Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo

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Capítulo 7 – A Justificativa Ética do Capitalismo e Por que o Socialismo é Moralmente Indefensável

Os quatro capítulos anteriores forneceram razões sistemáticas e evidências empíricas para a tese de que o socialismo como um sistema social que não é inteiramente baseado na “teoria natural da propriedade” (a regra do primeiro-que-usa é o primeiro-que-possui) que caracteriza o capitalismo deve ser necessariamente, e de fato é, um sistema inferior no que se refere à produção de riqueza e ao padrão de vida médio. Isso pode satisfazer aquele que acredita que a riqueza econômica e os padrões de vida são os critérios mais importantes na hora de avaliar uma sociedade — e não pode haver dúvidas de que, para muitos, o padrão de vida é uma questão da mais alta importância — e certamente por isso é necessário manter em mente todo o raciocínio econômico exposto anteriormente. No entanto, há pessoas que não dão muita importância à riqueza econômica e que qualificam outros valores como mais elevados — felizmente para o socialismo, pode-se dizer, porque dessa forma ele pode silenciosamente esquecer a sua reivindicação original de ser capaz de trazer mais prosperidade à humanidade e, em vez disso, recorrer à afirmação completamente diferente, mas ainda assim mais inspiradora, de que embora o socialismo possa não ser a chave para a prosperidade, significaria justiça, equidade e moralidade (todos termos usados aqui como sinônimos). E ainda pode argumentar que uma compensação entre eficiência e justiça, uma troca de “menos riqueza” por “mais justiça”, é justificada, uma vez que justiça e equidade são fundamentalmente mais valiosas do que riqueza econômica.Essa alegação será estudada detalhadamente neste capítulo. E ao fazê-lo, serão analisadas duas afirmações separadas, mas correlacionadas: (1) a afirmação feita particularmente por socialistas marxistas e social-democratas, e, em menor grau, pelos conservadores socialistas, de que é possível formular um argumento a favor do socialismo baseado em princípios por causa do valor moral de seus princípios e, mutatis mutandis, que o capitalismo não pode ser moralmente defendido; e (2) a afirmação do socialismo empírico de que as afirmações normativas (“deveria” ou “tem que”) — uma vez que não se relacionam unicamente aos fatos, nem simplesmente declaram uma definição verbal, e, portanto, não são afirmações analíticas nem empíricas — não são realmente afirmações, pelo menos não afirmações que possam ser chamadas de “cognitivas” num sentido mais amplo, mas meras “expressões verbais” usadas para expressar ou despertar sentimentos (tais como “Opa!” ou “Rrrrrr”).[1]

A segunda afirmação, a empírica, ou pretensão “emotivista”, como é chamada a sua posição aplicada ao campo da moral, será tratada em primeiro lugar, dada a sua maior abrangência.[2] A posição emotivista é derivada da aceitação da afirmação central empírica-positivista de que a distinção dicotômica entre as afirmações empírica e analítica é de natureza totalmente inclusiva; isto é, qualquer afirmação, seja ela qual for, deve ser empírica ou analítica, nunca podendo ser ambas ao mesmo tempo. Essa posição, como veremos, acaba por ser auto-destrutiva se fizermos uma análise mais minuciosa, assim como o empirismo em geral acaba por ser auto-destrutivo.[3] Se o emotivismo é uma posição válida, então, a sua proposição básica sobre as afirmações normativas deve, por si só, ser analítica ou empírica, ou então deve ser uma expressão das emoções. Se for tida como analítica, será, então, um mero subterfúgio verbal, sem nada a dizer sobre qualquer coisa real, apenas definindo um som por outro, e o emotivismo seria, dessa forma, uma doutrina vazia. Se, em vez disso, for tida como empírica, a doutrina não teria qualquer peso à medida que sua proposição central poderia muito bem estar errada. Em todo o caso, certa ou errada, seria apenas uma proposição demonstrando um fato histórico, ou seja, como certas expressões foram usadas no passado, o que por si só não fornece qualquer razão pela qual seria este também o caso no futuro e, portanto, por que se deveria ou não procurar afirmações normativas que são mais do que expressões de emoções que se pretendem justificáveis. E a doutrina emotivista também perderia todo o seu peso se a terceira alternativa fosse adotada e se uma afirmação do tipo “uau!” fosse declarada como seu princípio central. Pois, se este fosse o caso, não haveria então qualquer razão pela qual se deveria relacionar e interpretar de certa forma determinadas afirmações e, portanto, se os próprios instintos e sentimentos de uma pessoa não coincidissem com o “oba!” de outra, não haveria nada que pudesse impedi-la de seguir os seus próprios sentimentos. Assim como uma afirmação normativa não seria mais do que o ladrar de um cão, a posição emotivista não seria mais do que comentar latindo sobre o ato de ladrar.

Por outro lado, se a afirmação central do empirismo-emotivismo, ou seja, a de que as afirmações normativas não têm significado cognitivo, mas são simples expressões de sentimentos, for por si só considerada uma afirmação significativa para transmitir que se deveria pensar em todas as afirmações que não são analíticas ou empíricas como meros símbolos de expressão, a posição emotivista então se torna completamente contraditória. Assim, essa posição deve considerar, pelo menos implicitamente, que determinadas ideias, ou seja, as relativas às afirmações normativas, não podem ser simplesmente compreendidas e dotadas de significados, mas podem ser justificativas dadas enquanto afirmações com significados específicos. Consequentemente, deve-se concluir que o emotivismo titubeia, porque se fosse verdade, não se poderia, então, nem mesmo dizer e atribuir significado ao que se diz — simplesmente não existiria como uma posição que pudesse ser discutida e avaliada no que tange à sua validade. Mas se for uma posição significativa que possa ser discutida, este fato então desmente a sua própria premissa básica. Além disso, deve-se observar que o fato de que esta é realmente uma posição significativa não pode nem mesmo ser refutado, como não se pode comunicar e argumentar que não se pode comunicar e argumentar. No entanto, isto deve ser pressuposto de qualquer posição intelectual, que é dotada de significado e que pode ser debatida em relação ao seu valor cognitivo, simplesmente porque é apresentada numa linguagem e comunicada. Argumentar o contrário significaria admitir implicitamente a sua validade. Somos obrigados, então, a aceitar a abordagem racionalista em relação à ética pela mesma razão que se obrigou a adotar uma epistemologia racionalista em vez de uma epistemologia empírica.[4] No entanto, com o emotivismo sendo assim rejeitado, ainda estou muito longe, ou assim parece, do meu objetivo definido, que eu divido com os socialistas marxistas e conservadores, de demonstrar que pode ser formulado um argumento baseado em princípios a favor ou contra o socialismo ou o capitalismo. O que eu consegui até agora foi chegar à conclusão de que se as afirmações normativas são ou não cognitivas isto é, por si só, um problema cognitivo. No entanto, isto ainda parece ser muito diferente de provar que as propostas de normas efetivas podem ser realmente expostas como sendo válidas ou inválidas.

