Verdade e Caridade – ou, o que é realmente a ciência econômica

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VATICAN CITY- APRIL 7: Pope Benedict XVI attends the Easter Vigil mass in the Basilica of St. Peter, April 7, 2007 in Vatican City. The Easter Vigil Mass ushers in the celebration of Easter. (Photo by Franco Origlia/Getty Images)“Papa clama por governo global”, diziam as manchetes no início de julho.  E então, assim como a noite se segue ao dia, os defensores conservadores do Papa se prontificaram a condenar a mídia por estar distorcendo o que o Papa quis dizer.  Esses malditos liberais – como se atrevem a distorcer as palavras do Pontífice dessa forma?

Não é exatamente a primeira vez que esse tipo de coisa acontece.  O padrão, ao longo das últimas décadas, tem sido este: a mídia descreve de maneira relativamente correta algo que o Papa disse ou fez, e então seus defensores conservadores – ansiosos para justificar tais declarações ou gestos atípicos – inventam explicações pra lá de convolutas, na esperança de convencer as pessoas de que o Papa realmente quis dizer outra coisa.

Vale a pena reproduzir a passagem relevante da nova encíclica papal, Caritas in Veritate:

Perante o crescimento incessante da interdependência mundial, sente-se a imensa – mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial – urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura econômica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações. De igual modo, sente-se a urgência de encontrar formas inovadoras para implantar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns. Isto revela-se necessário precisamente no âmbito de um ordenamento político, jurídico e econômico que incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos. Para governar a economia mundial, para sanar as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e em consequência maiores desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira autoridade política mundial, delineada já pelo meu predecessor, o Beato João XXIII. A referida autoridade deverá ser regulada pela lei, ater-se coerentemente aos princípios de subsidiariedade e solidariedade, estar orientada para a consecução do bem comum, comprometer-se na realização de um autêntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores da caridade na verdade. Além disso, tal autoridade deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça e o respeito aos direitos. Obviamente, deve gozar da faculdade de fazer com que as partes respeitem as próprias decisões, bem como as medidas coordenadas e adotadas nos diversos fóruns internacionais. Sem isso, não obstante os grandes progressos realizados nos vários campos, o direito internacional correria o risco de ser condicionado pelos equilíbrios de poder entre os mais fortes. O desenvolvimento integral dos povos e a colaboração internacional exigem que seja instituído um grau superior de ordenamento internacional – marcado pela subsidiariedade – para o governo da globalização.  Isto também exige a construção de uma ordem social que finalmente se conforme à ordem moral, à interligação entre as esferas moral e social, e ao elo entre a política e as esferas econômica e civil, como contemplado pelo Estatuto das Nações Unidas. [ênfases no original]

O que quer que digamos dessa passagem, será que ela realmente está tão ininteligível de modo a confundir a mídia?

Na realidade, eu nem queria escrever nada sobre essa encíclica papal.  Em 2007, escrevei um livro, Sacred Then and Sacred Now: The Return of the Old Latin Mass, em defesa do ato papal que reinstituiu a tradicional missa em latim, uma área na qual Bento XVI é profundamente versado e tem muitas coisas valorosas a dizer.  Eu gosto do atual Papa.  Ele é esperto e sério, e não é frívolo nem vaidoso.  Ele representa, de várias maneiras, uma melhora substancial em relação ao seu antecessor.  (E cito como evidência o fato de que a mídia pensa exatamente o contrário).  E tendo sido violentamente vituperado e ridicularizado por algumas pessoas extremamente desprezíveis, ele certamente tem todos os inimigos que uma pessoa correta deve ter.

Relutantemente acabei cedendo à insistência de alguns poucos correlatos e escrevi alguns pensamentos.  Então aqui vão eles: Caritas in Veritate me pareceu, na melhor das hipóteses, uma reformulação relativamente desinteressante de alguns temas familiares contidos nas encíclicas sociais anteriores.  Na pior das hipóteses, ela é embaraçosamente ingênua, e suas recomendações políticas não irão atrair ninguém para Igreja – ao contrário, certamente irão repelir.

A resposta à encíclica da parte de todos os católicos que se encontram à direita foi tristemente previsível: com poucas exceções, foi uma performance digna do Politburo soviético, repleta de oba-obas desenfreados.

