Um retrato da saúde brasileira – um desabafo de dois médicos

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saude_publica“Direito” à saúde
A área da saúde pode ser — e é! — negativamente influenciada pela interferência das ideologias socialistas e, consequentemente, da intervenção estatal. Este artigo foi escrito por quem está do lado de cá: clinicando, operando e passando por todo o tipo de dificuldades em tentar ser médico em um país onde a pérfida influência comunista, na disfarçada figura da social democracia, já lançou de forma quase que definitiva seus tentáculos.

Talvez devamos iniciar com uma das frases mais ditas nos últimos 30 anos, minuciosamente pensada e formulada pela inteligentsia: “Saúde, um direito de todos”. Tal afirmação positiva é uma grande falácia.

Aqui, vale fazer uma recordação sobre as transformações ideológicas e também sobre as palavras que perderam o sentido, e relembrarmos que “direito” se transformou em uma palavra universal nesse nosso mundo dominado por um estado forte que quer cuidar de tudo e a todos prover — ou pelo menos promete isso.

É fundamental conceituar a definição de “bem”, que juridicamente significa ‘tudo aquilo que pode ser propriedade de alguém’. Ou ainda, tudo o que é ‘útil para poder satisfazer a necessidade de alguém’. Economicamente falando, um bem também se caracteriza pela utilidade e escassez, podendo ser assim um bem de consumo (duradouro e não-duradouro).

E é nesse sentido que gostaríamos de classificar agora a saúde ou o acesso à saúde: não como um direito, mas como um bem de consumo como outro qualquer, sobre o qual atuam as regras da oferta e da procura e da livre concorrência. Sobretudo, vale também a regra da livre escolha do consumidor, a qual, em todos os modelos em que foi aplicada, só produziu preços competitivos, desenvolvimento e fartura.

A saúde, ao ser tratada como um direito a ser suprido pelo estado, tem como único resultado um serviço pífio, quando não a escassez completa. Devemos relembrar que, na antiga União Soviética, até mesmo o setor de alimentação foi envolvido nas regulamentações do estado, e o resultado foi a fome, quando não genocídio por inanição.

Mas de onde se originou todo o problema com a saúde brasileira? O que acontece é que temos uma Constituição até certo ponto recente (26 anos), que foi escrita após um longo período de ditadura militar e com uma demanda reprimida muito grande por serviços e melhorias ditas “sociais”. O resultado foi uma carta magna que muito promete e pouco realmente pode cumprir. E não só na área da saúde, mas em todas as áreas básicas, como educação e segurança, e até mesmo na infraestrutura.

Vivemos, pois, somente em um ambiente profético, no qual o estado promete mundos e fundos. Para a população, só resta esperar e acreditar que seu novo deus a sustente eternamente, transformando assim o estado em uma abstração com um fim superior.

O serviço público não funciona simplesmente porque recai no mesmo problema da impossibilidade de haver um cálculo econômico sob um sistema socialista, conforme descrito por Mises. A regra se aplica integralmente ao SUS, nosso sistema único ou universal de saúde — na verdade um simulacro de sistema de saúde.

Como em todos os serviços públicos, o estado, essa figura amorfa, detém um comando centralizado sobre o sistema, atuando como um líder supremo cujas ordens são sempre ditadas de forma vertical (sempre de cima para baixo), desconsiderando o tamanho do país envolvido e ignorando as variáveis econômicas e culturais de cada região. Esse sistema funciona com burocracia extrema — que é aquilo que faz o estado ser o estado —, e cujos burocratas têm como figura suprema o político.

A mentalidade de ter o SUS como algo acima de todos os sistemas de saúde é percebida no profissional de saúde: a maioria destes ainda prefere a estabilidade pública. Já não é tão incomum colegas não se arriscarem mais na vida privada. Alguns, inclusive, já estão investindo cada vez mais em concursos públicos. Ainda não temos um grupo de “concurseiros profissionais” no meio médico simplesmente porque, em nosso país, nem mesmo os concursos públicos para a área de saúde são frequentes (em comparação com a área jurídica).