Felizmente, essa impressão está errada e já se conseguiu muito mais aqui do que se poderia imaginar. O argumento anterior nos mostra que qualquer afirmação da verdade — afirmação ligada a qualquer proposição que seja verdadeira, objetiva ou válida (todos termos usados aqui como sinônimos) — é e deve ser feita e resolvida no curso de uma argumentação. E uma vez que não se pode refutar que isto é assim (não se pode comunicar e argumentar que não se pode comunicar e argumentar) e se deve considerar que todo mundo sabe o que significa alegar que algo é verdadeiro (não se pode negar esta afirmação sem afirmar sua negação como sendo verdadeira), tal estrutura foi sagazmente chamada de o “a priori da comunicação e da argumentação”.[5]

Agora, argumentar nunca se baseia apenas em proposições flutuando livremente que alegam ser verdadeiras. Antes, também a argumentação é sempre uma atividade. Mas considerando que as alegações de verdade são levantadas e decididas numa argumentação e que a argumentação, além de tudo o que é dito durante o seu desenvolvimento, é um assunto prático, deduz-se que as normas intersubjetivamente significativas que devem existir — especificamente aquelas que realizam alguma ação numa argumentação —tem um status cognitivo especial em que elas são pré-condições práticas de objetividade e verdade.

Portanto, chegamos à conclusão de que as normas devem realmente ser consideradas justificáveis enquanto válidas. É simplesmente impossível argumentar o contrário porque a capacidade para argumentar, de fato, pressupõe a validade daquelas normas que constituem a base de qualquer argumentação.[6] Portanto, a resposta à questão de quais fins podem ou não ser justificados é deduzida do conceito de argumentação. E, com isso, o papel peculiar da razão em determinar o conteúdo da ética também recebe uma descrição precisa. Em contraste com o papel da razão em estabelecer leis empíricas da natureza, a razão pode alegar produzir resultados na determinação de leis morais, que podem ser mostradas como sendo válidas a priori. Isto só torna explícito o que já está implícito no conceito de argumentação; e ao analisar qualquer proposta de norma efetiva, sua tarefa está confinada a analisar se é ou não logicamente consistente com a própria ética que o proponente deve pressupor como válida na medida em que ele é capaz de fazer, sob qualquer condição, a sua proposta.[7]

Mas o que é a ética implícita na argumentação cuja validade não pode ser refutada, pois refutá-la exigiria implicitamente pressupô-la?

De forma muito frequente tem sido observado que a argumentação significa uma proposição que reivindica uma aceitabilidade universal, ou, se uma norma for proposta, que seja “universalizável”. Aplicada à propositura de normas, esta é a ideia, como formulada na Regra de Ouro da ética ou no Imperativo Categórico Kantiano, de que somente aquelas normas que podem ser justificadas é que podem ser formuladas como princípios gerais que são válidos para todos sem exceção.[8] De fato, como a argumentação implica que todos que possam entender um argumento devem, em princípio, ser capazes de ser convencidos por ele devido à sua força argumentativa, o princípio de universalização da ética pode agora ser entendido e explicado como fundamentado na mais ampla “comunicação e argumentação a priori“. Porém, o princípio da universalização fornece apenas um critério puramente formal para a moralidade. Na verdade, comparadas com esse critério, pode se mostrar que todas as propostas de normas válidas que especificariam regras diferentes para diferentes classes de pessoas não podem legitimamente reivindicar serem universalmente aceitáveis como normas justas, a menos que a distinção entre as diferentes classes de pessoas fosse de tal forma que não implicasse em discriminação, mas que pudesse ser aceita novamente por todos como fundada na natureza das coisas. Mas enquanto algumas normas podem não passar pelo teste da universalização, se for dada atenção suficiente à sua formulação, as normas mais ridículas, e o que é logicamente ainda mais relevante, até mesmo as normas abertamente incompatíveis poderiam facilmente e igualmente passar no teste. Por exemplo, “todo mundo tem que ficar bêbado aos domingos ou serão multados” ou “qualquer um que beba álcool será punido” são ambas regras que não permitem discriminação entre grupos de pessoas e, portanto, poderiam ambas alegar que satisfazem a condição de universalização.

Claramente, portanto, o princípio da universalização por si só não forneceria qualquer conjunto positivo de normas que pudesse ser demonstrada como justificada. No entanto, há outras normas positivas contidas na argumentação, além do princípio da universalização. A fim de reconhecê-las, é necessário apenas chamar a atenção para três fatos relacionados. Primeiro que a argumentação não é somente uma questão cognitiva, mas também prática. Segundo, que a argumentação, como uma forma de ação, inclui o uso do recurso escasso do corpo de alguém. E terceiro, que a argumentação é uma forma de interação livre de conflito. Não no sentido de que há sempre concordância sobre o que foi dito, mas no sentido de que uma vez que a argumentação está em desenvolvimento é sempre possível concordar pelo menos com o fato de que há uma discordância sobre a validade do que foi dito. E dizer isto não é nada mais do que um reconhecimento mútuo de que o controle exclusivo de cada pessoa sobre o seu próprio corpo deve estar pressuposto enquanto houver argumentação (observe novamente que é impossível negar este fato e afirmar que sua negação seja verdadeira sem ter que implicitamente admitir a sua verdade).

Consequentemente, teríamos que concluir que a norma contida na argumentação é que todo mundo tem o direito de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo como seu instrumento de ação e cognição. Somente se houver pelo menos um reconhecimento implícito do direito de cada indivíduo sobre a propriedade de seu próprio corpo é que pode haver argumentação.[9] Apenas enquanto esse direito for reconhecido é possível para alguém concordar com aquilo que foi dito num argumento e, consequentemente, aquilo que foi dito pode ser validado, ou é possível dizer “não” e concordar apenas com o fato de que há discordância. Realmente, qualquer um que tentasse justificar qualquer norma já teria que pressupor o direito de propriedade de seu corpo como uma norma válida, simplesmente para dizer “isto é o que eu afirmei como sendo verdadeiro e objetivo”. Qualquer pessoa que tentasse contestar o direito de propriedade sobre o seu próprio corpo ficaria preso numa contradição, à medida em que argumentar dessa forma e reivindicar seu próprio argumento como sendo verdadeiro já seria implicitamente aceitar essa norma como sendo válida.

