Um esfomeado pode ser considerado uma pessoa livre?

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esmolaOs social-democratas modernos, aqueles que defendem a idéia de que o governo deve suprir-nos com as necessidades básicas — ou as supostas necessidades básicas — da vida, raramente percebem que este tipo de assistencialismo se baseia em um sistema de roubo e de escravização em massa que é completamente contrário à sua declarada crença na liberdade.  E de fato, os defensores de tal política apresentam-na como se ela fosse verdadeiramente o oposto do que é, como se ela estivesse realmente intensificando nossa liberdade.

Essa controvérsia se deve à alegação conceitual de que só há liberdade quando algumas das nossas necessidades mais básicas são satisfeitas — se necessário, pelas ações de outros.  Adeptos dessa visão afirmam que “o esfomeado não é um homem livre”[1] e que, por isso, o estado benevolente e assistencialista tem o dever de livrá-lo da inanição e de outras privações.  Somente assim ele poderia ser de fato considerado livre.

Esta típica posição do moderno social democrata foi celebremente demonstrada por Sir William Beveridge em sua defesa de um estado assistencialista britânico:

Liberdade significa mais do que ser livre do poder arbitrário dos governos. Significa ser livre economicamente da servidão da penúria e da miséria e de outras desgraças sociais; significa ser livre do poder arbitrário, qualquer que seja a sua forma.  Um homem esfomeado não é livre porque, até que ele seja alimentado, ele não conseguirá pensar em nada que não seja em como satisfazer suas urgentes carências físicas; ele é rebaixado de homem a animal. Um homem que não ouse mostrar seu ressentimento contra aquilo que considera ser uma injustiça da parte de seu empregador ou chefe, por medo de ser condenado ao desemprego crônico, não é um homem livre.[2]

Este conceito combina dois tipos bem diferentes de liberdade: a liberdade contra a coerção de outros homens e a liberdade de se abster da obrigação pessoal de ter de satisfazer as próprias necessidades básicas de sobrevivência.  Apesar de serem apresentados como dois requisitos paralelos para que haja liberdade, eles são, na realidade, mutuamente excludentes.  A partir do momento em que o homem passa a existir, ele terá necessidades materiais; e a única maneira pela qual ele pode fugir da responsabilidade pessoal de satisfazer essas necessidades é impondo essa responsabilidade sobre outros.  Se essa imposição for voluntariamente empreendida por terceiross, então tanto o libertário como o social democrata moderno estão de acordo — ambos aprovam a caridade voluntária.[3]  Mas isso não é o que os social-democratas modernos propõem.  Ao contrário, eles impõem essa tarefa de ajudar os necessitados fazendo uso da força da lei — tudo sob os auspícios do estado assistencialista.  Sob esse sistema, todos são forçados a contribuir com o custo de suprir as necessidades, ou as supostas necessidades, dos outros.

Apesar de qualquer retórica ao contrário, este estado assistencialista estabelecido pelos modernos social-democratas não faz nada para apaziguar a contradição entre a liberdade contra a coerção humana e a liberdade em relação à natureza — ele simplesmente sacrifica a primeira tentando obter a segunda.

Liberdade em relação à “servidão econômica” e os “poderes arbitrários” da natureza

Todos os seres vivos devem se empenhar em ações de auto-sustentação se quiserem sobreviver.  Tudo o que se requer é que haja comida suficiente para se evitar a fome, e proteção contra os aspectos mais severos da natureza para se evitar o extermínio — todos têm de comer, beber e dormir.  Essa é a “servidão econômica” a que Sir Beveridge se refere.  A liberdade que ele e outros social-democratas modernos almejam é a liberdade em relação ao próprio corpo, a liberdade em relação à natureza.  As exigências do nosso sistema digestivo, do nosso coração, do nosso cérebro, dos nossos pulmões são os “poderes arbitrários” dos quais devemos ser “libertados” — libertados, nesse caso, significa coagir outros homens, que são roubados e escravizados para satisfazer às necessidades impostas por nosso organismo.

