão, que faz uma nítida distinção entre o corpo de um indivíduo e o corpo de outra pessoa.

Ademais, essa distinção só pode ser feita dessa forma clara e inequívoca porque, para corpos, assim como para tudo mais, a separação entre “meu e seu” não se baseia em declarações verbais, mas na ação.  A observação se baseia em algum determinado recurso escasso que foi transformado em uma expressão ou materialização da vontade própria do indivíduo — de modo que qualquer um possa ver e verificar, pois existem indicadores objetivos para tal.

Mais importante ainda: dizer que a propriedade pode ser adquirida não por meio da ação mas por meio de uma declaração é algo que envolve uma óbvia contradição prática, pois ninguém poderia dizer e fazer tal declaração a menos que seu direito de controle exclusivo sobre seu corpo, bem como sobre seu próprio instrumento de vocalização, já esteja pressuposto.

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Até agora, foi demonstrado que:

1) o direito à apropriação original por meio de ações é inteiramente compatível com o princípio da não-agressão;

2) o princípio da não-agressão demonstra que o direito à apropriação original é a pressuposição logicamente necessária para uma argumentação.

Indiretamente, é claro, também foi demonstrado que qualquer regra especificando direitos diferentes não poder ser justificada.  Entretanto, antes de entrarmos em uma análise mais detalhada que explique por que qualquer outra ética que não esta seria indefensável, vale a pena uma discussão que irá jogar uma luz adicional na importância de algumas das estipulações da teoria libertária da propriedade.

Por que outras teorias não libertárias da propriedade são impossíveis de serem justificadas?  Primeiro, deve-se notar que, como ficará claro logo abaixo, todas as alternativas ao libertarianismo que já foram praticadas, bem como a maioria dos princípios não libertários teoricamente já propostos, sequer passariam pelo primeiro teste formal da universalização, e apenas por isso já fracassariam!

Todas essas outras versões contêm normas dentro de suas estruturas de regras e princípios que têm a forma “algumas pessoas podem, e outras pessoas não podem”.  Entretanto, tais regras que especificam diferentes direitos ou obrigações para diferentes classes de pessoas não têm qualquer chance de serem aceitas como justas por todos os potenciais participantes em uma argumentação por razões puramente formais.

A menos que a distinção feita entre diferentes classes de pessoas venha a ser aceita por ambos os lados dos argumentadores como sendo algo fundamentado na natureza das coisas, tais regras não seriam aceitas, pois elas implicariam que um grupo seja beneficiado com privilégios legais à custa de discriminações complementares a outro grupo.  Algumas pessoas, tanto aquelas que têm a permissão de fazer algo quanto aquelas que não têm, não poderiam concordar que essas são regras justas.

Dado que a maioria das propostas éticas alternativas, praticadas ou defendidas, depende da aplicação e imposição de regras como “algumas pessoas têm a obrigação de pagar impostos, e outras têm o direito de consumi-los”, ou “algumas pessoas sabem o que é bom para você e têm o direito de ajudar você a obter essas supostas bênçãos mesmo que você não as queira, mas você não o tem o direito de saber o que é bom para elas e ajudá-las apropriadamente”, ou “algumas pessoas têm o direito de determinar quem tem coisas em excesso e que tem coisas em escassez, e outras têm a obrigação de aceitar essa determinação” ou, até mais diretamente, “a indústria da informática deve pagar subsídios a agricultores, os empregados aos desempregados, aqueles que não têm filhos àqueles que têm filhos”, ou vice versa — todas elas devem ser descartadas e rejeitadas como candidatas sérias à reivindicação de ser uma teoria válida de normas enquanto normas para a propriedade, porque todas elas indicam, por meio de sua própria formulação, que não são universalizáveis.

Porém, fica a pergunta: o que haverá de errado com uma ética não libertária caso essa situação seja resolvida e haja de fato uma teoria formulada que contenha normas exclusivamente universalizáveis do tipo “ninguém tem o poder de” ou “todo mundo pode”?  Ainda assim, a validade de tais propostas jamais poderia ser comprovada — não por causa de razões formais, mas por causa de suas especificações materiais.  Com efeito, embora as alternativas facilmente refutáveis com relação às suas pretensões de validade moral podem ao menos ser praticadas, a aplicação dessas versões mais sofisticadas — as quais passariam no teste da universalização — se comprovariam, por razões materiais, fatais: mesmo que se tentasse, elas simplesmente jamais poderiam ser implementadas.

Há duas especificações correlatas na teoria libertária da propriedade, sendo que, para pelo menos uma delas, qualquer teoria alternativa estaria em conflito direto.  De acordo com a ética libertária, a primeira dessas especificações é que a agressão seja definida como uma agressão à integridade física da propriedade de terceiros.  Existem tentativas populares de definir isso como uma agressão ao valor ou à integridade psíquica da propriedade de outra pessoa.  O conservadorismo, por exemplo, objetiva preservar uma dada distribuição de riqueza e de valores, e tenta controlar aquelas forças que poderiam alterar o status quo impondo controle de preços, regulamentações e controles comportamentais.  Claramente, para poderem fazer isso, o direito de propriedade ao valor das coisas — algo que não existe — teria de ser assumido como justificável, e uma agressão aos valores, mutatis mutandis, teria de ser classificada como uma agressão injustificável.