Portanto, pode-se afirmar que toda vez que uma pessoa alega que alguma afirmação pode ser justificada ela considera, pelo menos implicitamente, a norma seguinte para ser justificada: “Ninguém tem o direito de agredir o corpo de outra pessoa sem permissão e dessa forma delimitar ou restringir o controle de outrem sobre o seu próprio corpo”. Esta regra está contida no conceito de justificação enquanto justificação argumentativa. Justificar significa justificar sem ter que depender de coerção. De fato, se é possível formular o contrário dessa regra, ou seja, que “todo mundo tem o direito de agredir outra pessoa sem permissão” (uma regra que, a propósito, passaria no teste formal do princípio da universalização!), então é fácil ver que essa regra não é, e nunca poderia ser, defendida numa argumentação. Fazê-lo exigiria pressupor exatamente a validade do oposto disso, ou seja, o supracitado princípio da não-agressão.

Com essa justificação da norma de propriedade em relação ao corpo de uma pessoa, pode parecer que não se obteve muita coisa, enquanto os conflitos sobre os corpos, para os quais o princípio da não-agressão formula uma solução universalmente justificável de forma a tentar impedi-los, representam apenas uma pequena parte de todos os conflitos possíveis. Porém, essa impressão não é correta. Certamente, as pessoas não vivem apenas de ar e de amor. Elas também precisam de um número maior ou menor de outras coisas, simplesmente para sobreviver — e, obviamente, só aquele que sobrevive pode manter uma argumentação, quiçá levar uma vida confortável. Com relação a todas as outras coisas, as normas também são necessárias, uma vez que poderiam surgir avaliações conflituosas acerca do seu uso. Mas, de fato, qualquer outra norma deve ser logicamente compatível com o princípio da não-agressão para ser ela própria justificada e, mutatis mutandis, toda norma que se mostrasse incompatível com esse princípio teria que ser considerada inválida. Além do mais, enquanto as coisas com relação às quais as normas têm que ser formuladas são bens escassos — assim como o corpo de alguém é um bem escasso, e assim como só é necessário formular normas porque os bens são escassos e não porque eles sejam tipos específicos de bens escassos —, as especificações do princípio da não-agressão, concebido como norma especial da propriedade que se refere a um tipo específico de bens, já devem conter aquelas de uma teoria geral da propriedade.

Considerarei primeiro essa teoria geral da propriedade como um conjunto de regras aplicáveis a todos os bens com o propósito de ajudar a evitar todos os conflitos possíveis por meio de princípios uniformes, e irei em seguida demonstrar como essa teoria geral está contida no princípio da não-agressão. Uma vez que segundo o princípio da não-agressão uma pessoa pode fazer com o seu corpo tudo aquilo que quiser na medida em que, desse modo, ela não agrida o corpo de outra pessoa, essa pessoa poderia usar outros meios escassos, assim como usar o seu próprio corpo, desde que essas outras coisas já não tenham sido apropriadas por alguém e continuem num estado natural sem dono. Enquanto os recursos escassos são visivelmente apropriados — tão logo alguém “mistura o seu trabalho”, para usar a frase de John Locke,[10] com esses recursos e há traços objetivos dessa ação — , a propriedade, ou seja, o direito de controle exclusivo, só pode ser adquirida por uma transferência contratual de títulos de propriedade de um proprietário anterior para o atual, e qualquer tentativa de delimitar unilateralmente esse controle exclusivo de proprietários anteriores ou qualquer transformação não solicitada das características físicas dos meios escassos em questão é, numa analogia estrita com as agressões contra os corpos de terceiros, uma ação injustificável.[11]

A compatibilidade desse princípio com o da não-agressão pode ser demonstrada por meio de um argumentum a contrario. Em primeiro lugar, deveria ser observado que se ninguém tiver o direito de adquirir e controlar nada, exceto o seu próprio corpo (uma regra que passaria no teste formal do princípio da universalização), nós deixaríamos então de existir e o problema da justificação das afirmações normativas (ou, para essa questão, qualquer outro problema de interesse desta obra) simplesmente não existiria. A existência desse problema só é possível porque estamos vivos e a nossa existência deve-se ao fato de que não aceitamos, e realmente não podemos aceitar, uma norma que proíba a propriedade de outros bens escassos depois e além do corpo físico de alguém. Consequentemente, deve ser considerado como existente o direito de adquirir esses bens. Agora, se for assim, e se não se tem o direito de adquirir esses direitos de controle exclusivo sobre as coisas não usadas dadas pela natureza através de seu próprio trabalho, ou seja, ao fazer algo com as coisas com as quais ninguém jamais tinha feito nada antes, e se outras pessoas tivessem o direito de desconsiderar a reivindicação de propriedade de alguém no que se refere a essas coisas com as quais não tinha trabalhado ou que não as havia colocado anteriormente em algum uso específico, isso só seria possível, então, se fosse possível adquirir títulos de propriedade não mediante o trabalho, ou seja, pela definição de uma ligação objetiva intersubjetivamente controlada entre uma determinada pessoa e um recurso escasso específico, mas simplesmente por declaração verbal; por decreto.[12] No entanto, adquirir títulos de propriedade através de declaração é incompatível com o já justificado princípio da não-agressão em relação aos corpos. Por uma razão, se fosse realmente possível adquirir a propriedade por decreto, isso significaria que também seria possível para alguém simplesmente declarar o corpo de outra pessoa como sendo de sua propriedade. Contudo, isso claramente entraria em conflito com a regra do princípio da não-agressão que estabelece uma nítida distinção entre o corpo de alguém e o corpo de outrem. E essa distinção só pode ser feita de forma clara e sem ambiguidades porque para os corpos, como para nenhum outro, a separação entre “meu” e “seu” não é baseada em declarações verbais, mas na ação. (A propósito, uma decisão entre reivindicações declaratórias rivais não pode ser tomada, a menos que haja algum outro critério objetivo que não uma declaração). A separação é baseada na observação de que alguns recursos escassos específicos foram, de fato, feitos como uma expressão ou materialização da vontade de alguém ou, como pode ser o caso, da vontade de outrem. Além disso, e ainda mais importante, dizer que a propriedade é adquirida não através da ação, mas mediante uma declaração, envolve uma contradição prática, pois, desse modo, ninguém poderia dizer e declarar, a menos que apesar do que foi realmente dito, seu direito de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo enquanto seu próprio instrumento de dizer qualquer coisa já tivesse, de fato, sido pressuposto.