O homem esfomeado realmente precisa de comida — isto é, se ele não ingerir comida suficiente para sustentar seu próprio corpo, irá morrer rapidamente.  Essa é a natureza do seu corpo — nenhuma outra pessoa impõe essa necessidade sobre ele.  O homem esfomeado nunca estará livre da natureza do seu próprio corpo, mesmo vivendo sob o assistencialismo estatal.  Essa é uma questão metafísica, e não uma de filosofia política.  Mas o esfomeado deveria sempre estar livre da coerção de outros homens.  Ele deveria ser livre para obter comida através de trocas voluntárias com outras pessoas.  Se ele for incapaz de oferecer qualquer coisa de valor em troca, então ele deveria ser livre para confiar na caridade voluntária.  Mas não se deve permitir que ele roube ou escravize outros homens para poder satisfazer suas necessidades.  Da mesma forma que não se deve permitir que outros roubem e escravizem para benefício do esfomeado.  Todos têm o direito de estar livre de agressões.

Se é para levarmos a sério este princípio da não-agressão, então devemos reconhecer suas implicações lógicas e ser honestos em relação a essas implicações.  Devemos reconhecer que esse princípio nos deixa sem qualquer garantia firme de que seremos alimentados, banhados, vestidos e alojados em qualquer tipo de moradia.  Devemos reconhecer que se formos incapazes de obter nossas necessidades básicas através da nossa própria iniciativa, então teremos que contar com a assistência voluntária de outros.  Se formos incapazes de convencer esses outros a suprir nossas carências mais básicas, então a liberdade que eles têm contra a nossa coerção pode significar que iremos morrer.  Essa pode parecer uma posição insensível, mas é bem mais humana do que ter um estado assistencialista, que escraviza todos os homens por todo o tempo em que estiverem vivos.

E mais ainda: por maior que seja o entusiasmo com que os defensores do estado assistencialista fazem suas hipócritas exposições sobre o alegado “direito” à alimentação, à moradia, à saúde etc., eles têm de aceitar que, em dado momento, uma pessoa será deixada à morte por escassez de recursos — pelo simples fato de que comida, habitação e cuidados médicos são recursos escassos, o que significa que não seria possível prolongar a vida de cada indivíduo ao máximo desejado.  Mesmo que todos empenhassem os seus esforços para prolongar a vida daqueles que estão atualmente vivos, é necessário entender que o esforço para prolongar algumas vidas por meio do consumo de recursos escassos inevitavelmente significaria que esses recursos não mais estariam disponíveis para prolongar a vida de outros. Tagarelices piedosas do tipo “nenhuma quantia de dinheiro vale uma vida” não evitam esse fato — servem apenas para massagear o ego daqueles que querem ter uma desculpa para poder desperdiçar recursos ajudando aqueles que lhes são mais importantes, em detrimento daqueles que não são.

A fome sob o Capitalismo e o Socialismo

Conquanto tenhamos de aceitar o fato de que algumas pessoas — particularmente aquelas que já são velhas ou que estejam seriamente adoentadas — irão morrer em um dado momento devido à falta de cuidados ou de recursos, a probabilidade de uma pessoa saudável morrer de fome ainda é bastante improvável. Essa é uma probabilidade que só existe na demagogia dos estatistas adeptos do assistencialismo, mas não no mundo real do capitalismo de livre mercado.

O histórico real do sistema de capitalismo de livre mercado (ou melhor, do sistema de relativo capitalismo de livre-mercado, já que um verdadeiro capitalismo de livre mercado jamais existiu) mostra que esse é o único sistema que permitiu uma enorme prosperidade material conjugada com um setor caritativo voluntário e abundante.[4]

E na verdade, algumas das maiores organizações de caridade do Ocidente que existem hoje foram fundadas no século XIX, durante o apogeu do capitalismo de livre mercado.[5] Desde então, o crescimento do estado assistencialista praticamente aniquilou a caridade privada e fez maciços estragos na ética caritativa.

Apesar de ainda haver apelos polêmicos para que se ajude os esfomeados, essa tática é atualmente mais engodo do que realidade. Poucos realmente crêem que haja qualquer indício de fome em relação aos “pobres” daqueles países ricos que se beneficiaram do capitalismo de livre mercado.[6] Aliás, o maior problema enfrentado pelos “pobres” nos países ocidentais é a obesidade mórbida, e não a inanição.

