Teoria e História

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Capítulo 2. Conhecimento e Valor

1. A Doutrina do Preconceito 

A ACUSAÇÃO de preconceito foi levantada contra os economistas muito antes de Marx tê-la integrado às suas doutrinas. Hoje em dia ela é adotada de modo geral por autores e políticos que, embora sejam influenciados pelas ideias marxistas em diversos aspectos, simplesmente não podem ser considerados marxistas. Devemos anexar à sua reprovação um significado que difere daquele que costuma ter no contexto do materialismo dialético. Devemos, portanto, distinguir entre duas variedades da doutrina do preconceito: a marxista e a não-marxista. A primeira será abordada em partes posteriores deste ensaio, numa análise crítica do materialismo marxista. Já a última é o tema deste capítulo.

Aqueles que sustentam ambas as variantes da doutrina do preconceito reconhecem que sua posição seria extremamente frágil se eles colocassem apenas na economia a culpa por um suposto preconceito, sem fazer o mesmo com todos os outros ramos da ciência. Assim, eles generalizam a doutrina do preconceito — porém não é necessário examinar aqui esta doutrina generalizada. Podemos nos concentrar em seu cerne, a afirmação de que a economia não é, necessariamente, wertfrei, mas sim manchada por predisposições e preconceitos que têm suas raízes em julgamento de valores. Pois todos os argumentos utilizados para dar apoio à doutrina do preconceito geral também são utilizados nas tentativas de se provar a doutrina do preconceito específico que se refere à ciência econômica, enquanto alguns dos argumentos que são levantados a favor da doutrina do preconceito específico são claramente inaplicáveis à doutrina geral.

Alguns defensores contemporâneos da doutrina do preconceito tentaram associá-la às ideias freudianas. Eles alegam que o preconceito que vêem nos economistas não é um preconceito consciente. Os autores em questão não têm consciência de seus prejulgamentos, e não procuram intencionalmente resultados que sirvam para justificar suas conclusões anteriores. Desde as profundezas do subconsciente, desejos suprimidos, desconhecidos até para estes próprios pensadores, exercem uma influência perturbadora sobre seu raciocínio e direcionam suas reflexões rumo a resultados que concordam com estes seus desejos e anseios reprimidos.

Não importa, no entanto, qual variedade da doutrina do preconceito é apoiada por quem. Cada uma delas está suscetível às mesmas objeções.

No que diz respeito ao preconceito, seja ele intencional ou inconsciente, pouco interessa se aquele que faz a acusação não tem a capacidade de demonstrar com clareza qual é a deficiência da doutrina em questão. Tudo o que interessa é se a doutrina é ou não pertinente; isto deve estar determinado a partir do raciocínio discursivo. A exposição das forças psicológicas que motivaram seu autor não diminuirá em nada a pertinência ou a correção de uma teoria. Os motivos que guiaram o pensador não são relevantes para a apreciação do seu feito. Os biógrafos se preocupam, nos dias de hoje, em explicar a obra do gênio como fruto de seus complexos e impulsos libidinosos, e uma sublimação de seus desejos sexuais. Seus estudos podem ser contribuições valiosas para a psicologia, ou, melhor, para a timologia (ver a seguir, p. 265), porém não afetam de qualquer maneira a avaliação das façanhas do biografado. A análise psicanalítica mais sofisticada da vida de Pascal não nos diz nada sobre a validade de suas doutrinas matemáticas e filosóficas.

Se os fracassos e erros de uma doutrina forem revelados através do raciocínio discursivo, historiadores e biógrafos podem tentar explicá-los apontando suas origens nos vieses do autor desta teoria. Porém, se nenhuma objeção convincente puder ser feita contra uma teoria, os motivos que inspiraram seu autor são irrelevantes. Isto se ele, de fato, tiver este viés. Devemos então, no entanto, nos dar conta de que o seu suposto viés produziu teoremas que conseguiram superar com sucesso todas as objeções.

A referência ao viés ou preconceito de um pensador não serve como substituto para uma refutação de suas doutrinas através de argumentos convincentes. Aqueles que acusam os economistas de serem preconceituosos apenas mostram que não são capazes de refutar seus ensinamentos através de uma análise crítica.

 

2. O Bem-Estar Comum versus os Interesses Especiais

 

As políticas econômicas têm como meta a obtenção de fins específicos. Ao lidar com elas a ciência econômica não questiona os valores associados a estes fins pelo agente homem. Ela apenas investiga dois pontos: primeiro, se as políticas em questão são ou não apropriadas para se obter os fins que aqueles que as recomendam e põem em prática desejam obter. Segundo, se estas políticas não podem porventura produzir efeitos que, do ponto de vista daqueles que as recomendam e as colocam em prática, são indesejáveis.