Demonstramos agora que o direito de apropriação original através de ações é compatível com, e está incluído no, princípio da não-agressão como pressuposto logicamente necessário da argumentação. Indiretamente, é claro, foi também demonstrado que qualquer regra que especifique direitos diferentes, tal como uma teoria socialista da propriedade, não pode ser justificada. Porém, antes de iniciar uma análise mais detalhada dopor que toda ética socialista ser indefensável — uma discussão que deveria lançar algumas luzes adicionais sobre a importância de algumas das condições da teoria capitalista da propriedade “natural” —, devem ser feitas algumas observações sobre o que está ou não implícito na classificação dessas últimas normas como justificáveis.

Ao fazer essa afirmação, não é necessário alegar ter deduzido um “dever” a partir de um “é”. De fato, pode-se prontamente apoiar a visão geralmente aceita de que o abismo entre “dever” e “é” é logicamente intransponível.[13] No entanto, classificar dessa forma as regras da teoria natural da propriedade é uma questão puramente cognitiva. Não mais resulta da classificação do princípio fundamental do capitalismo como sendo “justo” ou “correto”, de acordo com o qual se deve agir e deduz-se o conceito de validade ou verdade pelo qual se deve sempre lutar. Dizer que esse princípio é correto também não exclui a possibilidade das pessoas proporem ou até mesmo de imporem regras que são incompatíveis com ele. Na verdade, no que tange às normas, a situação é muito semelhante ao de outras disciplinas de investigação científica. O fato de que, por exemplo, determinadas afirmações empíricas são justificadas ou justificáveis e de que outras não são, não significa que todo mundo só defende afirmações válidas objetivas. Em vez disso, as pessoas podem estar erradas, até mesmo intencionalmente. Mas a distinção entre objetivo e subjetivo, entre verdadeiro e falso, não perde nada de seu significado por causa disso. Mais propriamente, as pessoas que estão erradas teriam que ser classificadas como desinformadas ou intencionalmente mentirosas. O argumento é semelhante no que se refere às normas. Obviamente, há muitas pessoas que não propagam ou impõem normas que podem ser classificadas como válidas de acordo com o significado de justificação que eu apresentei anteriormente. Mas a distinção entre normas justificáveis e não-justificáveis não se desfaz por causa disso, assim como aquela entre afirmações objetivas e subjetivas não se desintegram por causa da existência de pessoas desinformadas ou mentirosas. Em vez disso, e consequentemente, aquelas pessoas que iriam propagar e impor essas diferentes normas inválidas teriam de novo que ser classificadas como desinformadas ou desonestas na medida em que havia sido explicado a elas e realmente deixado claro que suas propostas de normas alternativas ou sanções não poderiam e nunca seriam justificáveis numa argumentação. E haveria mais justificativa por fazê-lo dessa forma no argumento moral do que no argumento empírico, uma vez que a validade do princípio de não-agressão e o do princípio da apropriação original mediante ação, como seu corolário logicamente necessário, deve ser considerada por ser ainda mais básico do que quaisquer tipos de afirmações válidas ou verdadeiras. Pois o que é válido e verdadeiro tem que ser definido como aquilo em que todos agindo de acordo com esse princípio talvez possam concordar. Na realidade, como já foi mostrado, pelo menos a aceitação implícita dessas regras é o pré-requisito necessário para, de qualquer modo, ser capaz de viver e argumentar.[14]

Por qual razão, então, as teorias socialistas da propriedade de quaisquer tipos falham em serem justificáveis como válidas? Em primeiro lugar, deve-se observar que todas as versões realmente praticadas do socialismo e a maioria de seus modelos propostos teoricamente também não passariam pelo primeiro teste formal do princípio da universalização e, por este fato, fracassariam por si mesmas! Todas essas versões contêm normas dentro de seu enquadramento de regras legais que seguem a fórmula “algumas pessoas podem e algumas pessoas não podem”. Porém, essas regras que especificam direitos ou obrigações diferentes para classes diferentes de pessoas não têm chance, por razões puramente formais, de serem aceitas como justas por cada participante potencial de uma argumentação. A não ser que a distinção feita entre classes diferentes de pessoas passe a ser aquela que é aceitável por ambos os lados como fundamentada na natureza das coisas, essas regras não seriam aceitáveis porque significariam que um grupo seria recompensado por privilégios legais às custas de discriminações complementares contra outro grupo. Por esse motivo, algumas pessoas, tanto aquelas que são autorizadas a fazer algo quanto aquelas que não são, poderiam não concordar que essas regras fossem justas.[15] Uma vez que a maioria dos tipos de socialismo, a exemplo dos praticados e defendidos, dependem da imposição de regras tais como “algumas pessoas têm a obrigação de pagar impostos e outras têm o direito de consumi-los”, ou “algumas pessoas sabem o que é bom para você e estão autorizadas a ajudá-lo a conseguir essas supostas bênçãos, mesmo que você não as queira, mas você não está autorizado a saber o que é bom para elas e, consequentemente, ajudá-las”, ou “algumas pessoas têm o direito de determinar quem tem muito de algo e quem tem pouco, e outros têm a obrigação de obedecer”, ou, de forma ainda mais clara, “a indústria de computadores deve pagar para subsidiar os fazendeiros”, “aqueles que têm filhos devem subsidiar os que não têm” etc., ou vice-versa, todas essas regras podem ser facilmente descartadas quanto a serem sérias candidatas à alegação de integrarem uma teoria de normas válidas na qualidade de normas de propriedade, porque todas elas indicam, pela sua própria formulação, que não são universalizáveis.

Mas o que está errado com as teorias socialistas da propriedade quando se trata de, e realmente existe, uma teoria formulada que contém normas exclusivamente universalizáveis do tipo “ninguém está autorizado a” ou “todo mundo pode”? Mesmo assim, e isso é o que, de forma mais ambiciosa, foi demonstrado indiretamente nos parágrafos anteriores e deve ser argumentado diretamente que o socialismo nunca poderia esperar provar a sua validade, não mais por razões formais, mas por causa de suas especificações materiais. De fato, enquanto as formas de socialismo, que podem ser facilmente refutadas em relação à sua pretensão de validade moral sobre fundamentos formais simples, poderiam, pelo menos, ser praticadas, a aplicação daquelas versões mais sofisticadas que passassem no teste de universalização, por razões materiais, provariam ser fatais: mesmo se tentássemos, elas nunca poderiam ser colocadas em prática.

