Por que não houve inflação de preços no Japão?

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tokyoUm leitor manda-me a seguinte pergunta: Por que o Japão, mesmo com tantos estímulos monetários desde 1990, não tem inflação?

E a minha resposta direta é: simplesmente porque não houve estímulos monetários, apenas estímulos fiscais.

O leitor mais iniciado poderá se espantar com a resposta acima, uma vez que é público e notório que o Banco Central do Japão (BOJ) vem mantendo sua taxa básica de juros em níveis ridículos há anos.  Sendo assim, duas perguntas tornam-se inevitáveis: como é possível dizer que não houve expansão monetária no Japão quando se sabe que o BOJ manteve os juros perto de zero durante anos?  É possível manter juros baixos e, ao mesmo tempo, não haver expansão monetária?

Antes de partir para a empiria e mostrar dados que comprovam o que estou dizendo, vou antes reter-me um pouco na sempre indispensável teoria.

Juros altos x expansão monetária

Como tentei deixar claro nesse artigo sobre a taxa SELIC, quando o banco central quer reduzir os juros, ele expande a base monetária — isto é, ele cria dinheiro do nada e compra títulos da dívida que estão em posse do sistema bancário.  Tal medida fará com que haja mais dinheiro em posse dos bancos, os quais poderão agora emprestar mais a preços menores.  Ou seja, aumenta-se a oferta de dinheiro, diminui-se seu preço.

De forma inversa, quando o banco central quer aumentar os juros, ele vende títulos para os bancos e, com isso, reduz a quantidade de dinheiro que o sistema bancário tem disponível para empréstimos.  Menor oferta de dinheiro, maior o seu preço.

Dessa explicação, é comum tirar a seguinte conclusão: se os juros estão baixos, é sinal de que o banco central está injetando dinheiro no sistema; e se os juros estão extremamente baixos, é sinal então de que o banco central está injetando quantidades cada vez maiores de dinheiro no sistema.

Entretanto, tal relação não é tão direta assim.  E é justamente isso que torna o estudo da ciência econômica algo tão fascinante, para não dizer divertido.  Simplesmente não existe uma relação matematicamente exata entre as variáveis.  Da mesma forma que um aumento na quantidade de dinheiro terá um efeito imprevisível sobre os preços (você apenas sabe que os preços seriam menores caso não tivesse ocorrido esse aumento na quantidade de dinheiro, mas é incapaz de saber com exatidão qual será relação matemática exata entre ambos), um aumento na oferta monetária possui uma relação imprevisível com os juros.

É perfeitamente possível o banco central expandir a base monetária e, ainda assim, provocar um aumento dos juros.  E, da mesma forma, é perfeitamente possível o banco central simplesmente parar de criar dinheiro e, com isso, obter uma redução dos juros.

Eis aí um fato que poucos compreendem.  É possível haver grande expansão monetária em um ambiente de juros altos, bem como haver desprezível (ou até mesmo nula) expansão monetária com juros baixos.

Um bom exemplo de cada caso seria o Brasil, para o primeiro caso, e a Suíça, para o segundo.  Embora soe estranho a princípio, o problema fica mais fácil quando se analisa os fundamentos da política monetária.

Por exemplo, pela teoria, se a oferta monetária fosse congelada, essa repentina “escassez” de moeda geraria um aumento de juros muito alto no mercado interbancário. Isso de fato é verdade no curto prazo — afinal, se a impressão de dinheiro cessou, a quantidade a ser emprestada entre os bancos parou de aumentar, e essa súbita paralisia pode gerar um aumento temporário de juros.

Entretanto, uma vez entendida que a quantidade de dinheiro não vai mais aumentar, os agentes econômicos (desculpe o jargão economicista) perceberão que de nada adiantará cobrar juros nominais altos: afinal, como eles seriam pagos?  Em um cenário de quantidade de moeda fixa, se você emprestar 100 reais e cobrar 10% de juros, não haverá como receber 110 reais, pois não está havendo aumento na oferta monetária.  Assim, se você não cobrar juros (muito) menores, simplesmente não fará empréstimo algum.  Esse raciocínio, aliás, não é exclusividade austríaca. Milton Friedman — monetarista convicto que no final da vida passou a defender a extinção do banco central — também concluiu que era isso que ocorreria.

Esse cenário descrito acima ocorre, por exemplo, na Suíça, país de banco central tradicionalmente conservador (no sentido de incorrer em baixíssimas expansões monetárias) e de juros (no caso, refiro-me à SELIC deles) também baixos.

