Um vermelho-e-preto com Maílson da Nóbrega

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mailsonMaílson da Nóbrega – aquele que participou da elaboração do maravilhoso Plano Bresser e que, quando foi Ministro da Fazenda (1988-1989), saiu congelando preços e salários com seu Plano Verão, mesmo após toda a experiência trazida pelo Plano Cruzado – possui uma coluna quinzenal na revista VEJA, na qual gosta de posar de liberal comedido, apesar de seu passado.Na última edição do hebdomadário, o indigitado se aventura a filosofar sobre vários assuntos, inclusive libertarianismo.

Ele vai de vermelho, eu vou de preto.

 

O atual governo adora falar em “estado forte”. A ministra Dilma Rousseff, que almeja a Presidência, quer um “estado forte”, mote também presente nos preparativos de sua campanha. Ela critica o “estado mínimo”. Lula faz o mesmo desde o primeiro mandato, como no discurso de Ouro Preto em 21 de abril de 2003.

E, como veremos mais abaixo, Maílson está louco para entrar nesse time.

Ali, o presidente aludiu a duas ideias que “revelaram sua inconsistência e estão sendo superadas em boa parte do mundo”. E sentenciou: “A primeira é que o Estado nacional deve ser mínimo e, em consequência, fraco; a segunda é que tudo pode ser deixado por conta do mercado, que resolve automaticamente todos os problemas”.

O que Lula fala nos seus discursos só interessa à imprensa, que assim tem algum assunto para preencher suas páginas.  Ninguém mais presta atenção.  Discurso de político nunca é igual aos seus atos, que são o que realmente nos interessa.  Adiante.

A primeira afirmação não se comprova. O “estado mínimo” é proposta apenas de libertários quem têm fé cega no mercado. É o caso do deputado republicano Ron Paul, que em livro recente (End the Fed) prega a extinção do banco central americano. O padrão-ouro voltaria. A emissão de moeda seria tarefa do mercado.

Pelo explícito tom sarcástico, Maílson é daqueles que acham que uma instituição estatal, uma vez criada, torna-se sagrada e indelével.  Mais ainda: ela passa a fazer parte da história natural.

Pedir a abolição de uma entidade como um banco central, por exemplo, é sinônimo de insanidade.  Maílson parece achar que um banco central é algo que existe desde que o mundo é mundo; desde os tempos do homem-de-neanderthal já havia um banco central imprimindo dinheiro para ajudar o Homo a fazer facas de pedra e a caçar macacos.  Um banco central, portanto, é um inquestionável elemento da natureza, que sempre existiu, e que apenas um louco varrido com Ron Paul acha que deve deixar de existir.

Nos EUA não existia um banco central até 1913, e a economia crescia consistentemente, sem sobressaltos, e com preços decrescentes.  O poder de compra da moeda aumentava com o tempo, ao contrário de hoje.  Recessões eram fenômenos raros, que duravam no máximo um ano.  Após a criação do Fed, passou a haver pelo menos uma recessão por década, sendo que todas elas normalmente se estendem por mais de um ano, são severas, e sempre vêm acompanhadas de aumento de preços.

No Brasil, o BC foi criado em dezembro de 1964.  Desde então ele já causou hiperinflação (fenômeno até então desconhecido desde a chegada das caravelas), década perdida, aumento da pobreza e aprofundamento das desigualdades (não que a desigualdade de renda em si seja algo ruim.  Ao contrário, em uma sociedade livre, a desigualdade de renda é algo inevitável.  Ela é reflexo do mérito individual e do esforço.  O problema é quando a desigualdade ocorre em decorrência de manipulações monetárias).

Hoje, por estar numa fase menos voraz, comemoramos quando o índice de inflação fica próximo de 4,5% – o que significa que, em um ano, aquele bem que custava R$10.000 passou a custar R$10.450, quase que um salário mínimo a mais.  Em 2008, o índice foi de 5,9%.  Na Suíça, essa taxa seria pornográfica.  Aqui, ela reflete a “seriedade e o empenho da equipe econômica”.