É verdade que os termos com os quais muitos economistas, especialmente aqueles das gerações mais antigas, expressavam o resultado de suas investigações, podiam facilmente ser mal-interpretados. Ao lidar com uma política definida, eles adotavam um modo de falar que talvez fosse apropriado do ponto de vista daqueles que consideravam recorrer a ela para obter fins específicos. Exatamente porque os economistas não tinham preconceitos e não ousavam questionar a escolha de fins do agente homem, eles apresentavam o resultado de sua deliberação como um meio de se expressar que levava em conta as avaliações dos agentes. As pessoas têm como meta fins definidos quando recorrem a uma tarifa ou fixam taxas de salário mínimo. Quando os economistas acreditavam que estas políticas atingiriam os fins que aqueles que as apoiavam tencionavam atingir, eles a chamavam de boas — assim como o médico chama determinado tratamento de bom porque ele assume que atingirá um determinado fim — a cura do paciente.

Um dos mais célebres teoremas formulados pelos economistas clássicos, a teoria dos custos comparativos, de Ricardo, está protegida de todas as críticas, a se julgar pelo fato de que centenas de oponentes fervorosos, ao longo de 140 anos, não conseguiram levantar contra ele qualquer argumento convincente. É muito mais do que uma simples teoria que lida com os efeitos do livre comércio e do protecionismo; é uma tese a respeito dos princípios fundamentais da cooperação humana sob a divisão de trabalho e especialização e a integração de grupos vocacionais, sobre a origem e a posterior intensificação dos laços sociais entre os homens e, como tal, deve ser chamada de lei de associação. Ela é indispensável para a compreensão da origem da civilização e do curso da história. Ao contrário das pré-concepções populares, ela não afirma que o livre comércio é bom e o protecionismo é ruim; ela apenas demonstra que o protecionismo não constitui um meio para se aumentar a oferta de bens produzidos. Logo, ela não fala nada sobre a adequabilidade ou inadequabilidade do protecionismo para se atingir outros fins, como, por exemplo, a melhoria das chances de uma nação de defender a sua independência durante uma guerra.

Aqueles que acusam os economistas de preconceito se referem à sua suposta avidez em servir “aos interesses”. No contexto desta acusação, isto se refere à busca egoísta do bem-estar de determinados grupos à custa do bem-estar comum. Deve-se lembrar, no entanto, que a ideia de bem-estar comum no sentido de uma harmonia entre os interesses de todos os membros da sociedade é uma ideia moderna, e que deve sua origem justamente aos ensinamentos dos economistas clássicos. As gerações mais antigas acreditavam que há um conflito irreconciliável de interesses entre os homens e entre os grupos de homens. O ganho de um invariavelmente representará o dano para outros; nenhum homem consegue lucrar a não ser através da perda de outros. Podemos chamar a este princípio de “o dogma de Montaigne”, porque, nos tempos modernos, ele foi exposto pela primeira vez por Montaigne. Ele formou a essência dos ensinamentos do mercantilismo e o principal alvo da crítica dos economistas clássicos ao mercantilismo, ao qual se opunham com sua doutrina da harmonia dos interesses no longo prazo, corretamente compreendidos, de todos os membros de uma sociedade de mercado. Os socialistas e intervencionistas rejeitam a doutrina da harmonia de interesses. Os socialistas afirmam que existe um conflito irreconciliável entre os interesses das diferentes classes sociais de uma nação; enquanto os interesses dos proletários exigem a substituição do capitalismo pelo socialismo, os interesses daqueles que exploram exigem a manutenção do capitalismo. Os nacionalistas declaram que os interesses das diversas nações estão irreconciliavelmente em conflito.

É óbvio que o antagonismo de doutrinas tão incompatíveis só pode ser resolvido através do raciocínio lógico. Porém os oponentes da doutrina da harmonia não estão preparados para submeter seus pontos de vista a esta análise. Assim que alguém critica seus argumentos e tenta comprovar a doutrina da harmonia eles reclamam do preconceito. O mero fato de que apenas eles, e não seus adversários, os partidários da doutrina da harmonia, fazem esta acusação de preconceito, mostra claramente que eles são incapazes de rejeitar as afirmações de seus oponentes através do raciocínio. Eles realizam a análise dos problemas predispostos supondo que apenas apologistas preconceituosos de interesses sinistros teriam a ousadia de contestar a correção de seus dogmas socialistas ou intervencionistas. Aos seus olhos, o simples fato de que um homem discorda de suas ideias é prova de seu preconceito.

Quando levada às últimas consequências lógicas, esta atitude implica na doutrina do polilogismo. O polilogismo nega a uniformidade da estrutura lógica da mente humana. Toda classe social, nação, raça ou período da história teria sido dotado de uma lógica que difere da lógica de outras classes, nações, raças ou eras. Logo, a economia burguesa é diferente da economia proletária, a física alemã da física de outras nações, a matemática ariana da matemática semita.