Uma coisa é receber uma declaração do Papa com o respeito que é devido ao homem e ao seu cargo.  Outra coisa, bem diferente, é tratar cada uma de suas missivas como ipso facto brilhantes, como se a fé católica dependesse disso.  Se seus defensores estão ansiosos para dar razão à esquerda, que vive dizendo que o catolicismo é um culto de um bilhão de pessoas, dificilmente poderiam ter feito um trabalho melhor.

O Papa Não é um Monarca Absolutista

Meu livro The Church and the Market: A Catholic Defense of the Free Economy faz uma distinção entre aqueles aspectos da economia sobre os quais o Papa – na sua função de instrutor de questões de fé e moral – está perfeitamente equipado para palpitar, e aqueles que não.  Vou repetir aqui essa tese como prelúdio para os meus comentários.

Os fenômenos estudados pela ciência econômica – os quais incluem dinheiro, sistema bancário, preços, salários, teoria do monopólio e vários outros tópicos – estão repletos de implicações morais.  Porém, declarações concretas e científicas sobre esses fenômenos que constituem a disciplina da ciência econômica são necessariamente de valor neutro.  (Por “científico” me refiro unicamente ao fato de que as declarações envolvem relações de causa e efeito; em momento algum estou dizendo que a economia se assemelha às ciências físicas).  Descrever o funcionamento do sistema bancário de reservas fracionárias é uma tarefa positiva (de caráter prático), e não uma normativa.  Agora, discutir se tal sistema é desejável já é uma tarefa normativa, e qualitativamente separada da explicação da mecânica desse sistema.  Uma pessoa não pode fazer um comentário inteligente sobre questões normativas caso ela não entenda as questões mecânicas do sistema.  E é apenas com esse último aspecto que a ciência econômica lida.  Repetindo: a ciência econômica é positiva, e não normativa.  Ela não faz juízo de valor.

Da mesma forma, uma política econômica pode possuir uma dimensão moral, mas não há uma única afirmação da teoria econômica que tenha alguma pretensão moral.  Por exemplo, Frank Knight imaginou o capital como sendo uma unidade homogênea cujos processos individuais ocorrem de modo sincronizado.  Sendo assim, o capital poderia ser entendido sem que se introduzisse o fator tempo na teoria do capital.  Já F.A. Hayek, bem como a Escola Austríaca de economia à qual Hayek pertencia, concebe o capital como sendo uma série temporal de etapas de produção.  Nessa série, há etapas de ordens mais altas e etapas de ordens mais baixas, sendo que as etapas de ordem mais alta são aquelas que estão mais distantes do consumidor final (mineração e matérias-primas, por exemplo) e a etapa de ordem mais baixa é aquele que vem imediatamente antes da venda do produto final.

Não há nada em termos de fé religiosa que sequer chegue perto de decidir se essa e outras incontáveis (e importantes) questões econômicas são as mais corretas ou não.  Nem mesmo a mais incompreensiva ou exagerada atribuição de infalibilidade papal poderia permitir ao Papa deliberar controvérsias como essas.  Entretanto, confusão e ignorância acerca de tais aparentemente abstrusos pontos abundam no núcleo das recomendações políticas que as conferências episcopais propõem e as encíclicas papais podem aparentemente sugerir.

Obviamente, não se trata de “dissidência” meramente dizer que as relações de causa e efeito que constituem o edifício teórico da ciência econômica não são uma questão de fé e moral.  Elas simplesmente não estão dentro do escopo de assuntos sobre os quais um prelado católico é dotado de autoridade ou discernimento especiais.  Os católicos não podem fazer petições contra elas, pois elas são fatos da vida.  E fatos não podem ser contestados, desafiados ou repreendidos; tudo o que podemos fazer é aprender e agir de acordo com eles.  De nada adianta cerrar os punhos e protestar contra o fato de que o controle de preços gera escassez de produtos.  Tudo o que podemos fazer é compreender o fenômeno, e certificarmo-nos de ter essa e outras verdades econômicas em mente se quisermos fazer declarações econômicas racionais e proveitosas.