Das duas especificações relacionadas às normas da teoria natural da propriedade, há pelos menos uma que entraria em conflito com a teoria socialista da propriedade. A primeira especificação é a que, segundo a ética capitalista, define agressão como uma invasão da integridade física da propriedade de outra pessoa.[16] O socialismo, por sua vez, definiria agressão como uma invasão do valor ou da integridade física da propriedade de outrem. O socialismo conservador, devemos relembrar, visava preservar uma dada distribuição de riqueza e de valores, e tentou conduzir aquelas forças que poderiam modificar o status quo sob controle por meio do controle de preços, regulações e controles de comportamento. Claramente, a fim de fazê-lo desse modo, os direitos de propriedade em relação ao valor das coisas deve ser considerado como justificável e uma invasão de valores, mutatis mutandis, deve ser classificada como uma agressão injustificável. Mas não só o conservadorismo utiliza essa ideia da propriedade e da agressão. O socialismo social-democrata também o faz. Os direitos de propriedade em relação aos valores devem ser considerados como legítimos quando o socialismo social-democrata me permite, por exemplo, exigir uma compensação das pessoas cujas chances ou oportunidades afetam negativamente as minhas. E o mesmo é verdadeiro quando uma compensação por se cometer “violência estrutural” ou psicológica — um termo particularmente caro à literatura da ciência política esquerdista — é permitida.[17] Para estar habilitado a solicitar essas compensações, aquilo que foi feito — e que afetou as minhas oportunidades, minha integridade física, meus sentimentos em relação ao que possuo — teria que ser classificado como um ato agressivo.

Por que é injustificável essa ideia de proteger o valor da propriedade? Em primeiro lugar, enquanto cada pessoa pode, pelo menos em princípio, ter o controle total sobre as mudanças que suas ações provocam ou não nas características físicas de algo e, consequentemente, também pode ter o controle total sobre se aquelas ações são ou não justificáveis, o controle sobre se as ações de terceiros afetam o valor da propriedade de outrem não fica com a pessoa que age, mas com as outras pessoas e suas avaliações subjetivas. Assim, ninguém poderia determinar ex ante se as suas ações seriam classificadas como justificáveis ou injustificáveis. Teria que, primeiro, interrogar toda a população para ter certeza de que as ações planejadas por alguém não modificariam as avaliações de outrem em relação à sua própria propriedade. E mesmo assim ninguém poderia agir até que fosse obtida uma concordância universal sobre quem supostamente faria o que e com o que, e quando. Claramente, diante de todos os problemas práticos envolvidos, já se estaria morto há muito tempo e ninguém argumentaria mais nada antes que isso tudo estivesse resolvido.[18] Mas ainda mais decisivo do que isso, a posição socialista sobre a propriedade e a agressão não poderia nem mesmo ser efetivamente argumentada, pois argumentar a favor de qualquer norma, socialista ou não, significa que há um conflito sobre o uso de alguns meios escassos, caso contrário, simplesmente não haveria necessidade de discussão. Porém, a fim de argumentar que existe uma saída para esses conflitos, deve-se pressupor que as ações, para serem realizadas, devem ser autorizadas antes de qualquer acordo ou desacordo efetivo, pois se elas não forem permitidas, não se pode nem mesmo argumentar a respeito disso. Contudo, se alguém pode fazê-lo — e o socialismo também deve considerar que se pode fazer, na medida em que existe como uma posição intelectual debatida —, isto só é então possível por causa da existência de fronteiras objetivas da propriedade, ou seja, fronteiras que cada pessoa pode reconhecer por conta própria enquanto tais, sem ter que concordar antes com qualquer um no que se refere ao sistema de valores e de avaliações de terceiros. Portanto, o socialismo também, apesar daquilo queafirma, deve, de fato, pressupor a existência de fronteiras objetivas da propriedade em vez de fronteiras determinadas por avaliações subjetivas, nem que seja para ter um socialista sobrevivente que possa formular suas propostas morais.

A ideia socialista de proteger o valor em vez da integridade física também falha por uma segunda razão relacionada. Evidentemente, o valor de uma pessoa, por exemplo, no mercado de trabalho ou de casamento pode ser, e realmente é, afetado pela integridade física de outra pessoa ou pelo grau de integridade física. Dessa forma, se quisermos que os valores da propriedade sejam protegidos, teríamos que permitir agressão física contra pessoas. Contudo, se for somente por causa do próprio fato de que as fronteiras de uma pessoa — ou seja, as fronteiras da propriedade de alguém no seu próprio corpo enquanto seu domínio de controle exclusivo no qual outra pessoa não é autorizada a intervir, a não ser que deseje se tornar um agressor — são fronteiras físicas (intersubjetivamente determinadas e não apenas fronteiras subjetivamente imaginadas) nas quais todo mundo pode concordar sobre qualquer coisa de forma independente (e, obviamente, acordo significa um acordo com as unidades independentes de tomada de decisão!). Portanto, somente porque as fronteiras protegidas da propriedade são objetivas, ou seja, estabelecidas e reconhecidas como previamente fixadas por qualquer acordo convencional, pode haver argumentação e, possivelmente, acordo entre as unidades independentes de tomada de decisão. Simplesmente ninguém poderia argumentar qualquer coisa, a não ser que antes sua existência como unidade física independente fosse reconhecida. Ninguém poderia argumentar a favor de um sistema de propriedade que define fronteiras de propriedade segundo uma avaliação subjetiva — como faz o socialismo — porque, simplesmente, ser capaz de formular esse argumento pressupõe que, ao contrário do que diz a teoria, deve-se, de fato, ser uma unidade fisicamente independente a fazê-lo.