Apelos contínuos para que se satisfaçam as alegadas “necessidades básicas” dos mais “pobres” não são nada mais do que estratagemas para se criar irreversíveis programas de redistribuição de riqueza em larga escala.

A prosperidade material inerente ao capitalismo de livre mercado apresenta-se em total contraste à pobreza inerente àqueles países que abriram mão da liberdade contra a coerção, e que adotaram idéias impraticáveis que pregavam a liberdade em relação às necessidades da natureza. O que acabou ocorrendo nesses casos foi a fome em massa, incluindo a inanição ocorrida em países sob governos socialistas que arrogavam a si próprios a abrangente tarefa de suprir as necessidades das pessoas.[7]

O contexto é ignorado para que se possa omitir discussões sobre a responsabilidade pessoal

Começar qualquer argumentação pela hipótese de que um homem está esfomeado é um exemplo clássico de como se ignorar o contexto da situação.  Afinal, só para começar, como ele foi parar nessa terrível situação?  Sob um ambiente de capitalismo de livre mercado, a lei das vantagens comparativas e a divisão do trabalho asseguram que ele sempre estará apto a realizar alguma tarefa valorosa com uma eficiência relativamente maior do que a de outras pessoas.  A ausência de interferência governamental no mercado de trabalho garante que ele estará apto a obter trabalho nas áreas em que tem alguma vantagem comparativa, se ele assim o desejar.  E o constante aperfeiçoamento da eficiência da produção capitalista assegura que seu salário aumentará ao longo do tempo, e os preços dos bens e serviços básicos irão cair, permitindo que ele se beneficie dos níveis de prosperidade cada vez maiores.

Para o ínfimo número de pessoas genuinamente incapazes de executar qualquer trabalho produtivo em um nível capaz de sustentar suas próprias necessidades básicas — tais como aquelas com sérias deficiências físicas ou mentais —, sempre houve uma ampla oferta de caridade voluntária oferecida por muitas outras pessoas que prosperaram sob o capitalismo.  O perigo de essa oferta de caridade se tornar indisponível é aumentado pelos esforços conjuntos de estatistas assistencialistas com o intuito deliberado de confundir a genuína caridade voluntária com a falsa caridade fornecida pelo governo ou por agências financiadas pelo governo.  Essa fraude levou algumas pessoas a associar caridade com estatismo (como era a intenção) e, por isso, a rejeitar ambos (o que não era a intenção).

A desonestidade dos estatistas assistencialistas

Esse cândido reconhecimento da contradição entre liberdade, coerção e assistencialismo estatal é mais do que se pode esperar dos defensores do estado assistencialista.  A maioria deles não se contenta apenas em admitir sua preferência pelo assistencialismo estatal ao invés da ausência de coerção.  Eles também querem encobrir a natureza coerciva de toda a ação governamental.  Como um exemplo característico desta postura fraudulenta tem-se a maliciosa declaração de Sir Beveridge, “A liberdade significa mais do que apenas livrar-se do poder arbitrário dos governos”[8]  De fato, a “liberdade” concebida por Sir Beveridge e outros estatistas assistencialistas não significa de maneira alguma livrar-se do poder arbitrário dos governos.  Significa exatamente o oposto: que as pessoas devem ser sistematicamente escravizadas por seus governos com o intuito de poder fornecer uma sempre crescente lista de bens e serviços àqueles que o governo considera dignos de recebê-los.

Devido à ausência de qualquer genuína possibilidade de inanição nos países desenvolvidos e na maioria daqueles em desenvolvimento, torna-se evidente a falsidade dos apelos de ajuda aos esfomeados.  No moderno estado assistencialista, o governo não fornece apenas as necessidades mais indispensáveis para o sustento básico.  Além de fazer isso, o estado também se envolve em políticas de redistribuição de riqueza em larga escala, permitindo que os beneficiários deste sistema vivam muito além da mera subsistência,[9] utilizando recursos que foram sistematicamente pilhados dos outros cidadãos.