Culpa da nossa criação

E por que os médicos e outros profissionais da saúde têm essa visão tão estatizada de suas profissões e até de suas vidas? Primeiramente, a própria criação em nosso país já gera automaticamente uma atitude de crença em um estado provedor e ao qual todos devem recorrer em momentos de crise. No entanto, ao entrarem em uma faculdade de medicina, essa visão é amplificada, pois lhes é inculcada a ideia de que o SUS — e somente ele — tem de ser, a partir daquele momento, o seu guia, sendo todas as outras possibilidades de atuação fora do SUS vistas apenas como formas alternativas.

Tudo se inicia com uma visão de total abnegação da medicina, sendo o médico um ser altruísta por natureza e com necessidades extremamente limitadas. É fato que a profissão médica, em última instância, é uma atividade que requer cuidados triplicados quando comparada a outras atividades profissionais, pois lida com vidas. A atenção e o desprendimento pessoal são imprescindíveis. Os médicos sabem disso e os pacientes também sabem disso. Mas o estado não quer saber disso.

Para o burocrata, o médico realmente é uma figura franciscana e que concorda plenamente em realizar um altruísmo forçado (mesmo em ambientes profissionais sucateados). E, como a maioria dos profissionais tem essa ideia martelada desde o primeiro ano de faculdade, o SUS vai se mantendo “aos trancos e barrancos”. Como diria um famoso político brasileiro há alguns anos: “Médico é igual sal: branco, barato e encontra-se em qualquer lugar”, o que quer dizer que somos mercadoria pouco escassa e que, como seres altruístas naturais, iremos aceitar qualquer remuneração e trabalhar de qualquer maneira, pois nossa crença de que o SUS deva continuar existindo — intocável — é nossa premissa universal e verdadeira.

Vale alertar que a educação médica encontra-se cada vez mais centrada em uma visão “social” deturpada por anos de doutrinação ideológica (Gramsci agradece). Umas das várias provas disso é a disseminação da medicina de família ou PSF (Programa de Saúde da Família), que, entre outras coisas, prega uma visão totalmente generalista da formação médica, visão essa que é tida como superior à formação de especialidades.

O PSF originou-se de uma visão de medicina socializada aos moldes cubanos, e nos foi vendida como sendo o modelo-padrão de medicina do tipo preventiva (a verdade é que é apenas um subtipo desse tipo de medicina), a qual deveria ser estimulada, praticada e principalmente implementada em todos os municípios de nosso país.

Com o PSF, a atenção primária seria a mais importante e resolutiva, pois, a partir do pleno funcionamento do modelo, o número de doentes no sistema secundário e terciário de saúde diminuiria drasticamente. É óbvio que esse tipo de modelo (um tanto quanto romântico) jamais funcionou como deveria.

Além do incontornável problema da escassez de recursos, o PSF não funciona pelo simples motivo de que o setor terciário foi e sempre será aquele que realmente resolve o problema. Afinal, em uma cultura como a nossa, na qual prevenção ainda é algo distante, o paciente sempre irá procurar pelo melhor e ir atrás daquilo que realmente produz resultados definitivos.

Foi Adam Smith quem declarou que a divisão do trabalho representa o divisor de águas entre um sistema de baixa produtividade e um de alta produtividade e excelência. A divisão do trabalho constitui o cerne da produtividade econômica e visa ao aumento da abundância de bens e serviços. E foi David Ricardo quem formulou a lei da associação para demonstrar quais são as consequências da divisão do trabalho quando um grupo de indivíduos coopera com outro grupo de indivíduos, mesmo que um deles seja menos eficiente em todos os aspectos. A colaboração dos mais talentosos e capazes com aqueles que são menos talentosos e capazes resulta em benefício para ambos e os ganhos assim obtidos são recíprocos.

A especialização médica deve, portanto, seguir a mesma lógica de qualquer outra produção de bens, em que as diferentes especialidades médicas constituem novas etapas intermediárias na cadeia de produção do bem ‘saúde’.

No entanto, a medicina socializada, ao acabar com as especializações, visa justamente à abolição desta divisão do trabalho. Abolir a divisão do trabalho no meio médico — ou seja, as especializações — sempre foi algo bem óbvio na visão marxista. A imagem do médico generalista, abnegado, agindo como um beato de casa em casa, e se tornando o grande “Pai da comunidade” e um grande benfeitor completa a agenda socialista em questão.