A segunda afirmação é falsa. Ninguém com tutano crê que o mercado resolve tudo. Equivaleria a abolir o estado. Isso era ideia de anarquistas e de Karl Marx. Os primeiros consideravam o estado criador de problemas e desnecessário. Para Marx, assim que a luta de classes terminasse e elas desaparecessem, o estado perderia a razão de existir.

Ao dizer que abolir o estado “era ideia de anarquistas e de Karl Marx”, Maílson demonstra que não leu Marx.  Se leu, não entendeu – ou não soube interpretar.

A teoria defendida por Marx era sem pé nem cabeça.  Ele dizia que, para abolir o estado, era necessário antes maximizá-lo.  A ideia era que, quando tudo fosse do estado, não haveria mais um estado como entidade distinta da sociedade; se tudo se tornasse propriedade do estado, então não haveria mais um estado propriamente dito, pois sociedade e estado teriam virado a mesma coisa, uma só entidade – e, assim, todos estariam livres do estado.

Ora, veja que raciocínio maravilhoso!  E Maílson acreditou ser possível isso.  Ou seja: se algum indivíduo dominar completamente tudo o que pertence a Maílson, dominando inclusive seu corpo e seus pensamentos, então Maílson estará completamente livre, pois não mais terá qualquer noção de liberdade – afinal, é exatamente a ausência de qualquer noção de liberdade que o fará se sentir livre.  Uma maravilha.

Portanto, Maílson deixou claro que realmente acredita na teoria marxista de que maximizar o estado gera a sua abolição.  Aliás, qualquer um que acredite que Marx defendia a abolição do estado está na realidade acreditando na teoria acima.

A proposta de um estado mínimo jamais vingou. Mesmo na Inglaterra de Margaret Thatcher, que promoveu profunda reforma do estado, os gastos sociais se expandiram. O estado de bem-estar social continuou grande e importante, e sobreviveu à restauração do ideário liberal pelos conservadores britânicos.

Margaret Thatcher nunca defendeu o estado mínimo.  Suas propostas eram claras: reduzir a alíquota máxima do imposto de renda (de 70 para 50%, um corte estupefante), diminuir o poder dos sindicatos, privatizar as estatais ineficientes, desburocratizar a economia britânica (que parecia um cartório soviético), cortar gastos (o que nunca aconteceu, como o próprio reconhece) e controlar a inflação, que estava em dois dígitos.  Só.  Um partido social-democrata francês poderia fazer essas mesmas propostas sem causar muito susto.

Em momento algum ela falou em desregulamentar a saúde estatal, a educação estatal, a infraestrutura estatal, a previdência estatal.  Nem os correios ganharam concorrência (o monopólio só foi quebrado em 2006).  Foi prometida uma reforma no estado de bem-estar social, e ela ocorreu: criou-se uma burocracia para ensinar alguns empregos específicos para os britânicos, na qual todos eram pagos regiamente pelo estado.

Porém, basta a mulher privatizar a British Airways e a British Telecom, e todo mundo já fica indócil.

“Estado forte” e “estado fraco” podem ter distintos significados. No Haiti, o estado é fraco para exercer funções básicas, como se viu no recente terremoto. Era forte para oprimir na ditadura de François Duvalier (1957-1971), quando os tontons macoutes intimidavam ou matavam. O estado totalitário é forte na capacidade de tiranizar.

Não obstante, o estado mais rico e poderoso do mundo também não conseguiu “exercer suas funções básicas” para salvar a população de Nova Orleans após o Katrina.  Pior ainda: há relatos de que agências governamentais americanas impediram o acesso à cidade de socorro privado, pois queriam garantir para si o monopólio da caridade.  O resultado foi aquele.

Portanto, se o estado mais poderoso do mundo foi incapaz de ajudar cidadãos após um furacão, é óbvio que o estado (“forte” porém “fraco”, segundo Maílson) do pobre Haiti também não poderia ajudar em um terremoto de 7 graus na escala Richter.  Ambos – o rico e o pobre – se mostraram incapazes da tarefa de salvar seus contribuintes.  Logo, não há lógica nesse parágrafo.

O estado moderno resultou da Paz de Vestfália, o período que se seguiu aos tratados europeus de 1648 e ao consequente fim da Guerra dos Trinta Anos. Detém o monopólio da violência e do poder de tributar, e tornou-se norma na Europa (e depois no mundo).