Ademais, aqueles que posam de defensores da doutrina social católica geralmente não reconhecem que as propostas que defendem implícita ou explicitamente podem trazer apenas conseqüências desfavoráveis para todos.  Nessas propostas, não se considera, por exemplo, que haja uma troca, um equilíbrio, entre maiores salários e desemprego.  Naturalmente, nenhum espaço para objeções pode existir quando a própria possibilidade da objeção é excluída pelo modo como o argumento é moldado: por exemplo, segundo essas pessoas, se queremos maiores salários, então simplesmente devemos exigir maiores salários.  Qualquer um que não faça coro a essa exigência é porque não deve estar querendo maiores salários.  Isso, obviamente, é uma ignorância econômica.  Afinal, salários maiores não podem ser produzidos por simples decretos, mas, sim, por meio da acumulação de capital.  E essa é precisamente a questão.

Por exemplo, a ideia de um “salário-mínimo digno” para os chefes de família é um exemplo de uma política que eu instituiria apenas se, (1) eu não soubesse quais são os fatores que fazem com que os salários reais aumentem por conta própria, sem o uso da coerção; ou (2) eu quisesse prejudicar as pessoas, tornando-as menos empregáveis. (Por que não oferecer um salário mínimo de $100.000.000 por mês, já que é tão fácil aumentar salários por meio de decretos?) Não tenho aqui o espaço para me alongar nesse quesito, de modo que peço aos leitores interessados que consultem meu capítulo sobre o assunto em um livro chamado Catholic Social Teaching and the Market Economy, publicado em 2007 pelo Institute of Economic Affairs de Londres e disponível para download gratuito.

Certamente é possível – conquanto bastante improvável – que um católico contra-argumente da seguinte forma: “A Igreja insiste que o salário mínimo (e tudo o mais) deve ser instituído porque a justiça exige que assim o seja, mesmo sabendo que tal ato irá fazer com que as pessoas, principalmente aquelas que tal política tenciona ajudar, acabem ficando materialmente piores”.  Entretanto, jamais vi algum documento eclesiástico assumindo essa posição.  Esses documentos são eivados da suposição de que suas sugestões irão atingir os fins declarados e aumentar o bem-estar das pessoas.  Essa suposição, por sua vez, sugere que o único obstáculo entre o presente e um futuro mais próspero é aquilo que chamam de “vontade política” – e não as restrições impostas pela própria natureza das coisas.

Novamente, é uma questão de ignorância econômica declarar que, se a autoridade falou, a questão acabou – afinal, o que está em jogo é saber se esses assuntos são de uma natureza de tal modo qualitativa que os permita ser suscetíveis a resoluções eclesiásticas.  Por exemplo, se a lei dos retornos marginais é um fato objetivo da natureza (e é), então o Papa não pode declarar que tal lei é falsa, ou esperar que políticas que ignorem tal lei irão obter algum êxito.  Seria o mesmo que esperar que ele pudesse modelar um círculo quadrado.  Não é nenhum insulto à autoridade papal negar a sua capacidade de moldar círculos quadrados.  (Aliás – deixando de lado a famosa e quase sempre mal interpretada divergência de São Pedro Damião -, o consenso entre os escolásticos, antes do triunfo do nominalismo, era que nem o próprio Deus poderia violar a lei da não-contradição – por exemplo, criando um círculo quadrado).

Uma coisa, por exemplo, é identificar o bem-estar da família como sendo um importante ingrediente de uma sociedade saudável.  Outra coisa, bem diferente, é propor medidas políticas planejadas especificamente para ajudar as famílias.  Afinal, saber se essas políticas irão gerar os efeitos intencionados é algo que envolve uma análise causal.  E uma análise causal – e isso deveria ser desnecessário enfatizar – é analiticamente separada de questões de fé e moral.

A Recomendação do Papa Paulo VI para as Nações em Desenvolvimento

A encíclica Populorum Progressio (1967) do Papa Paulo VI, por exemplo, foi além das observações morais que se pode fazer sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo e passou a de fato sugerir recomendações políticas, colocando dessa forma os católicos na injusta posição de aparentar “dissidência” em relação ao Papa ao proporem alternativas.  Peter Bauer, o profético economista que alertou durante décadas sobre os efeitos perniciosos que os programas de ajuda internacional teriam sobre as nações do Terceiro Mundo, observou que não havia nada de particularmente católico, ou mesmo cristão, na encíclica, e que ela estava meramente repetindo, com algumas nuanças religiosas, o pensamento convencional.