Já o cenário inverso ocorre no Brasil. Se o BC pratica expansões monetárias mais vultosas e a economia é fechada (o que significa que as pressões inflacionárias não podem ser abrandadas pelas importações), então grande parte dessa expansão irá se traduzir em grande aumento de preços.  Sendo assim, os bancos embutem essas expectativas inflacionárias no valor dos juros que eles cobram.  Ou seja: a maior expansão monetária gerou, ao contrário do imaginado, um aumento nos juros (tanto na SELIC quanto nos juros cobrados das pessoas físicas e jurídicas).

Logo, é perfeitamente possível haver juros altos concomitantes a grandes expansões monetárias, e juros baixos concomitante a pequenas (e até mesmo nulas) expansões monetárias.

E o Japão pertence ao segundo caso.

A empiria japonesa — agregados monetários

Como qualquer outro banco central, o Banco Central do Japão controla a base monetária de seu país.  Ele faz isso comprando e vendendo títulos da dívida do governo em posse do sistema bancário.  A base monetária é a única variável monetária que está sob controle direto de um banco central.  Ela é o melhor indicador para se saber qual a postura adotada por um banco central.

O gráfico a seguir, fornecido pelo Fed, o banco central americano, mostra o comportamento da base monetária japonesa desde 1992.

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O eixo vertical, à esquerda, mostra a variação percentual da base monetária em relação ao ano imediatamente anterior.  De 1992 a 1999, a base monetária cresceu anualmente a uma taxa sempre inferior a 10%.  Durante um rápido período entre 1999 e 2000 ela chegou a uma taxa de crescimento de 15%, porém despencando logo em seguida para 0%.  De 2001 a 2003, um ano de recessão para o país, ela cresceu a taxas mais vigorosas.  Entretanto, esse crescimento foi praticamente anulado pela postura mais contracionista adotada a partir de meados de 2003, quando a taxa de crescimento começou a diminuir até se tornar negativa desde o início de 2006 até meados de 2007.  Desde então o crescimento tem sido praticamente nulo.

Ou seja, de 1992 até 2008, o Banco Central japonês adotou uma política monetária, no mínimo, contida.

Para se ter uma ideia, desde a criação do real, o Banco Central brasileiro, o campeão dos juros altos, jamais praticou uma taxa de crescimento da base monetária menor do que 10% ao ano.  De 1996 a 2008, a média da expansão da base monetária brasileira foi de mais de 18% ao ano, e jamais praticando contração, como fez o BOJ em 2006-2007.

Entretanto, a base monetária não é o melhor indicador monetário para se “prever” o comportamento dos preços.  Os agregados monetários M1 e M2 fazem isso com mais acurácia.  O leitor mais aficionado pode ler esta publicação do Banco Central japonês e ver que a definição que eles dão para o M1 (papel-moeda em poder do público + depósitos à vista) e o M2 (M1 + depósitos a prazo) é praticamente idêntica à do Banco Central brasileiro.  Eis o gráfico da taxa de variação anual de ambas as variáveis:

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Nota-se que de 1992 a 2002, o M2 japonês cresceu a taxas inferiores a 3%, e de 2003 até o início de 2009, o crescimento foi ainda menor.  O M1 praticamente seguiu o mesmo padrão de comportamento, apresentando apenas eventuais surtos localizados, principalmente em 2001-2003, ano de recessão.  Fora esse período, e além de um período entre 1995 e 1996, quando chegou a 15%, o crescimento do M1 sempre esteve abaixo de 10%.  E de 2003 até o presente, M1 cresceu menos de 5% ao ano.

Comparando-se novamente com o Brasil, desde a criação do real o M1 brasileiro jamais ficou abaixo de 10%.  De 1995 a 2008, a taxa média de crescimento anual do M1 foi de 19%.  A do M2 foi de 15%, com picos de 40%.

Ou seja, novamente pode-se dizer que os agregados monetários japoneses cresceram a taxas extremamente contidas, principalmente o M2.

A empiria japonesa — índice de preços

Vejamos agora como se comportaram os preços ao consumidor japonês.  O gráfico é o penúltimo desta página.  (Por favor, perdoe a incompetência deste articulista, que não conseguiu copiá-lo para cá).