Bom, pelo menos foi uma descrição honesta.

Esse estado tem soberania sobre o território. Garante a ordem, a segurança e o respeito ao direito de propriedade e aos contratos. Defende a concorrência no mercado. Regula o sistema financeiro, os monopólios e os oligopólios. É relevante na educação, na ciência e na tecnologia. É o verdadeiro estado forte, base do capitalismo contemporâneo. Mais tarde, tornou-se fundamental na área social, particularmente em previdência e saúde.

Um estado com todas essas atribuições não pode ser forte sem ser ao mesmo tempo fraco.  Não dá pra garantir eficientemente ordem, segurança e respeito à propriedade (nem vou entrar aqui no princípio de que a tributação, em qualquer nível, já seria uma flagrante violação da propriedade) e, ao mesmo tempo, ser relevante na educação, na ciência, na tecnologia, na saúde e na previdência.  Por exemplo, o que é um estado relevante na educação?  É aquele que determina até os currículos de cada escola?  E na ciência e na tecnologia?  É aquele que determina o que dever ser pesquisado e construído?  Falar que a função seria apenas financiar pesquisa não faz sentido; afinal, como alguém financia sem cobrar resultados?  Como fazer isso tudo e ainda cuidar bem da saúde?  Como gerir bem algo tão complexo quanto a previdência, e ainda cuidar da segurança?  Como fazer tudo isso e ainda garantir que todos os contratos serão honrados?

Um estado que faz isso tudo não faz bem nada disso.  Sendo assim, o estado forte preconizado por Maílson nada mais é que um estado fraco, porém voraz.  Um monstro que necessita de uma enorme e soviética burocracia para gerenciar todos os seus empreendimentos.

E é essa contradição que Maílson defende.

No século XIX, a Inglaterra, beneficiária dessa realidade, rompeu a estagnação malthusiana. Enriqueceu rapidamente. A Europa continental buscou o mesmo via intervenção estatal. Empresas estatais, crédito oficial, protecionismo e investimentos em infraestrutura reproduziram o papel exercido naturalmente pelas instituições inglesas. No século XX, foi a vez da América Latina e da Ásia.

Foi no final do século XIX que começou o declínio do Império Britânico.  Maílson não liga esse declínio às políticas adotadas.  Ele deve achar que a Inglaterra perdeu o poder em coisa de no máximo quatro anos; ele não acha que nações poderosas levam décadas para se esfacelar em consequência de más políticas (quanto mais rica uma nação, maior a sua acumulação de capital, o que exige mais tempo para que todo ele seja depredado).

Quanto a Europa, América Latina e Ásia, Maílson dá sua opinião logo abaixo

Essa ação promoveu desenvolvimento, mas teve seus defeitos. Em muitos países, burocratas foram capturados pelos segmentos beneficiados. Surgiu um capitalismo de compadres, enquanto políticas industriais davam poder de mercado às empresas eleitas, prejudicando a produção e os consumidores.

Dizer que essa ação “promoveu desenvolvimento, mas teve seus defeitos” é uma ótima maneira de ficar em cima do muro, blindado de qualquer crítica e ainda poder clamar que a análise é isenta.  Mas a pergunta ainda exige resposta: como é possível afirmar que o desenvolvimento se deu por causa dessas políticas e não apesardelas?  E os defeitos, foram causados por um excesso dessas políticas ou pela escassez delas?

Ademais, esse fenômeno do capitalismo de compadres existe hoje em escala ainda maior em absolutamente todos os países que continuam seguindo esse modelo (dentre eles, o Brasil) – sendo impossível, portanto, afirmar que é possível adotar esse modelo e se beneficiar do lado positivo ao mesmo tempo em que se pode evitar o negativo.

O desafio era saber quando rever a ação do estado e atribuir a liderança ao mercado. Assim o fizeram a Alemanha, o Japão e o Chile. Em outros lugares, grupos de interesse e visões ideológicas inibiram a mudança, em prejuízo do ritmo de desenvolvimento.