Hoje sabemos o quão desastrosas foram as recomendações da Populorum: as ajudas internacionais fortificaram os piores regimes políticos , atrasaram indefinidamente as reformas necessárias e destroçaram dezenas de países, com vários grupos étnicos e raciais recorrendo à violência para tentar se apropriar de parte do dinheiro das ajudas internacionais.  A própria ideia da ajuda internacional introduziu incentivos perversos a essas sociedades; tornou-se insensato criar coisas que satisfizessem os desejos de seus conterrâneos, pois era mais racional dedicar esforços improdutivos para fazer campanhas que lhe garantissem mais dinheiro externo.  Por outro lado, Hong Kong, Chile e Coréia do Sul só se tornaram prósperos depois que a ajuda internacional foi interrompida e eles foram forçados a adotar políticas econômicas racionais e sensatas.

Paulo VI também adotou a badalada tese de Raul Prebisch e Hans Singer que dizia que uma deterioração secular dos termos de troca entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento – sempre em detrimento deste último – era uma inevitabilidade, pois havia a suposta tendência de os preços dos bens manufaturados (especialidade dos países desenvolvidos) subirem e, ao mesmo tempo, os preços das commodities (especialidade dos países em desenvolvimento) caírem.  Entretanto, essa suposta deterioração dos termos de troca nunca ocorreu, como o economista Gottfried Haberler já vinha argumentando dez anos antes da Populorum Progressio, se alguém se deu ao trabalho de escutar.  Entretanto, foi baseando-se nessa tese errônea que Paulo VI condenou o livre comércio, negando que este fosse um caminho para a prosperidade do mundo em desenvolvimento.  (Curiosamente, hoje são os países desenvolvidos que condenam o livre comércio, argumentando que ele é prejudicial para os países ricos e benéfico para os países pobres).  Os países que seguiram a tese Prebisch/Singer ficaram muito atrás daqueles que se integraram à divisão internacional do trabalho.  Não há como negar isso.

Teria sido uma “dissidência” dizer que o erro factual do Papa acerca dos termos de troca era realmente um erro factual?  Seria “dissidência” ter apontado que essas recomendações não lograriam o efeito a que se propunham?  Deveríamos acreditar que a autoridade papal sobre assuntos de fé e moral se estende também a análises de causa e efeito aplicadas a programas de ajuda internacional?  Essas perguntas se respondem a si próprias.

O Papa Bento XVI a as Ajudas Internacionais

Já nos anos 1980 e 1990, o consenso entre os observadores de todo os tipos era que Bauer estava certo e que tais programas haviam feito mais mal do que bem.  Mesmo os mais obstinados oponentes do bom senso, como o The New York Times e o FMI, foram forçados a essa conclusão.  E, ainda assim, em 2009, temos de ler o Papa Bento XVI em sua Caritas in Veritate:

Na procura por soluções para a crise econômica atual, a ajuda ao desenvolvimento dos países pobres deve ser considerada como verdadeiro instrumento de criação de riqueza para todos. Que projeto de ajuda pode abrir perspectivas tão significativas para o crescimento – mesmo do ponto de vista da economia mundial – quanto o apoio a populações que ainda se encontram ainda numa fase inicial ou pouco avançada do seu processo de desenvolvimento econômico? Nesta linha, as nações economicamente mais desenvolvidas deveriam fazer o possível para destinar quotas maiores do seu produto interno bruto para as ajudas internacionais, respeitando dessa forma as obrigações às quais a comunidade internacional se comprometeu. [ênfases no original]

Muito bem, serei direto: isso está errado em todos os seus aspectos.  Por mais bem intencionado que o Papa esteja, ele está absolutamente errado.  Os católicos podem expressar sua insatisfação com essas declarações de maneira respeitosa e não-impertinente, mas ficar em silêncio quanto a elas dá a falsa impressão de aceitação de propostas obviamente contestáveis.