A situação não é menos terrível para o socialismo quando nos voltamos para a segunda especificação essencial das regras da teoria natural da propriedade. As normas fundamentais do capitalismo foram caracterizadas não apenas pelo fato de que a propriedade e a agressão fossem definidas em termos físicos; não era menos importante que, além disso, a propriedade fosse definida como propriedade privada individualizada e que o significado da apropriação original — o que evidentemente significa fazer uma distinção entre o antes e o depois —, fosse especificada. É com essa especificação adicional que o socialismo também entra em conflito. Em vez de reconhecer a importância vital da distinção do antes-depois para decidir entre as reivindicações de propriedade conflitantes, o socialismo propõe normas que, na verdade, consideram que a prioridade é irrelevante para se tomar uma decisão e que os retardatários têm tanto direito à propriedade quanto os que chegam primeiro. Claramente, essa ideia está presente quando o socialismo social-democrata, por exemplo, faz com que os proprietários naturais da riqueza e/ou seus herdeiros paguem um imposto que os desafortunados retardatários devem ser capazes de consumir. Essa ideia também está presente, por exemplo, quando o proprietário de um recurso natural é obrigado a reduzir (ou aumentar) a sua exploração atual em benefício da posteridade. Em ambos os casos, só faz sentido fazê-lo quando se considera que a pessoa que acumula primeiro a riqueza ou que usa primeiro os recursos naturais, comete, desse modo, uma agressão contra alguns retardatários. Se não fizeram nada de errado, os retardatários não poderiam fazer essa reivindicação contra os proprietários naturais e os seus herdeiros.[19]

O que está errado com essa ideia de suprimir a distinção antes-depois como sendo moralmente irrelevante? Em primeiro lugar, se os retardatários, ou seja, aqueles que, de fato, nada fizeram com os bens escassos, tivessem realmente tanto direito aos bens quanto os que chegaram primeiro, ou seja, aqueles que fizeram algo com os bens escassos, então, literalmente, ninguém seria autorizado a fazer coisa alguma com o que quer que seja, como se fosse preciso ter todo o consentimento prévio dos retardatários para fazer seja lá o que se quisesse fazer. Realmente, como a posteridade incluiria o filho do filho de alguém — isto é, pessoas que chegaram tão tardiamente que, provavelmente, nunca se poderia perguntá-las — defendendo um sistema legal que não utiliza a distinção antes-depois como parte de sua teoria básica da propriedade é simplesmente absurdo pois implica em defender a morte, mas pressupor a vida para defender qualquer coisa.

Nem nós, nem nossos antepassados, nem nossos descendentes poderiam, sobreviver ou sobreviveriam, e dizer ou argumentar qualquer coisa se tivessem que seguir essa regra. Para que qualquer pessoa — do presente, do passado ou do futuro — pudesse argumentar qualquer coisa deveria ser possível sobreviver agora. Ninguém pode esperar e interromper a ação até que cada um de uma classe indeterminada de retardatários começassem a aparecer e concordar com aquilo que se quer fazer. Em vez disso, na medida em que uma pessoa encontra-se sozinha, ela deve ser capaz de agir, usar, produzir, consumir imediatamente os bens antes de qualquer acordo com pessoas que simplesmente ainda não estão ao redor (e talvez nunca estejam). E na medida em que uma pessoa encontra-se na companhia de outras e há um conflito sobre como usar um dado recurso escasso, ela deve ser capaz de resolver o problema em algum momento definido com um número específico de pessoas em vez de ter que esperar por períodos indeterminado de tempo e um número indeterminado de pessoas. Portanto, para sobreviver, que é pré-requisito para argumentar a favor ou contra qualquer coisa, os direitos de propriedade não podem ser concebidos como sendo atemporais e não-específicos considerando o número de pessoas envolvidas. Em vez disso, devem ser necessariamente pensados como sendo criados através da ação em pontos definidos no tempo por indivíduos específicos agindo.[20]

Além disso, a ideia de abandonar a distinção antes-depois, que o socialismo acha tão sedutora, seria simplesmente incompatível com o princípio da não-agressão como o fundamento prático da argumentação. Argumentar e possivelmente concordar com alguém (nem que seja sobre o fato de que há discordância) significa reconhecer um direito prévio mútuo do controle exclusivo sobre o seu próprio corpo. Caso contrário, seria impossível para qualquer um falar primeiro em algum momento definido no tempo e para outra pessoa ser capaz de responder, ou vice-versa, assim como nem o primeiro nem o segundo orador seriam mais, em qualquer momento unidades físicas independentes de tomada de decisão. Portanto, eliminar a distinção antes-depois, como o socialismo tenta fazer, é equivalente a eliminar a possibilidade de argumentar e obter um entendimento. Porém, como não se pode argumentar que não há possibilidade de discussão sem o controle prévio de cada pessoa sobre o seu próprio corpo como sendo reconhecido e aceitado como justo, uma ética do retardatário que não deseja fazer essa diferença nunca poderia ser acordada por ninguém. Bastaria dizer que isso poderia significar uma contradição, como se ser capaz de dizer isto pressuporia sua existência como uma unidade independente de tomada de decisão num momento definido no tempo.

Consequentemente, somos obrigados a concluir que a ética socialista é um fracasso completo. Em todas as suas versões práticas, não é melhor do que uma regra que defenda coisas como “eu posso bater em você, mas você não pode bater em mim”, que, inclusive, não passa no teste da universalização. E se adotar regras universais, o que basicamente significaria dizer que “todo mundo pode bater em todo mundo”, essas regras não poderiam ser afirmadas, de forma concebível, como universalmente aceitáveis por conta de suas próprias especificações materiais. Simplesmente afirmar e argumentar dessa forma deve pressupor os direitos de propriedade de alguém sobre o seu próprio corpo. Portanto, só a ética do capitalismo do primeiro-que-chega é o primeiro-que-possui pode ser efetivamente defendida como estando implícita na argumentação. E nenhuma outra ética poderia ser justificada dessa forma, enquanto que justificar algo no curso da argumentação significa pressupor a validade dessa ética da teoria natural da propriedade.

 



[1] Para essa posição, cf. A. J. Ayer, Language, Truth and Logic, New York, 1950.

[2] Sobre a posição emotivista, cf. C. L. Stevenson, Facts and Values, New Haven, 1963; e Ethics and Language, London, 1945; cf. também a instrutiva discussão estabelecida por G. Harman, The Nature of Morality, New York, 1977; a exposição clássica da ideia de que “a razão é, e não pode ser nada além do que, a escrava das paixões” pode ser encontrada em D. Hume, Tratado da Natureza Humana (ed. Calouste Gulbenkian), Lisboa, 2001.

[3] Cf. também o capítulo 6 deste livro.

[4] Para as várias abordagens “cognitivas” em relação à ética, cf. K. Baier, The Moral Point of View, Ithaca, 1958; M. Singer, Generalization in Ethics, London, 1863; P. Lorenzen, Normative Logic and Ethics, Mannheim, 1969; S. Toulmin, The Place of Reason in Ethics, Cambridge, 1970; F. Kambartel (ed.), Praktische Philosophie und konstruktive Wissenschaftstheorie, Frankfurt/M., 1974; A. Gewirth, Reason and Morality, Chicago, 1978.