De 1992 a 1999, a inflação de preços esteve em sua maior parte ao redor de 0%.  Em 1997 os preços subiram módicos 2%, a maior taxa do período.  De 1998 a 2007, a taxa anual foi ligeiramente deflacionária, mas nunca houve deflação maior do que 1% durante um período de 12 meses.  Em 2008, os preços subiram 2% novamente, e depois voltaram a cair.

A empiria japonesa — crescimento econômico

Como mostra esse gráfico, de 1990 a 2008, o PIB real (já considerando preços e produção) japonês subiu de 450 trilhões de ienes para 560 trilhões.  Um aumento de 24%, ou 1,2% ao ano.  Para um país rico e com taxa de fecundidade nula, tal crescimento da riqueza per capita é bastante razoável — no mínimo, não é catastrófico.  Entretanto, quando se considera a taxa de poupança dos japoneses, tal crescimento está muito aquém do potencial.

Conclusão

Quando se compreende a teoria, a realidade japonesa torna-se perfeitamente compreensível.  Embora não tenha havido uma sistêmica deflação de preços — ao contrário do que apregoa uma aterrorizada mídia —, tampouco houve qualquer motivo para que tivesse havido uma inflação de preços no Japão.

Como mostrou o gráfico, o M2 se manteve praticamente estável desde 1992, sempre em níveis mínimos.  A base monetária e o M1, embora tenham apresentado surtos esporádicos, cresceram a maior parte do tempo a taxas anuais menores que 10%, valores módicos para os padrões monetários atuais.

Tudo isso significa que, em resposta a uma suave expansão monetária, o crescimento econômico ocorrido, embora bastante tímido, foi suficiente para fazer os preços declinaram levemente.  Tal comportamento é consistente com a teoria monetária ensinada tanto pela Escola Austríaca quanto pela Escola de Chicago.  Um aumento do produto (como demonstrado, média de 1,2% ao ano) em conjunto com um aumento muito pequeno da oferta monetária (em especial do M2) gera preços em queda.

Eis o cenário ideal: inflação monetária nula e economia crescendo de 2 a 3% ao ano.  Em teoria, nesse ambiente os preços ao consumidor iriam cair por volta de 2 a 3% ao ano.  O Japão, durante quase duas décadas, tem estado muito próximo deste ideal — mais próximo do que qualquer outro país industrializado.

A Escola Austríaca é a favor de inflação monetária zero, de modo que os preços apresentem uma queda constante e suave.  Já a Escola de Chicago defende uma política de preços estáveis, o que exige uma oferta monetária crescendo lenta porém constantemente.  Nesses termos, o Japão é mais Chicago do que austríaco, porém, em termos exclusivamente monetários e de preços, é o país que mais se aproximou da Escola Austríaca nas últimas duas décadas.

Fiz questão de enfatizar o trecho acima porque, embora o banco central japonês tenha tido um comportamento decente, o mesmo não pode ser dito do governo japonês, que durante esse mesmo período vem praticando uma insana política de déficits e endividamento crescente.

A dívida, que era de 65% do PIB em 1992, pulou para incríveis 185% do PIB em 2009.  Os déficits anuais constantemente ultrapassaram os 6% do PIB.  (Veja no último gráfico desta página).  Essa política fiscal foi, sem dúvida, uma das principais causas do baixo crescimento econômico japonês — para um povo que poupa muito, era de se esperar taxas de crescimento anuais mais robustas do que 1,2%.  Porém, como o governo consome toda essa poupança para financiar seus déficits, os investimentos ficam comprometidos, pois não há recursos sobrantes para financiá-los.  E isso engessa o crescimento.

Se o governo japonês cortasse gastos e equilibrasse seu orçamento, parando de incorrer em déficits, a poupança dos japoneses deixaria de ser utilizada para financiar o governo, passando a ser liberada para investimentos realmente produtivos, o que daria um grande impulso à economia.  Isso, em conjunto com a baixa expansão monetária praticada pelo BOJ, elevaria enormemente o padrão de vida dos japoneses.

Não há nenhuma “armadilha da liquidez” no Japão.  Tampouco houve falta de estímulos fiscais.  Também não houve problema de estímulos monetários, dado que a taxa de juros sempre foi baixa.  O que vem ocorrendo no Japão é um exemplo prático de duas teorias em conflito: keynesianismo na política fiscal e chicaguismo na política monetária.

Na humilde opinião deste articulista, o que vem emperrando a economia japonesa é justamente a política fiscal.

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