Quando a moeda morreu na Alemanha

0
Tempo estimado de leitura: 8 minutos

hyperinflation2A história da destruição do marco alemão durante a hiperinflação da República de Weimar, de 1919 até o seu auge em novembro de 1923, é normalmente descartada como sendo apenas uma bizarra anomalia ocorrida em toda a história econômica do século XX.
Mas nenhum episódio ilustra de maneira mais completa as sinistras consequências do que pode ocorrer quando o dinheiro se torna um mero papel sem nenhum lastro e passa a ser utilizado livremente pelo governo. Mais ainda: nenhum episódio apresenta um argumento mais devastador e real contra o papel-moeda fiduciário: quando não há restrição à maneira como o governo gerencia moeda, ela morrerá.

“O fato de que as causas da inflação ocorrida na República de Weimar, bem como toda a conjuntura da época, dificilmente irão se repetir é o de menos”, escreveu o historiador britânico Adam Fergusson em seu clássico de 1975, Quando o Dinheiro Morre. “A pergunta a ser feita — ou perigo a ser reconhecido — é como a inflação, qualquer que seja a sua causa, afeta uma nação.”

Antes da Primeira Guerra Mundial, o marco alemão, o xelim britânico, o franco francês e a lira italiana tinham aproximadamente os mesmos valores — quatro para um dólar. Ao fim de 1923, a taxa de câmbio do marco já era de um trilhão de marcos para um dólar — o que significa que a moeda havia perdido 99,9999999996% do seu poder de compra nesse período; ou, em outras palavras, ela valia um milionésimo de milhão do que valia há apenas dez anos.

Em meados de 1922, uma fatia de pão custava 428 milhões de marcos, e todas as ações da Daimler Corporation compravam o equivalente a 327 de seus carros. Já em novembro de 1923, uma quantidade de marcos que, dez anos atrás compraria 500 bilhões de ovos, agora mal conseguia comprar um ovo.

O ex-primeiro ministro britânico Henry Lloyd George, escrevendo em 1932, comentou que palavras como “catástrofe”, “ruína” e “devastação” não eram suficientes para descrever a situação alemã, dado que seus significados já haviam se tornado banais. Saques, vandalismo, roubos, ascensão da prostituição, inanição, doenças, e até mesmo consumo de cães se tornaram banais. Pessoas tinham suas roupas roubadas nas ruas. Tudo isso eram eventos do cotidiano de sociedade “burguesa” da época.

A constante iminência de uma guerra civil pairava sobre a Alemanha, como já estava acontecendo com o bolchevismo na Rússia. A Bavaria teve de declarar lei marcial.

A ascensão da moeda de papel após 1910

A inflação de preços na Alemanha começou lentamente.

Em 1914, houve um pequeno aumento no índice de preços. Esse mesmo índice, que tinha como valor-base 1 em 1913, já era de 2,45 ao fim de 1918 (aumento de 145% em 4 anos).

Começando em 1919, a velocidade da inflação aumentou, e o índice pulou para 12,6 em janeiro de 1920; 14,4 em janeiro de 1921 e 36,7 em janeiro de 1922. Na segunda metade de 1922, o índice já estava em 101 em julho; e foi para 74.787 em julho de 1923 e 750 bilhões em 15 de novembro de 1923.

A nota de 100 trilhões de marcos foi então emitida e as impressoras do Reichsbank estavam imprimindo dinheiro ao ritmo recorde de 74 trilhões de cédulas de marcos por semana. Em vez de parar com essa loucura, o Reichsbank continuou a imprimir cada vez mais dinheiro, com a justificativa de que, agindo assim, estava mantendo o emprego estável, e que o momento de voltar à normalidade “estava próximo”. Enquanto isso, uma atmosfera de caos civil reinava.

O tratado de Versalhes não foi o culpado principal; ele apenas piorou a política monetária que já estava em curso antes da guerra. Antes de 1914, a política do Reichsbank impunha que pelo menos 1/3 do papel-moeda emitido tinha de estar lastreado em ouro. Porém, tão logo o dinheiro de papel sem lastrou passou a ser de curso forçado na Alemanha, em 1910, tudo se tornou um experimento imprudente.

Ao explodir a guerra, a maioria do mundo já havia desistido do padrão-ouro e abraçado com entusiasmo o dinheiro de papel sem lastro e de curso forçado. O ouro foi retirado de circulação e majoritariamente estocado nos cofres de alguns poucos bancos centrais, principalmente o dos EUA: de agosto de 1913 a agosto de 1919 o estoque de ouro monetário em posse do Banco Central americano — o Federal Reserve — aumentou 65%.