Após a publicação da nova encíclica, deparei-me com algumas referências depreciativas feitas por católicos conservadores à Populorum Progressio de Paulo VI, contra a qual esses críticos (bem implausivelmente, na minha opinião) desejavam contrastar a mais sóbria e sensata Caritas in Veritate.  O interessante é que não me lembro de nenhum desses críticos, alguns dos quais estavam vivos durante o pontificado de Paulo VI, oferecer tais comentários à época.  Se os conselhos da Populorum eram imponderados a ponto de terem sido completamente refutados pela experiência já em 2009, então eles ao menos estavam abertos para discussão em 1967.  Onde estava essa discussão?  Por que a Populorum está sendo criticamente examinada apenas agora, após todo o estrago que ela fez?

Repito: somente o mais desavisado ou supersticioso católico poderia pensar que a autoridade papal sobre questões de fé e moral garantem a ele algum tipo de discernimento mágico acerca do melhor modelo a ser adotado para o desenvolvimento do Terceiro Mundo.  Fosse isso verdade, então a ciência econômica em geral e as teorias do desenvolvimento em particular deveriam ser abandonadas imediatamente, uma vez que simples consultas ao Papa forneceriam todas as respostas necessárias.

É por isso que o Papa Leão XIII certa vez declarou,

Se eu tivesse de me pronunciar sobre qualquer aspecto de um problema econômico vigente, estaria interferindo na liberdade de os homens lidarem com seus próprios afazeres.  Certos casos devem ser resolvidos no campo dos fatos, caso por caso, na medida em que vão ocorrendo…. [O]s homens precisam realizar tais afazeres através de suas próprias obras, tal princípio estando além de qualquer questionamento…. [E]ssas coisas devem ser solucionadas ao longo do tempo e da experiência.

Os Pecados da Omissão

Além de algumas outras declarações mais infelizes, Caritas in Veritate também representa uma enorme perda de oportunidade.  Há questões morais legítimas a serem levantadas sobre os sistemas monetários mundiais, mas Bento XVI não as discute.

Se essas questões morais lhe interessam, sugiro o brilhante trabalho de Jörg Guido Hülsmann, The Ethics of Money Production, ou meu já citado livro The Church and the Market. (O primeiro título foi recebido com grande entusiasmo por Paul Likoudis, da revista The Wanderer, um bom homem que eu classificaria como um redistribucionista da terceira via, o que significa que o apelo do livro se estende para muito além dos tradicionais círculos misesianos).

Hülsmann mostra que, dentro da tradição católica, há um amplo testemunho das perversidades causadas pela desvalorização monetária, pelo sistema bancário de reservas fracionárias, e por várias outras instituições rotineiras das quais raramente nos lembramos.  Como argumenta Hülsmann, é impossível haver qualquer defesa moral ou econômica do sistema monetário sob o qual somos forçados a viver – um sistema que jamais foi introduzido voluntariamente, mas que sempre foi impingido e aplicado coercivamente, com a polícia apoderada e autorizada a suprimir todas as formas alternativas.  A insidiosa natureza do monopólio estatal da moeda se torna extremamente clara quando a moeda se degenera em hiperinflação, sendo que todos os exemplos disso ocorreram exatamente sob sistemas de papel-moeda monopolizado pelo estado.  Tal sistema monetário, completamente gerido pelo estado, está tão distante de um livre mercado quanto se possa imaginar.

O sistema monetário mundial atual envolve bancos centrais que, sob privilégios garantidos pelos respectivos governos, não apenas detêm o monopólio da criação de papel-moeda de curso forçado, como também possuem a função de proteger um cartel de bancos comerciais, tanto privados quanto estatais.  A contínua desvalorização monetária que tais bancos centrais executam conjuntamente impossibilita que as pessoas possam poupar para o futuro sem que tenham de recorrer a algum tipo de atividade especulativa.  Por outro lado, um sistema monetário sólido, do tipo padrão-ouro, permitia ao indivíduo comum poupar para sua vida futura simplesmente acumulando moedas de metais preciosos, as quais, durante a época em que serviram como dinheiro, mantinham ou até mesmo aumentavam seu poder de compra ao longo do tempo.  Quem hoje em dia é louco o suficiente para poupar apenas estocando papel-moeda fiduciário?  Os indivíduos mais vulneráveis de uma sociedade precisam ou entrar no mercado financeiro ou assumir outros tipos de risco apenas para manter sua atual riqueza.  Isso não seria uma questão moral?