Não é só o conservadorismo que utiliza essa ideia de propriedade e agressão; o socialismo redistributivista também.  O direito de propriedade aos valores deve ser assumido como legítimo quando o socialismo redistributivista me permite, por exemplo, exigir compensação das pessoas cujas chances ou oportunidades afetam negativamente as minhas.  O mesmo é válido quando exijo alguma compensação pelo cometimento de “violência psicológica” ou “estrutural”.  Para poder exigir tal compensação, o que esse indivíduo deve ter feito para mim — isto é, afetar minhas oportunidades, minha integridade psíquica ou meu sentimento sobre o que me é devido — teria de ser classificado como um ato agressivo.

Por que essa ideia de proteger o valor da propriedade é injustificável?  Primeiro, ao passo que cada indivíduo, pelo menos em princípio, pode ter controle total sobre se suas ações irão ou não alterar as características físicas de algo, e consequentemente pode ter completo controle sobre se tais ações são justificáveis ou não, o controle sobre se suas ações irão ou não afetar o valor da propriedade de outra pessoa não depende desse indivíduo, mas sim da avaliação subjetiva de terceiros.  Portanto, ninguém pode determinar ex ante se suas ações serão classificadas como justificáveis ou injustificáveis.

Tal indivíduo teria primeiro de interrogar toda a população para ter a certeza de que as ações que ele está planejando fazer não irão alterar as avaliações de terceiros em relação à propriedade deles.  Mesmo assim, ninguém poderia agir até que um acordo universal tivesse sido firmado sobre quem deve fazer o que com o que, e em que ponto no tempo.

Claramente, por causa de todos os problemas práticos envolvidos, antes de qualquer acordo ser obtido todos já estariam mortos e ninguém mais poderia argumentar.  De modo ainda mais decisivo, essa posição em relação à propriedade e à agressão não poderia nem mesmo ser efetivamente argumentada, pois argumentar em favor de qualquer norma significa que está havendo conflito em relação ao uso de alguns recursos escassos; afinal, não fosse isso, simplesmente não haveria necessidade de nenhuma discussão.

Entretanto, para que se possa argumentar que há uma maneira de se resolver tais conflitos, deve ser pressuposta a permissão de se praticar ações antes de qualquer acordo se feito, pois se ações não fossem permitidas antes do acordo, então ninguém poderia sequer argumentar — dado que isso é uma ação.  Entretanto, se alguém pode agir (e, na medida em que a ação existe como uma posição intelectual, a posição sendo examinada deve assumir que alguém pode agir), então tal ato só é possível por causa da existência de fronteiras objetivas de propriedade — fronteiras que qualquer um pode reconhecer como tal, por conta própria, sem ter antes de concordar com outra pessoa em relação ao sistema de valores e avaliações dela.

E tal ética protetora de valores deve também, apesar de tudo o que diz, pressupor a existência de fronteiras objetivas de propriedade, ao invés de fronteiras determinadas por avaliações subjetivas, nem que seja para permitir que qualquer pessoa viva faça suas propostas morais.

A ideia de se proteger o valor ao invés da integridade física também é falha por um segundo motivo correlato.  Evidentemente, o valor de uma pessoa — por exemplo, para o mercado de trabalho ou mesmo para um matrimônio — pode ser, e de fato é, afetado pela integridade física das outras pessoas.  Assim, se o valor da propriedade tivesse de ser mantido, então a agressão física a outras pessoas deveria ser permitida — só assim um aleijado ou uma mulher feia melhorariam sua situação no mercado de trabalho e no mercado matrimonial, respectivamente.

Entretanto, é somente por causa do fato de que as fronteiras de uma pessoa — isto é, as fronteiras da propriedade de uma pessoa sobre seu próprio corpo como seu domínio de controle exclusivo, o qual nenhuma outra pessoa pode cruzar sem que isso o torne um agressor — são fronteiras físicas (fronteiras averiguáveis objetivamente, e não apenas subjetivamente imaginárias), que todos podem concordar com alguma coisa independentemente (e concordar significa um acordo entre unidades tomadoras de decisão independentes!).

É somente porque as fronteiras de uma propriedade protegida são objetivas (isto é, fixadas e reconhecidas como tendo sido fixadas antes de qualquer acordo convencional), é que pode haver argumentação e possivelmente um acordo entre duas unidades tomadoras de decisão independentes.  Ninguém pode argumentar a favor de um sistema de propriedade que defina as fronteiras da propriedade em termos subjetivos, pois, o simples fato de ser capaz de dizer tal coisa pressupõe que, ao contrário do que a teoria diz, tal indivíduo tem necessariamente de ser uma unidade fisicamente independente — caso contrário, ele não teria autonomia para dizer isso.