De fato, esses foram os três únicos países a reformarem seu modelo, embora o que Chile e Alemanha fizeram em quase nada se assemelha ao que fez o Japão.  Com efeito, como disse Hans-Hermann Hoppe, “na recente história do Ocidente, houve apenas dois exemplos claros onde os poderes do governo central foram de fato reduzidos, mesmo que apenas temporariamente, como resultado de uma catástrofe: na Alemanha Ocidental pós-Segunda Guerra Mundial sob o comando do Chanceler Ludwig Erhard, e no Chile sob o General Pinochet.”

Mas OK, essa estrofe não contém erros substanciais.

O Brasil chegou a esse ponto por volta dos anos 1980 e começou a revisão, que se acelerou após o Plano Real. A colheita dos respectivos frutos se iniciou com Fernando Henrique e se ampliou na era Lula, mas este praticamente interrompeu o processo.

Aqui, Maílson, muito modestamente, praticamente dando uma piscadinha de olho, faz uma alusão à sua passagem pelo governo já no fim da década, deixando implícito que ele, de alguma maneira, foi uma voz de sanidade em meio à catástrofe do governo Sarney, sendo um dos responsáveis pelo início da revisão.  Mas qual revisão?  A real mudança na economia veio apenas no governo Collor e sua tímida abertura às importações.

O estado forte de Lula e Dilma seria aquele em que a burocracia escolhe os vencedores e lhes concede privilégios, em nome de um nacionalismo démodé e do “desenvolvimentismo”. Para eles, a crise atual justificaria a volta do dirigismo estatal.

Esse tipo de estado em que “a burocracia escolhe os vencedores e lhes concede privilégios” é exatamente o tipo de estado que vigora no modelo de “estado forte” preconizado por Maílson.  A partir do momento em que o estado – e aqui eu vou fazer uma concessão minarquista – deixa de mexer apenas com segurança e judiciário, e passa a se intrometer em vários aspectos da economia – inclusive por meio de um banco central, que Maílson acredita ser um dom da natureza -, é impossível que ele não seja capturado por grupos de interesse, que irão utilizá-lo para benefício próprio e em detrimento da concorrência.  Isso infelizmente é uma inevitabilidade, variando apenas o grau de impudência com que as coisas são feitas: explícitas na América Latina, sofisticadas na Escandinávia, indecorosas nos EUA, corriqueiras na Europa.

Se Maílson acha que é possível haver um estado forte e provedor e que ao mesmo tempo não saia distribuindo privilégios e benefícios a grandes empresas – algo que não só a praxeologia, como também qualquer teoria econômica minimamente realista demonstra ser inevitável -, ele ainda precisa mostrar pelo menos um exemplo de onde isso ocorreu.

A crise demandou maiores gastos públicos e vai gerar uma nova regulação do sistema financeiro, mas não a ressurreição dos mortos do velho intervencionismo.

Todos os países que tentaram solucionar a crise via aumento de gastos – política que Maílson defende, aliás – se estreparam.  EUA, Reino Unido, Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda estão com déficits enormes, dívidas em relação ao PIB surreais, e orçamentos estraçalhados.

O Brasil, apesar da retórica do governo, não apresentou aumento substancial de gastos (houve até uma ligeira redução de 0,2% no segundo trimestre de 2009, ainda nos estertores da crise) e permitiu que preços e salários caíssem, o que amenizou em muito os efeitos deletérios da recessão.

A Alemanha não aumentou gastos e já está fora de perigo.  Idem para o Canadá.  Na Austrália, então, nem houve recessão.  E todos esses seguiram políticas opostas às recomendadas por Maílson.  Ele defende intervencionismo e depois alerta para o perigo de mais intervencionismos futuros.

 

Concluindo: Maílson ainda vive no mundo da fantasia.  Além de achar que bancos centrais são elementos tão naturais quanto o ar, ele acredita ser possível ter um estado cuidando de tudo um pouquinho, fazendo tudo muito bem e sem sofrer qualquer tipo de influência ou captura de grupos de interesse.  E aqueles que querem menos do que isso são lunáticos “que têm fé cega no mercado”.

Só que por outro lado Maílson desconfia de Dilma, que pode ser um pouquinho mais crente no estado do que ele – e isso até Maílson reconhece que já seria demais.

 

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