Para ser bem claro, isso não significa de maneira alguma que se está dizendo que os beneficiários do assistencialismo levam vidas opulentas.[10]  Porém, opulência e subsistência são dois padrões muito diferentes; e se os assistencialistas escolherem utilizar os argumentos que defendem a política assistencialista como meio de mera subsistência — como os apelos à suposta falta de liberdade inerente ao esfomeado —, então eles devem se manter nesse padrão.  Trata-se de uma fraude enorme quando os assistencialistas impõem redistribuição em massa de riqueza como meio de combater a suposta fome, pois a fome, nesse caso, claramente não é o motivo dessa política.  Por mais pobres que os beneficiários das políticas assistencialistas sejam em relação à população geral, eles claramente não estão correndo perigo de inanição.

Mesmo aceitando a imagem do esfomeado como um útil experimento mental, a afirmação de que sua fome anula sua liberdade é insustentável. Em uma sociedade livre — isto é, uma sociedade que não aceite a coerção governamental — ele teria várias oportunidades de satisfazer suas carências no livre mercado.  Se ele forgenuinamente incapaz de fazê-lo, ele achará um grande número de pessoas mais prósperas dispostas a ajudá-lo voluntariamente.  Nesse alegado esforço de nos livrar da “servidão econômica” e de satisfazer nossas carências mais básicas de sobrevivência, o moderno estado assistencialista — a materialização da filosofia dos social-democratas modernos — tem tido mais sucesso em criar dependência do que em criar opulência.  Ao escravizar todos os indíviduos ao governo nessa pungente e infindável batalha de suborno político, a única meta atingida pelo estado foi a erosão da ética e dos incentivos que nos levam a cuidar de nós mesmos e dos outros.


Notas

[1] Ocasionalmente ouve-se também a versão mais forte, que diz que “o faminto não é livre”. Para os propósitos deste artigo, iremos utilizar a versão mais leve, o que logicamente também irá permitir lidar com a mais forte.

[2] Beveridge, W. Why I am a Liberal (Herbert Jenkins: London, 1945), p. 9.

[3] Apesar do fato de que muitos social-democratas modernos tendem a considerar a caridade como sendo algo aviltante para o donatário, seja porque acreditam que o donatário já tem um “direito” à sua assistência, ou porque acreditam que, na ausência de alguma garantia de sobrevivência, o donatário está sendo forçado a uma relação de subordinação ao doador.

[4] O campo da política mostra um infeliz sinal de degeneração intelectual ao ter que usar o redundante conceito de caridade voluntária.

[5] Por exemplo, a Sociedade São Vicente de Paulo foi fundada em 1833, a Royal London Society for the Blind em1838, a Cruz Vermelha em 1863 e o Exército de Salvação em 1865.

[6] Escrevo “pobres” entre aspas porque as pessoas mais pobres dos países ricos são de fato tremendamente ricas em comparação à maioria das pessoas em todo o mundo, tanto historicamente como na atualidade.  Mesmo o trabalhador mais servil ou qualquer um desempregado nos países ricos atualmente desfruta de um estilo de vida de absoluta opulência comparado às condições vividas pela maior parte da humanidade, historicamente — eles estão longe de estar passando fome.  De fato, elas são pobres apenas em comparação às outras pessoas de países ricos que são ainda mais ricas.

[7] Por exemplo, em 1932-1933 o governo da União Soviética intencionalmente matou de fome cinco milhões de camponeses ucranianos. Durante o “Grande Salto Adiante” o governo chinês matou de fome vinte e sete milhões de chineses, o maior caso de morte por inanição da história da humanidade. Ver Rummel, R.J. Death by Government (Transaction Publishers: New Brunswick, 1994), pp. 80, 97.

[8] Beveridge, W. Why I am a Liberal (Herbert Jenkins: London, 1945), p. 9.  A ênfase é minha.

[9] Ocasionalmente ouve-se defensores do assistencialismo falando sobre pessoas vivendo “abaixo dos níveis de subsistência”.  Esses estatistas precisam de um dicionário, não de um palanque na mídia.

[10] Comparando-se com a população geral do mesmo lugar e da mesma época, certamente que não.  Mas, com certeza, quando comparadas às condições históricas em que a maioria das pessoas viveu no decorrer da história, pode-se dizer que sim.

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