Outra tradição cognitiva é representada por vários teóricos dos “direitos naturais”. Cf. J. Wild, Plato’s Modern Enemies and the Theory of Natural Law, Chicago, 1953; H. Veatch, Rational Man. A Modern Interpretation of Aristotelian Ethics, Bloomington, 1962; For An Ontology of Morals. A Critique of Contemporary Ethical Theory, Evanston, 1968; Human Rights. Fact or Fancy?, Baton Rouge, 1985; L. Strauss, Direito Natural e História, Coimbra: Edições 70, 2009.

[5] Cf. K. O. Apel, Transformation der Philosophie, Vol. 2, Frankfurt/M, 1973, em particular o ensaio “Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik”; cf. também J. Habermas, “Wahrheitstheorien,” in: H. Fahrenbach (ed.), Wirklichkeit und Reflexion, Pfullingen, 1974; Theorie des kommunikativen Handelns, Vol. 1, Frankfurt/M, 1981, p.44 et seq.; e Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt/M., 1983.

Observe a semelhança estrutural do “a priori da argumentação” para o “a priori da ação”, ou seja, o fato de que, como explicado no capítulo 6, não há maneira de refutar a afirmação de que todo mundo sabe o que significa agir, uma vez que tentar refutar essa afirmação pressuporia o conhecimento de como realizar determinadas atividades. De fato, o caráter incontestável do conhecimento sobre o significado da validade das alegações e da ação estão intimamente ligadas. Por um lado, as ações são mais fundamentais do que a argumentação de cuja existência surge a ideia da validade, assim como a argumentação é claramente apenas uma subcategoria da ação. Por outro lado, dizer o que foi dito sobre a ação e argumentação, e sobre a sua relação mútua, já exige uma argumentação e, portanto, nesse sentido (isto é, epistemológico), a argumentação deve ser considerada mais fundamental do que a ação não-argumentativa. Mas como também é a epistemologia que revela a ideia de que, apesar disto não poder ser conhecido previamente por qualquer argumentação, de fato, o desenvolvimento da argumentação pressupõe ação na qual as alegações de validade só podem ser explicitamente discutidas num argumento se as pessoas que o fazem já souberem o que significa ter conhecimento implícito nas ações; ambos, o significado da ação em geral e o da argumentação em particular, devem ser pensados como fios entrelaçados logicamente necessários de um conhecimento a priori.

[6] Metodologicamente, nossa abordagem exibe uma semelhança muito próxima daquilo que A. Gewirth descreveu como o “método dialeticamente necessário” (Reason and Morality, Chicago, 1978, p.42-47) — um método de raciocínio a priori moldado na ideia kantiana de deduções transcendentais. Mas, infelizmente, em seu importante estudo, Gewirth escolhe o ponto de partida equivocado para desenvolver a sua análise. Ele tenta deduzir um sistema ético não do conceito de argumentação, mas de um conceito de ação. Contudo, isto certamente não pode funcionar porque do fato corretamente demonstrado de que ao agir um agente deve, por necessidade, pressupor a existência de determinados valores ou bens, disso não deduz-se que tais bens são, portanto, universalizáveis e devem, por isso, ser respeitados por terceiros como sendo bens do agente por direito (sobre a exigência das afirmações normativas serem universalizáveis, conferir a discussão posterior). Em vez disso, a ideia da verdade, ou no que se refere à moral, dos direitos ou bens universalizáveis só surge com a argumentação enquanto uma subcategoria especial de ações, mas não da ação enquanto tal, como é claramente revelado pelo fato de que Gewirth também não está simplesmente envolvido na ação, mas mais especificamente na argumentação quando ele tenta nos convencer da verdade necessária do seu sistema ético. No entanto, reconhecida a argumentação como o único ponto de partida adequado para o método dialeticamente necessário, resulta daí, como veremos, uma ética capitalista (ou seja, não-Gewirthiana). Sobre as imperfeições da tentativa de Gewirth de tentar deduzir direitos universalizáveis da ideia de ação, cf. também as observações perspicazes de M. MacIntyre, Depois da Virtude: Um Estudo em Teoria Moral, Bauru: EDUSC, 2001; J. Habermas, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt/M., 1983, p.110-111; e H. Veatch, Human Rights, Baton Rouge, 1985, p.159-160.

[7] A relação entre a nossa abordagem e a abordagem dos “direitos naturais” pode ser agora descrita detalhadamente. A lei natural ou a tradição dos direitos naturais do pensamento filosófico sustenta que as normas universalmente válidas podem ser percebidas por meio da razão enquanto fundamentadas na própria natureza do homem. Tem havido uma disputa notória em relação a essa posição, mesmo por parte dos leitores simpatizantes, de que o conceito de natureza humana é “muito difuso e variado para fornecer um determinado conjunto de conteúdos da lei natural” (A. Gewirth, “Law, Action, and Morality” in: Georgetown Symposium on Ethics. Essays in Honor of H. Veatch (ed. R. Porreco), New York, 1984, p.73). Além disso, sua descrição de racionalidade é igualmente ambígua na medida em que não parece distinguir entre o papel da razão para estabelecer, por um lado, leis empíricas da natureza, e, por outro lado, leis normativas de conduta humana (Cf., por exemplo, a discussão em H. Veatch, Human Rights, Baton Rouge, 1985, p.62-67.).

Ao reconhecer o conceito mais estrito de argumentação (em vez do mais amplo da natureza humana) como o ponto de partida necessário para se derivar uma ética e ao atribuir ao raciocínio moral o status de um raciocínio a priori, para ser claramente diferenciado do papel desempenhado pela razão na investigação empírica, nossa abordagem não só pretende evitar essas dificuldades desde o início, mas pretende, desse modo, ser mais uma vez honesta e rigorosa. E ainda para me dissociar da tradição dos direitos naturais, o que não quer dizer que eu não pudesse concordar com a avaliação crítica da maioria da teoria ética contemporânea; de fato, eu concordo com a refutação complementar de toda a ética do desejo (teológica, utilitária) formulada por H. Veatch tanto quanto toda a ética (consulte Human Rights, Baton Rouge, 1985, capítulo 1) do dever (deontológica). E nem eu afirmo que seja impossível interpretar a minha abordagem como dentro de uma tradição dos direitos naturais “corretamente concebida”. Porém, o que eu afirmo é que a abordagem resultante está claramente em desacordo com o que veio a se transformar a abordagem dos direitos naturais e que esta nada possui dessa tradição tal como ela se posiciona.