Não é necessário examinar aqui os princípios básicos dos diversos tipos de polilogismo.[1] Pois o polilogismo nunca avançou além da mera declaração de que existe uma diversidade na estrutura lógica da mente. Ele nunca indicou no que exatamente consistiriam essas diferenças: por exemplo, como a lógica dos proletários seria diferente da lógica da burguesia. Tudo o que os defensores do polilogismo fizeram foi rejeitar afirmações concretas referindo-se a peculiaridades não-especificadas da lógica de seus autores.

 

3. Economia e Valor

 

O principal argumento da doutrina clássica da harmonia se inicia com a distinção entre os interesses de curto prazo e os interesses de longo prazo, estes últimos referidos como interesses corretamente entendidos. Comecemos examinando as consequências desta distinção sobre o problema dos privilégios.

Um grupo de homens certamente se beneficia através de um privilégio que lhe é concedido. Um grupo de produtores protegidos por uma tarifa, um subsídio, ou qualquer outro método protecionista moderno contra a competição de rivais mais eficientes se beneficia à custa dos consumidores. No entanto, como o resto da nação, os pagadores de impostos e os consumidores daquele artigo protegido, irão tolerar o privilégio de uma minoria? Apenas concordarão com ele se eles próprios forem beneficiados por um privilégio análogo. Todos, neste caso, perdem, em sua condição de consumidores, na mesma proporção em que ganham em sua condição de produtores. Além disso, todos são prejudicados pela substituição de métodos mais eficientes de produção por métodos menos eficientes.

Ao se lidar com políticas econômicas do ponto de vista desta distinção entre interesses de curto e longo prazo, não há fundamentos para se acusar o economista de preconceito. Ele não condena a prática dofeatherbedding[2] entre os trabalhadores ferroviários porque ela beneficia os trabalhadores ferroviários à custa de outros grupos que ele prefere; ele aponta que os trabalhadores ferroviários não poderão evitar que o featherbedding se torne uma prática generalizada e que, portanto, no longo prazo, esta prática acabará por prejudicá-los tanto quanto às outras pessoas.

É claro que as objeções feitas pelos economistas aos planos dos socialistas e intervencionistas não têm qualquer influência entre aqueles que não aprovam os fins presumidos como certos pelos povos da civilização ocidental; aqueles que preferem a penúria e a escravidão ao bem-estar material e tudo que só pode ser desenvolvido onde há este bem-estar material devem julgar irrelevantes todas estas objeções. Os economistas, no entanto, enfatizaram inúmeras vezes que estão lidando com o socialismo e o intervencionismo do ponto de vista dos valores costumeiramente aceitos pela civilização ocidental. Os socialistas e intervencionistas não só não negaram — ao menos não abertamente — estes valores, como chegaram mesmo a declarar enfaticamente que a realização de seu próprio programa conseguirá atingi-los muito mais satisfatoriamente do que o capitalismo.

É verdade que muitos socialistas e muitos intervencionistas atribuem um grande valor à obtenção de uma igualdade no padrão de vida de todos os indivíduos. Os economistas, porém, não questionam o julgamento de valor implícito; tudo o que fizeram foi apontar as consequências inevitáveis desta igualdade. Eles não disseram: a meta que vocês estão tentando atingir é má; eles disseram: atingir esta meta trará efeitos que vocês próprios consideram mais indesejáveis do que a desigualdade.

 

4. Preconceito e Intolerância

 

É óbvio que existem diversas pessoas que deixam seu próprio raciocínio ser influenciado por julgamentos de valor, e que o preconceito muitas vezes corrompe o modo de pensar dos homens. O que deve ser rejeitado é a doutrina popular de que é impossível lidar com problemas econômicos sem preconceito, e que a mera referência a ele, sem que as falácias na cadeia de raciocínio sejam expostas, seja suficiente para destruir uma teoria.

O surgimento da doutrina do preconceito implica, na realidade, o reconhecimento categórico da impregnabilidade dos ensinamentos econômicos contra os quais são feitas as acusações de preconceito. Ela representa o primeiro estágio do retorno da intolerância e da perseguição aos dissidentes, uma das principais características de nossa época. À medida que os dissidentes vão sendo culpados de preconceito, torna-se justo “liquidá-los”.



[1] Ver Mises, Ação Humana, 106-121. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, tradução de Donald Stewart Jr.

[2] Prática de forçar empregadores a contratar mais funcionários do que o necessário, para desempenhar tarefas desnecessárias, ou limitar a sua produção, de modo a cumprir com determinada regulamentação sindical.

 

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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