A situação não melhora em nada para essas propostas éticas alternativas quando analisamos a segunda especificação essencial da teoria libertária da propriedade.  As normas básicas do libertarianismo são caracterizadas não apenas pelo fato de que a propriedade e a agressão são definidas em termos físicos; é também de igual importância entender que a propriedade é definida como privada e individualizada, e que o significado de apropriação original — o que evidentemente implica fazer uma distinção entre o antes e o depois — já foi especificado a priori.

É com essa especificação adicional que as propostas éticas alternativas e não libertárias entram em conflito.  Ao invés de reconhecer a importância vital da distinção do antes-depois ao se arbitrar reivindicações conflitantes de propriedade, elas propõem normas que na realidade estabelecem que a prioridade é irrelevante para tal tomada de decisão, o que significa que aqueles que chegaram por último têm o mesmo direito à propriedade de algo que aqueles que chegaram primeiro e ali se estabeleceram.

Claramente, essa ideia está presente quando o socialismo redistributivo obriga os proprietários naturais de riqueza e seus herdeiros a pagarem um determinado tributo, de modo que os desventurados que chegaram por último possam tomar parte no consumo dessa riqueza.  Também está presente quando o proprietário de um recurso natural é forçado a reduzir (ou aumentar) sua atual exploração tendo em vista o interesse da posteridade.  Em ambos os casos, só faz sentido fazer tal coisa quando se assume que a pessoa que acumulou a riqueza primeiro, ou que utilizou os recursos naturais primeiro, cometeu por meio disso um ato de agressão contra os que ali chegaram por último.  Caso eles não tenham feito nada de errado, então os que chegaram por último não podem fazer nenhuma reivindicação contra eles.

O que há de errado com essa ideia de descartar essa distinção do antes-depois como sendo moralmente irrelevante?  Em primeiro lugar, se aqueles que chegaram por último (aqueles que não fizeram nada com algum recurso escasso) de fato tivessem tantos direitos quanto os que chegaram primeiro (aqueles que fizeram alguma coisa com os bens escassos), então ninguém jamais poderia fazer nada com coisa alguma, pois os primeiros teriam antes de obter a autorização de todos aqueles que irão chegar por último.  Só após essa autorização, é que os primeiros poderiam fazer o que intencionavam.

Nem nós, nem nossos antepassados, nem nossa prole poderíamos ou iríamos sobreviver, dizer ou argumentar qualquer coisa caso alguém lá do passado tivesse seguido essa regra.  Para que qualquer pessoa — no passado, presente ou futuro — possa argumentar alguma coisa, ela deve estar viva no momento da ação.  Ninguém pode esperar e suspender suas ações à espera de que todos aqueles que pertencem à indeterminada classe de retardatários calhe de estar por perto e autorize suas ações.

Ao contrário: na medida em que um indivíduo esteja sozinho em um local sem dono, ele tem de ser capaz de agir, utilizar, produzir e consumir bens imediatamente, antes de fazer qualquer acordo com pessoas que simplesmente não estão ali (e que provavelmente nunca estarão).  Por outro lado, se o indivíduo estiver na companhia de terceiros e houver conflito sobre como usar um determinado recurso escasso, ele deve poder resolver o problema em um ponto definido do tempo e com um número definido de pessoas, ao invés de ter de esperar um período indefinido de tempo por um número não específico de pessoas.

Portanto, para simplesmente poder sobreviver — um pré-requisito para poder argumentar a favor ou contra alguma coisa —, os direitos de propriedade não podem ser concebidos como sendo algo atemporal e não específico no que tange ao número de pessoas envolvidas.  Ao contrário: eles devem ser considerados originários da ação de indivíduos específicos ocorrida em pontos definidos no tempo.

Ademais, a ideia de abandonar a distinção do antes-depois seria simplesmente incompatível com o princípio da não-agressão como o fundamento prático da argumentação.  Argumentar e possivelmente concordar com alguém (mesmo que haja discordância) significa reconhecer o direito prévio ao controle exclusivo do próprio corpo.  Caso contrário, seria impossível para qualquer pessoa dizer alguma coisa em um ponto definido do tempo e, da mesma forma, seria impossível qualquer outra pessoa responder, pois elas já teriam deixado de ser, individualmente, uma unidade tomadora de decisões fisicamente independente.

Eliminar a distinção do antes-depois é, portanto, equivalente a eliminar a possibilidade de argumentar e de se chegar a um acordo.

Entretanto, uma vez que é inegável que não há possibilidade de uma pessoa argumentar sem que seu direito ao controle de seu próprio corpo seja previamente reconhecido e aceito como justo, então uma ética defensora dos direitos iguais para os retardatários que não faça essa distinção jamais poderia ser aceita por ninguém.  Só o fato de alguém dizer que ela poderia ser aceita já implica uma contradição, pois a capacidade de poder dizer algo já pressupõe a existência, em um ponto definido do tempo, de uma unidade tomadora de decisão independente.

Por conseguinte, somos forçados a concluir que a ética libertária não apenas pode ser justificada por meio de um raciocínio apriorístico, como também somos obrigados a reconhecer que nenhuma alternativa ética pode ser defendida argumentativamente.

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