Outra importante forma de desanimar o estudante de medicina a seguir uma subespecialização é o método de ensino empregado por algumas faculdades. Esse novo método retira a obrigatoriedade das cadeiras básicas do curso de medicina (anatomia, histologia, clínica médica, cirurgia geral etc.), estando essas agora diluídas. Consequentemente, acaba também com a presença dos professores titulares de cada uma dessas cadeiras. As aulas agora são ministradas por tutores (que não precisam ser obrigatoriamente médicos). O que temos não são mais aulas e sim grupos de estudo nos quais o aluno agora aprende a “pensar por si mesmo”, interpretando textos. O professor (oops, o tutor) não pode nada, e pouco fala ou explica.

Esse modelo é completamente inspirado nas chamadas escolas experimentais dos anos 1970, que eram influenciadas pelas teorias pedagógicas construtivistas, as quais tinham suas bases calcadas no construtivismo estético russo. Ou seja, sua origem e ideologia são comunistas.

Por não haver agora um mestre como baluarte, alguém a ser seguido como exemplo de eficiência e sucesso profissional (quantos médicos resolveram fazer determinadas subespecialidades espelhando-se em seus professores titulares?), temos um crescente estímulo para o médico generalista.

Por fim, vale lembrar que, para tal método novo ser implementado em determinadas faculdades, houve uma voluptuosa contribuição financeira do governo para a instituição interessada; um tipo de incentivo dado pelo Ministério da Educação à instituição que quisesse experimentar esse novo método. Seria isso um tipo de capitalismo de estado (ou mercantilismo) no meio da educação? Deixemos a pergunta no ar.

Código de Ética

O código de ética profissional do profissional médico é um capítulo à parte. Além de dar suporte a um sistema calcado na gratuidade e em supostos direitos a uma saúde universalizada, ele também age como um bloqueio às ações de mercado (ou seja, ações em que, por meio de trocas voluntárias, consumidores e prestadores de serviço encontram a melhor maneira de resolver seus problemas). Principalmente, ele rechaça a ideia de saúde como um bem ou serviço.

O código já se inicia em seu primeiro termo dizendo: “A medicina é uma profissão a serviço do ser humano e da coletividade…”. O termo aqui usado, “coletividade”, poderia muito bem ser substituído por “de todos”, mas isso não enfatizaria o real significado embutido na palavra. Ao insistir nessa expressão, deixa-se claro que os médicos não são indivíduos dotados de livre escolha, mas sim membros de uma comunidade gregária com algum tipo de consciência social. Em vez da livre escolha, há somente o determinismo e a obrigatoriedade de se submeter somente a um tipo de serviço.

Essa visão do coletivo também é corroborada no item que diz: “O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade profissional..”. Ou seja, de forma coerciva, praticamente obriga o médico a participar de todo e qualquer tipo de “movimento”, mesmo que esse não seja do agrado ou da concordância do profissional em questão.

Nesse ponto, lembremos dos movimentos arquitetados por líderes sindicais, que também existem no meio médico. Teríamos nós que dar apoio a esse tipo de movimento? Vale lembrar que, embora a contribuição sindical via CRM não seja obrigatória (só faltava!), há uma multa pelo não comparecimento à eleição do CRM. Isso é imoral e, acima de tudo, autoritário. Nesse quesito, o CRM se iguala ao governo, que obriga o cidadão a comparecer à “Festa da Democracia”, mesmo que seja à base de força. Trata-se de um claro desrespeito à noção de liberdade individual.

Um dos textos mais cruéis e autoritários do Código de Ética encontra-se no capítulo XII, recentemente criado e que diz respeito à publicidade médica. Para resumir, ele proíbe a participação ou divulgação de qualquer tipo de assunto médico em meios de comunicação de massa. Mais ainda: ainda veda ao profissional a participação em propagandas de qualquer tipo.

Proibir a autopromoção e a divulgação séria e correta de seus serviços é algo absurdo que tem por objetivo transformar o médico em uma figura economicamente estéril. O mais irônico é que propagandas do SUS que exaltam como ele está “mudando a cara da saúde em nosso país” não param de ser marteladas diariamente nos mesmos meios de comunicação de massa vedados aos médicos. E tudo isso financiado com o seu e com o meu dinheiro.