O atual sistema monetário é o responsável pela criação dos ciclos econômicos, os quais ocorrem quando o governo tenta manipular as taxas de juros para níveis abaixo do seu valor de livre mercado.  A descoordenação resultante dentro da estrutura de produção coloca a economia em um caminho no qual ela não pode se manter indefinidamente.  A inevitável recessão, quando chega, leva distúrbio e aflição a milhares de famílias, e inevitavelmente estimula o mais desprezível e predatório dos comportamentos empresariais: a procura por socorro governamental.

Um banco central monopolista institucionaliza o problema do risco moral.  Não há qualquer limitação física para a criação de papel-moeda adicional.  Por essa razão, os grandes agentes de mercado sabem que não há restrições físicas que possam impedir seu salvamento em situações emergenciais.  O único obstáculo, facilmente dominado, é a vontade política.  Já deveria estar mais do que óbvio como um sistema como esse promove um nível artificialmente elevado de tolerância ao risco e beneficia os privilegiados em detrimento do cidadão comum.

Todos esses argumentos, além de vários outros, são desenvolvidos em maiores detalhes no livro de Hülsmann e nos meus Meltdown e The Church and the Market.  A encíclica infelizmente negligencia esses problemas morais em detrimento de alertas triviais sobre materialismo e cobiça, os quais podemos encontrar fartamente nas publicações seculares de qualquer veículo de comunicação.  Tivesse o Papa abordado as sérias questões morais que delineei aqui, ele teria emprestado seu prestígio ao início de um muito necessário questionamento das práticas financeiras que há muito aceitamos como naturais.  Ao invés disso – e muito embora Bento XVI certamente não tenha pensado dessa forma – a encíclica acabou dizendo aos que detêm o poder exatamente aquilo que queriam ouvir: materialismo e cobiça precisam ser disciplinados pelos planejadores econômicos.  (Quis custodiet ipsos custodes?, alguém pode pensar).  Em outras palavras, a lamentavelmente convencional recomendação contida em Caritas in Veritate parece ser mais regulação do sistema já existente.

Ademais, como esses fatores institucionais são negligenciados, falta à encíclica qualquer tipo de compreensão sistemática dos ciclos econômicos, os quais por clara implicação o leitor é levado a crer serem causados pela soma agregada de atos individuais de malícia.  A questão fundamental – a saber, por que esses atos de malícia ocorrem todos repentinamente, formando um conjunto agregado de erros que perpassa toda a economia – não é levantada.

Aos católicos, resta a pergunta: o que fazer?  Não há necessidade de fornecer evidências ainda mais contundentes para o fato de que o Papa não é (e nunca pensou ser) um monarca absolutista cujos pronunciamentos devem ser todos saudados com bajulações servis.  Qualquer católico instruído sabe disso.  Durante grande parte da vasta história da Igreja, o culto à personalidade – vamos chamar pelo nome certo – que rodeou o Papa João Paulo II seria considerado pelos católicos como algo absolutamente bizarro.

São Tomás de Aquino afirmava que um leigo podia repreender seu prelado, mesmo em público, caso este praticasse alguma desonra.  Sob o tópico “Se um homem tem a obrigação de corrigir seu prelado”, São Tomás escreve: “Deve ser observado, entretanto, que, se a fé for posta em perigo, um discípulo tem de repreender seu prelado até mesmo publicamente.  Desta forma, Paulo, que era discípulo de Pedro, repreendeu-o em público, por causa do perigo iminente de desonra em relação à fé”.

Novamente, eu gosto de Bento XVI, e creio que ele fez mudanças importantes, e para melhor, na vida da Igreja.  Mas certas passagens essenciais de Caritas in Veritate, além de serem inúteis ou inadequadas, erigem obstáculos gratuitos à conversão de parte dos incontáveis protestantes e outros não-católicos.  Se a argumentação de São Tomás não se aplica a esse caso, a qual outro se aplicaria?

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