[8] O princípio da universalização figura, de fato, com destaque entre todas as abordagens cognitivas sobre a moral. Para a exposição clássica desse princípio, cf. I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Coimbra: Almedina, 2011, e Crítica da Razão Prática, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[9] Deve ser observado aqui que só porque existe a escassez há mesmo um problema de formulação de leis morais; à medida em que os bens são superabundantes (bens “livres”) nenhum conflito sobre o uso dos bens é possível e nenhuma ação-coordenação é necessária. Consequentemente, deduz-se que qualquer ética corretamente concebida deve ser formulada como uma teoria da propriedade, ou seja, uma teoria de atribuição dos direitos de controle exclusivo dos meios escassos.  Porque só assim se torna possível evitar o conflito que, de outra forma, seria inescapável e insolúvel. Infelizmente, os filósofos morais, em sua ignorância generalizada sobre economia, dificilmente veriam isso com clareza suficiente. Em vez disso, como, por exemplo, H. Veatch (Human Rights, Baton Rouge, 1985, p. 170), eles parecem achar que podem fazê-lo sem uma definição precisa de propriedade e dos direitos de propriedade só para depois necessariamente acabarem num mar de imprecisão e adhocismos (N.T.: derivação de ad hoc, que significa “para isso” ou “para esta finalidade”). Sobre os direitos humanos como direitos de propriedade, cf. também M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 15.

[10] Cf. J. Locke, Dois Tratados do Governo Civil, Coimbra: Edições 70, 2006, esp. 2, 5.

[11] Sobre o princípio da não-agressão e o princípio da apropriação original, cf. também M. N. Rothbard, For A New Liberty, New York, 1978, capítulo 2; e A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulos 6-8.

[12] Esta é, por exemplo, a posição adotada por J.J. Rousseau quando ele nos pede para resistirmos à tentativa de aquisição privada dos recursos dados pela natureza construindo uma cerca em volta deles. Em sua famosa máxima, ele diz: “evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.259). Porém, só é possível argumentar dessa forma se for possível considerar que a reivindicação da propriedade pode ser justificada por decreto. Porque, como poderia “todos” (ou seja, até aqueles que nunca fizeram nada com os recursos em questão) ou “ninguém” (ou seja, nem mesmo aqueles que realmente os utilizaram) possuírem alguma coisa, a menos que as reivindicações de propriedade fossem feitas por decreto?!

[13] Sobre o problema da capacidade de dedução do “dever” das afirmações do “é”, cf. W. D. Hudson (ed.),The Is-Ought Question, London, 1969; para a perspectiva de que a dicotomia valor-fato é uma ideia mal-concebida, cf. a literatura dos direitos naturais citada na nota 115.

[14] M. N. Rothbard escreveu o seguinte em A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p.89: “Pois bem, qualquer pessoa que participa de qualquer tipo de discussão, incluindo uma sobre valores, está, em virtude desta participação, viva e afirmando a vida. Pois, se ela realmente fosse contrária à vida, ela não teria nenhum interesse em continuar vivo. Consequentemente, o suposto opositor da vida está realmente afirmando-a no próprio curso de sua argumentação e, por isso, a preservação e a proteção da vida de alguém assumem a categoria de um axioma incontestável”. Cf. também D. Osterfeld, “The Natural Rights Debate”, in: Journal of Libertarian Studies, VII, I, 1983, p.106 et seq.

[15] Cf. também M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p.103.

[16] Sobre a importância da definição de agressão como agressão física, cf. também M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulos 8- 9; do mesmo autor, “Law, Property Rights and Pollution,” in: Cato Journal, Spring 1982, esp. p. 60-63.

[17] Sobre a ideia de violência estrutural como sendo diferente da violência física cf. D. Senghaas (ed.),Imperialismus und strukturelle Gewalt, Frankfurt/M., 1972.

A ideia de definir agressão como uma invasão dos valores da propriedade também fundamenta as teorias de justiça tanto de Rawls quanto de Nozick, no entanto, podem ter aparecido muitos comentadores diferentes desses dois autores. Pois como poderia pensar sobre o seu chamado princípio da diferença — “as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma a (…) que sejam razoavelmente esperadas como sendo uma vantagem ou benefício para todo mundo, incluindo os menos favorecidos” (J. Rawls, Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Editorial Presença, 2001, p. 68-71 e 78-84) — como sendo justificado, a não ser que Rawls acreditasse que bastava aumentar a riqueza relativa que uma pessoa afortunada cometesse uma agressão e que uma menos afortunada, portanto, teria uma reivindicação válida contra a pessoa mais afortunada só porque a sua posição relativa em termos de valor se deteriorou? E como Nozick poderia alegar como sendo justificável uma “agência de proteção dominante” banir seus concorrentes, independentemente de quais teriam sido as suas ações (R. Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p.27 et seq.)? Ou como ele poderia acreditar que seria moralmente correto proibir as trocas improdutivas, ou seja, trocas onde uma parte estivesse numa melhor situação se a outra não existisse, ou pelo menos não tivessem nada a ver com isso (como, por exemplo, no caso de um chantageado e de um chantageador), independentemente se uma troca envolvesse ou não a invasão física de qualquer espécie (Ibid., p. 79 et seq.), a menos que ele pensasse no direito existente de se preservar a integridade dos valores (em vez da integridade física) da propriedade de alguém?! Para uma crítica devastadora da teoria de Nozick cf. M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 29; sobre o uso falacioso da análise das curvas de indiferença feito tanto por Rawls quanto por Nozick, cf. “Toward a Reconstruction of Utility and Welfare Economics”, Center for Libertarian Studies, Occasional Paper No. 3, New York, 1977.

[18] Cf. também M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p.104.

[19] Para uma tentativa filosófica inepta de justificar uma ética dos retardatários cf. J. Rawls, Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Editorial Presença, 2001, p.227 et seq.; J. Sterba, The Demands of Justice, Notre Dame, 1980, esp. p.58 et seq., p.137 et seq.; sobre o absurdo dessa ética, cf. M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1972, p.427.

[20] Note-se também aqui que somente se os direitos de propriedade forem conceituados como direitos de propriedade privada que se originam no tempo torna-se possível estabelecer contratos. Claramente, os contratos são acordos entre inúmeras unidades fisicamente independentes baseados no reconhecimento mútuo das reivindicações de cada contratante da propriedade privada em relação às coisas adquiridas antes do acordo e que, portanto, dizem respeito à transferência dos títulos de propriedade das coisas definidas de um proprietário anterior para um proprietário posterior. Não há tal coisa como contratos que pudessem existir de forma concebível no âmbito de uma ética do retardatário!

 

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