Enquanto isso, na Alemanha, o governo vendia maciçamente títulos do tesouro, apelando ao patriotismo de massa para pagar pela guerra. Fortunas privadas foram transferidas para meros títulos de papel emitidos pelo estado, enquanto o Reichsbank suspendia a restituição de cédulas de dinheiro em ouro. Foram criados vários bancos com o objetivo único de imprimir dinheiro para emprestar, de modo que o crédito se tornou irrestrito para estimular as compras dos títulos emitidos pelo Tesouro alemão para financiar a guerra.

Em contraste, a Grã-Bretanha financiou a guerra com uma medida bem mais prudente do ponto de vista inflacionário: Londres aumentou os impostos sobre os grupos e indústrias que lucrariam com a guerra.

Após a guerra, o ouro da Alemanha foi exaurido com o pagamento das reparações de guerra e também como resultado da invasão francesa do Ruhr. Ainda assim, o pouco que restou do ouro era o que fornecia algum alívio ocasional aos cidadãos alemães, quando algumas indústrias conseguiam pagar seus funcionários com pequenas quantias do metal dourado. A Höchst Dye Works, por exemplo, pagava seus funcionários com os 400.000 francos suíços que ela havia armazenado em bancos suíços.

O colapso de tudo

Tendo gerado escassez no mercado com suas políticas inflacionárias, as autoridades alemãs criaram novas regulações para tentar corrigir a irracionalidade que eles próprios haviam criado. O roteiro é sempre o mesmo, em todos os países: o governo cria intervenções que geram consequências inesperadas, e decide então recorrer a intervenções ainda mais violentas para “sanar” as consequências não previstas das intervenções anteriores.

Em seu livro The Downfall of Money:Germany’s Hyperinflation and the Destruction of the Middle Class, Frederick Taylor escreve que “pessoas com renda média e sem nenhum acesso a produtos agrícolas ou a moeda estrangeira foram forçadas a aprender a caçar e a ficar em filas por comida — tanto porque sua renda frequentemente não era o suficiente para comprar o que queriam em um determinado dia, como também porque havia, à medida que a hiperinflação se intensificava, uma genuína escassez de comida.”

Já os agricultores simplesmente não queriam trocar seus alimentos por inúteis pedaços de papel que não tinham nenhum valor. “Naquilo que rapidamente estava regredindo para voltar a ser uma economia baseada no escambo, os mais espertos, para não dizer desonestos, chegavam rapidamente ao topo da cadeia darwiniana”, escreveu Taylor. “Nas áreas rurais, os médicos exigiam pagamento em comida dos fazendeiros que os procuravam”.

Os trabalhadores começaram a ser pagos diariamente, e os homens, tão logo recebessem seus salários, iam correndo com suas mulheres comprar qualquer coisa que conseguissem. Após comprar os itens essenciais, eles corriam até um banco para comprar qualquer moeda forte que ainda restasse. O número de bancos aumentou substantivamente para lidar com esse novo negócio. Em 1921, 67 novos bancos foram abertos. Em 1922, mais 92. E mais 401 surgiram em 1923-24. O número de funcionários de banco quadruplicou nesse período. O Deutsche Bank tinha 15 filiais em 1923. De anos depois, já eram 242.

Não foi a pujança da atividade econômica que criou a necessidade desses novos bancos. “Os bancos estavam sobrecarregados de ordens para comprar e vender ações e moedas estrangeiras. E os cidadãos comuns, em número cada vez maior, se tornavam especuladores da bolsa”.

“O colapso da moeda e o colapso da moralidade se tornaram idênticos”, escreve Taylor. Não eram apenas as prostitutas que vendiam seus corpos. “As recém-desprovidas filhas da classe média educada (em alguns casos, filhos também), que agora estavam no mercado do sexo pago, estavam inteiramente disponíveis a qualquer preço — preferivelmente em troca de cigarros, metais preciosos ou moeda forte em vez de marcos de papel.”

Com a inflação tendo destruído toda a poupança da classe média, as moças jovens simplesmente não tinham nenhum dote a ser oferecido a pretensos futuros maridos. “Quando a moeda perde totalmente seu valor”, escreveu uma mulher, “ela destrói todo o sistema burguês baseado no matrimônio, de modo que destrói também toda a ideia de se manter casta até o casamento”.