Por outro lado, outros conselhos, como o de odontologia, não coagem seus profissionais e estes estão liberados para realizar propagandas — ou será que ninguém nunca viu em uma propaganda de determinada pasta ou escova de dente a corroboração de um profissional dentista incluindo seu nome e CRO? Isso é válido, salutar e respeitoso para com o profissional. Se o medo do CRM é propaganda enganosa ou exagerada, deixe que a justiça comum cuide do caso. Só não tirem nossa liberdade.

Planos de saúde

Qual seria a saída para a arapuca armada pelo estado (denominada SUS)? Como tentar uma forma de livre mercado na área de saúde?

A resposta mais fácil seria recorrer à medicina privada na forma de planos e seguros de saúde, chamados em nosso país de “saúde suplementar”. No entanto, esse ou qualquer outro sistema complementar de saúde em que se tentam aplicar as simples leis de mercado encontram sérias barreiras burocráticas, principalmente na forma de interferência estatal.

O motivo para isto é simples: também no sistema privado de saúde encontramos o chamado capitalismo de estado, em que as grandes operadoras de plano e de seguros de saúde foram cartelizadas pelo governo. Há poucos planos de saúde, e os que existem estão associados ao governo em um esquema de ajuda mútua na qual o consumidor e o prestador de serviço final sempre sairão perdendo.

De um lado, o estado cria entraves e barreiras burocráticas na forma de rígidas leis, obrigando as operadoras a realizarem aquilo que o governo quer. Em contrapartida, o estado também cria barreiras protecionistas contra a entrada de novos planos de saúde, garantindo uma reserva de mercado para essas operadoras. Como consequência deste arranjo, as operadoras têm uma lucrativa reserva de mercado, o governo tem um amplo controle sobre o mercado, e a relação médico-paciente passa a inexistir.

Se ao menos a entrada de planos de saúde no mercado fosse liberada, isso aumentaria sobremaneira a concorrência, consequentemente fazendo o preço das mensalidades e dos serviços baixarem.

Mas há um complicador adicional. Da mesma forma que governo opera em conluio com os planos de saúde — o que a princípio ajuda as operadoras —, ele também finge estar atendendo aos anseios dos consumidores: é cada vez maior o número de decretos e processos jurídicos obrigando os planos a incluir exames, procedimentos e a liberarem consultas, aumentando coercivamente o leque de cobertura dos planos. Essa regulação extrema aumenta os custos dos planos e faz com que menos recursos (profissionais e equipamentos) sejam alocados para os locais necessários. Consequentemente, os planos começam também a cortar gastos, gerando uma escassez desnecessária e fazendo deles o novo SUS.

Ou seja, uma regulação (proibição da concorrência) gera problemas (aumento dos preços dos planos) que são “solucionados” por meio de novas intervenções (obrigatoriedade de novas coberturas), o que gera aumento de custos e escassez.

A impressão que dá é que o governo faz um jogo duplo: de um lado, incentiva os planos de saúde cartelizados com o intuito de “aliviar” o já abarrotado SUS; de outro, não deixa os planos crescerem muito, sempre aumentando os custos destes, talvez com medo da migração dos profissionais de saúde do setor público para o privado.

Nem mesmo as cooperativas médicas conseguem escapar das amarras do estado. O que em princípio seria um meio de os médicos trabalharem de forma livre e dentro dos preceitos de qualquer cooperativa (adesão voluntária, gestão democrática e participação econômica dos membros), e de alguma maneira conseguirem se autoadministrar, não se concretiza. Aqui também o governo — com sua burocracia extrema, protecionismo, mandatos judiciais e autoritarismo da ANS (que perde em força talvez somente para a ANVISA) — entra com sua mão pesada, retirando o já rarefeito ar e sufocando de vez também as cooperativas.

Conclusão

Nossos médicos são inculcados desde a faculdade a serem agentes do estado e “instrumentos da coletividade”, a saúde pública não tem como funcionar, e a saúde privada não pode ser considerada como tal, pois não é regida pelas leis de mercado. Tampouco ela é tratada realmente como um bem de consumo a ser suprido por instrumentos econômicos legítimos, como livre concorrência e leis da oferta e procura, medida essa que, no longo prazo, faria com que os serviços melhorassem sobremaneira para ambos os lados.

O futuro da medicina no nosso país é aziago, a não ser que comecemos a reescrevê-lo a partir de já. Nesse sentido, é fundamental que enxerguemos o que não se vê, e passemos, médicos e não médicos, a compreender o que significa saúde pública: um estado de mal-estar social.

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