Taylor cita uma história relatada pelo escritor russo Ilya Ehrenburg sobre uma noite que ele passou com alguns amigos em Berlim. Segundo Ilya, eles terminaram a noite visitando uma família alemã em um “apartamento burguês perfeitamente respeitável”. Foi-lhes oferecido limonada com um pouco de álcool e

Então as duas filhas que estavam na casa entraram na sala, totalmente nuas, e começaram a dançar. A mãe olhava esperançosa para as visitas estrangeiras: talvez suas filhas fossem do agrado das visitas, e talvez as visitas pagassem bem — em dólares, obviamente. “E é isso o que chamamos de vida”, suspirou a mãe. “Na verdade, é pura e simplesmente o fim do mundo”.

[Nota do IMB: a hiperinflação vivenciada pelo Brasil no período 1980-1994 foi atenuada pelo fato de que, além do mecanismo da correção monetária (uma invenção brasileira), a classe média e a classe alta tinham acesso ao sistema bancário e utilizavam suas aplicações (como as aplicações no overnight) para se proteger da hiperinflação. Essas duas coisas não existiam na Alemanha da década de 1920. Houve muita escassez e racionamento no Brasil, mas não houve uma completa chacina da classe média, como houve na Alemanha].

A Alemanha se vira para o Rentenmark

No momento de maior crise, a política monetária foi retirada das mãos do Reichsbank naquilo que foi efetivamente um coup d’etat pelo chanceler Gustav Stresemann. Todos os empréstimos ao governo foram cancelados. A política monetária foi descentralizada. O estado foi rigorosamente separado da economia.

Uma estrutura bancária paralela foi organizada por um proeminente economista rebelde não-ligado ao governo. Ele criou um novo esquema em que a moeda era lastreada por pão de centeio — a commodity mais cobiçada na época —, e mais tarde por ouro, quando a commodity passou ser usada novamente.

As moedas “lastreadas por ouro”, os Rentenmarks, tinham como garantia financiamentos imobiliários em propriedades fundiárias e títulos de dívida da indústria alemã na quantia de 3 bilhões de marcos de ouro.

Na realidade, praticamente não havia reservas de ouro. Apesar disso, o incalculável efeito social e psicológico sobre a população gerado pelo simples anúncio de que a moeda havia retornado a uma paridade com o ouro, na relação de um para um. Acalmou as tensões sociais e deu início à estabilização econômica.

“A genialidade do Rentenmark é que ele livrou o Reichsbank de ter de financiar o governo,” escreveu Adam Fergusson. Uma disciplina rigorosa sobre os gastos públicos foi imposta, assim como a proibição de o Reichsbank emprestar para o governo. Por muitos anos após, era comum que obrigações de longo prazo contivessem cláusulas de ouro para que os credores pudessem se garantir contra uma nova e repentina desvalorização da moeda.

Conclusão

“Em poucos anos, a maioria do mundo estará cansada de moedas de papel, principalmente da maneira como elas foram gerenciadas há 12 anos. O problema principal será o fato de que a ignorância popular e a letargia, associada às demandas dos grupos de interesse, forçará os políticos a gerenciarem a economia. Politicamente falando, o mundo ainda está longe de estar pronto para moedas de papel gerenciadas.”

Assustadoramente, essas palavras foram escritas em 1932 pelo economista americano Edward Kemmerer, um dos argumentos mais claros contra o papel-moeda fiduciário e de curso forçado já escritos.

“Se não houver ouro, não pode haver impressão de dinheiro” é o que nos ensina a história: eis a lição monetária mais importante que os bancos centrais, desde sua criação até a época atual, sempre se recusam a aprender.

_________________________________

Douglas French é o diretor do Ludwig von Mises Institute do Canadá. Já foi o presidente do Mises Institute americano, editor sênior do Laissez Faire Club, e autor do livro Early Speculative Bubbles & Increases in the Money Supply. Doutorou-se em economia na Universidade de Las Vegas sob a orientação de Murray Rothbard e tendo Hans-Hermann Hoppe em sua banca de avaliação.

Marcia Christoff-Kurapovna mora em Viena, Áustria, e já escreveu artigos para o The Wall Street Journal Europe, o The International Herald Tribune, a The Economist e o The Christian Science Monitor, entre outras publicações. Publicou seu primeiro livro em 2009, Shadows on the Mountain, uma história real sobre operações de inteligência na Iugoslávia da Segunda Guerra Mundial.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui