14. A produção privada de segurança

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Entre as crenças mais populares e importantes de nossos tempos está a crença na segurança coletiva.  Nada menos do que a legitimidade do estado moderno se baseia nessa crença.

Irei demonstrar que a ideia de segurança coletiva é um mito que não oferece qualquer justificativa para o estado moderno, e que toda segurança é e tem de ser privada.  No entanto, antes de chegar a essa conclusão, começo com o problema.  Primeiramente, apresentarei uma reconstrução em dois passos do mito da segurança coletiva e, a cada passo, irei suscitar algumas preocupações teóricas.

O mito da segurança coletiva também pode ser chamado de mito hobbesiano.  Thomas Hobbes, e incontáveis filósofos políticos e economistas depois dele, sustentava que, no estado de natureza, os homens viveriam em pé de guerra.  Homo homini lupus est.  Formulado no jargão moderno, uma subprodução permanente de segurança prevaleceria no estado de natureza.  Cada indivíduo, entregue a seus próprios recursos e suprimentos, investiria muito pouco em sua defesa, o que resultaria em conflitos interpessoais permanentes.  A solução para essa situação presumivelmente intolerável, de acordo com Hobbes e seus seguidores, é a instituição de um estado.  A fim de instituírem uma cooperação pacífica entre si, dois indivíduos, A e B, exigem que uma terceira parte independente, S, atue como juiz de última instância e mediador.  Contudo, essa terceira parte, S, não é apenas mais um indivíduo, e o serviço oferecido por S, isto é, o de segurança, não é apenas mais um serviço “privado.”  Na verdade, S é um soberano e, como tal, goza de dois poderes singulares.  Por um lado, S pode insistir em que seus súditos, A e B, não busquem proteção de ninguém que não ele; isto é, S é um monopolista territorial compulsório de proteção.  Por outro lado, S pode determinar unilateralmente quanto A e B têm de investir em sua própria segurança; isto é, S tem o poder de cobrar impostos a fim de oferecer a segurança “coletivamente.”

Ao comentar esse argumento, não é de grande ajuda discutir se o homem é tão mal e parecido com um lobo como Hobbes supõe, mas, sim, notar que a tese de Hobbes obviamente não pode significar que o homem é movido por, e apenas por, instintos agressivos.  Se esse fosse o caso, a humanidade teria desaparecido há muito tempo.  O fato de que ela não desapareceu demonstra que o homem também possui a razão e é capaz de refrear seus impulsos naturais.  O debate deve se fixar apenas na solução hobbesiana.  Dada a natureza do homem como animal racional, a solução proposta ao problema da insegurança é um avanço?  A instituição do estado pode reduzir o comportamento agressivo e promover a cooperação pacífica e, assim, oferecer uma melhor segurança e proteção privadas?  Os problemas do argumento de Hobbes são óbvios.  Primeiro, não importa quão maus sejam os homens, S — seja um rei, um ditador ou um presidente eleito — continua sendo um homem.  A natureza do homem não é transformada ao tornar-se S.  De qualquer modo, como pode haver melhor proteção para A e B se S tem de cobrar impostos deles para oferecê-la?  Não haveria uma contradição na própria visão de S como um protetor que expropria propriedades?  Na verdade, isso não seria exatamente aquilo a que se refere — e mais apropriadamente — como uma máfia da proteçãoS por certo promoverá a paz entre A e B, mas apenas para que ele possa, em seguida, roubá-los mais lucrativamente.  S é sem dúvida mais bem protegido, mas quanto mais protegido ele é, menos protegidos estão A e B dos ataques de S.  Pareceria assim que a segurança coletiva não é melhor do que a segurança privada.  Na verdade, ela é a segurança privada do estado, S, obtida por meio da expropriação, isto é, do desarmamento econômico, dos seus súditos.  Além disso, os estatistas de Thomas Hobbes a James Buchanan sustentam que um estado protetor S surgiria como o resultado de algum tipo de contrato “constitucional.”[1]  No entanto, quem em seu juízo perfeito assinaria um contrato que permitisse a um protetor determinar unilateralmente — e inapelavelmente — a quantia que os protegidos têm de pagar por sua proteção; e o fato é que ninguém jamais assinou![2]

Permitam-me interromper minha discussão aqui e retornar à reconstrução do mito hobbesiano.  Ao se supor que, a fim de instituir uma cooperação pacífica entre A e B, é necessário haver um estado S, segue-se uma conclusão de duas partes.  Se houver mais de um estado, S1, S2, S3, então, assim como presumivelmente não pode haver paz entre A e B sem S, não poderá haver paz entre os estados S1, S2 e S3 enquanto eles permanecerem em um estado de natureza (isto é, em um estado de anarquia) um em relação ao outro.  Consequentemente, para alcançar-se a paz universal, a centralização política, a unificação e, por fim, o estabelecimento de um único governo mundial são necessários.

Ao comentar esse argumento, é útil, em primeiro lugar, indicar o que pode ser considerado não-controverso.  Para começar, o argumento, como tal, é válido.  Se a premissa está correta, então segue-se o consequente apresentado.  Os pressupostos empíricos envolvidos no relato hobbesiano parecem à primeira vista ser confirmados pelos fatos, também.  É verdade que os estados estão constantemente em guerra um contra o outro, e uma tendência histórica em direção à centralização política e a um governo mundial parece de fato estar em operação.  Discussões surgem apenas quanto à explicação deste fato e desta tendência e à classificação desse estado mundial unificado como um progresso na oferta de segurança e proteção privadas.  Em primeiro lugar, parece haver uma anomalia empírica que o argumento hobbesiano não consegue explicar.  A razão para as guerras entre os diferentes estados S1, S2 e S3, de acordo com Hobbes, é que eles estão em um estado de anarquia um vis-à-vis o outro.  No entanto, antes do surgimento de um único estado mundial, não apenas os estados S1, S2 e S3 estão em um estado de anarquia um em relação ao outro, mas na verdade cada um dos súditos de um estado está em um estado de anarquia vis-à-vis cada um dos súditos de qualquer outro estado.  Ora, deveria haver tantas guerras e agressões entre os cidadãos dos vários estados quanto entre os diferentes estados.  Empiricamente, no entanto, isso não ocorre.  As relações privadas entre estrangeiros parecem ser significativamente menos conflituosas do que as relações entre governos diferentes.  Isso tampouco parece ser surpreendente.  Afinal, o agente estatal S, ao contrário de cada um dos seus súditos, pode se apoiar em impostos domésticos na condução de suas relações exteriores.  Dada sua agressividade humana natural, não importa quão pronunciada ela seja de início, não é óbvio que S será mais ousado e agressivo em sua conduta perante estrangeiros se puder externalizar o custo de tal comportamento sobre terceiros?  Certamente, fico disposto a me envolver em mais provocações e agressões e a correr riscos maiores se puder fazer terceiros pagarem por eles.  E certamente há uma tendência a um estado — uma máfia de proteção — querer expandir seu monopólio territorial de proteção às custas de outros estados e assim trazer à tona, como o resultado final da competição interestatal, um governo mundial.[3]  Mas como isso poderia ser um progresso na oferta de segurança e proteção privadas?  Parece que se dá o contrário.  O estado mundial é o vencedor de todas as guerras e a última máfia de proteção sobrevivente.  Isso não o torna especialmente perigoso?  E o poderio físico de qualquer governo mundial não será esmagador em comparação ao de qualquer um de seus súditos individuais?

 

I. As evidências empíricas

Permitam-me interromper aqui minhas considerações teóricas abstratas para examinar brevemente as evidências empíricas envolvidas no tema em questão.  Como afirmado no início, o mito da segurança coletiva é tão disseminado quanto importante.  Não tenho conhecimento de qualquer pesquisa sobre o assunto, mas arriscaria prever que o mito hobbesiano é aceito mais ou menos incondicionalmente por bem mais de 90% da população adulta.  No entanto, acreditar em algo não o torna verdadeiro.  Na realidade, se aquilo em que alguém acredita é falso, suas ações levarão ao fracasso.  E quanto às evidências?  Elas apoiam Hobbes e seus seguidores ou confirmam os medos e as alegações dos adversários anarquistas?

Os Estados Unidos foram fundados explicitamente como um estado protetor à la Hobbes.  Cito, nesse sentido, a Declaração de Independência de Jefferson:

Consideramos que essas verdades são autoevidentes: que todos os homens foram criados iguais; que foram dotados por seu criador de direitos inalienáveis; que entre esses estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade: que, para assegurar esses direitos, os governos são instituídos entre os homens, decorrendo seus poderes justos do consentimento dos governados.

Aí está: o governo americano foi instituído para cumprir uma e apenas uma tarefa: proteger a vida e a propriedade.  Assim, ele oferece o exemplo perfeito para avaliarmos a validade da sustentação hobbesiana a respeito da condição dos estados como protetores.  Após mais de dois séculos de estatismo protetor, em que situação se encontram nossa proteção e cooperação humana pacífica?  A experiência americana com o estatismo protetor foi um sucesso?

Segundo as declarações de nossos governantes e de seus guarda-costas intelectuais (que nunca foram tantos quanto hoje), estamos mais protegidos e mais seguros do que nunca.  Estamos supostamente protegidos do aquecimento e do resfriamento global, da extinção dos animais e das plantas, dos maus tratos de maridos e mulheres, de pais e empregadores, da pobreza, da doença, dos desastres, da ignorância, do preconceito, do racismo, do sexismo, da homofobia e de outros incontáveis inimigos e perigos públicos.  Na verdade, contudo, as coisas são incrivelmente diferentes.  Para nos proporcionar toda essa proteção, os administradores estatais expropriam, entra ano, sai ano, mais de 40% da renda dos produtores privados.  A dívida e o passivo públicos aumentam sem parar, aumentando assim a necessidade de expropriações futuras.  Devido à substituição do ouro pelo papel-moeda estatal, a insegurança financeira aumentou gravemente e somos roubados pela depreciação da moeda continuamente.  Cada detalhe da vida privada, da propriedade, do comércio e dos contratos é regulamentado por montanhas cada vez mais altas de leis (legislação), gerando assim insegurança jurídica e risco moral.  Em especial, fomos gradualmente privados do direito de exclusão implicado pelo próprio conceito de propriedade privada.  Como vendedores não podemos vender e como compradores não podemos comprar de quem quer que queiramos.  E como membros de associações não temos direito de assinar qualquer contrato restritivo que acreditemos ser mutuamente proveitoso.  Como americanos, precisamos aceitar imigrantes que não desejamos como nossos vizinhos.  Como professores, não podemos nos livrar de estudantes pífios ou de mau comportamento.  Como empregadores, ficamos presos a empregados incompetentes ou destrutivos.  Como locadores, somos forçados a aguentar locatários ruins.  Como banqueiros e seguradores, não nos permitem evitar riscos ruins.  Como donos de restaurante ou bar, temos de acomodar fregueses indesejados.  E como membros de associações privadas, somos obrigados a aceitar indivíduos e atos que violam nossas próprias regras e restrições.  Em suma, quanto mais o estado aumentou seus gastos em previdência social e em segurança pública, mais nossos direitos de propriedade privada foram corroídos, mais nossa propriedade foi expropriada, confiscada, destruída ou depreciada, e mais fomos privados da própria base de toda a proteção: a independência econômica, a solidez financeira e a riqueza pessoal.[4]  O trajeto de qualquer presidente e de praticamente todos os membros do Congresso está coberto de centenas de milhares, se não de milhões, de vítimas desconhecidas da desgraça econômica pessoal, da falência financeira, do empobrecimento, do desespero, da penúria e da frustração.

O retrato parece ainda mais sombrio quando consideramos as relações exteriores.  Durante toda a sua história, a porção continental dos Estados Unidos nunca foi atacada territorialmente por quaisquer forças armadas estrangeiras.  (Pearl Harbor foi o resultado de uma provocação americana anterior.)  No entanto, os Estados Unidos gozam da distinção de terem tido um governo que declarou guerra contra uma grande parte de sua própria população e empreendeu o assassinato cruel de centenas de milhares de seus próprios cidadãos.  Além disso, embora as relações entre cidadãos norte-americanos e estrangeiros não pareçam ser anormalmente conflituosas, o governo americano, quase que desde sua origem, levou adiante um expansionismo agressivo, incansável.  Começando na Guerra Hispano-Americana, culminando na Primeira e na Segunda Guerras mundiais e prosseguindo até o presente, o governo americano se meteu em centenas de conflitos externos e se elevou à posição de poder imperialista dominante no mundo.  Assim, quase todos os presidentes desde a virada do século também foram responsáveis pelo assassinato, pela morte e pela fome de incontáveis estrangeiros inocentes por todo o mundo.  Em suma, enquanto ficávamos mais indefesos, pobres, ameaçados e inseguros, o governo americano ficava cada vez mais ousado e agressivo.  Em nome da segurança nacional, ele nos defende, equipado com reservas enormes de armas de agressão e de destruição em massa, por meio da intimidação de novos “Hitlers”, grandes ou pequenos, e de todos os suspeitos de simpatizarem com os “Hitlers” em todo e qualquer lugar fora do território americano.[5]

As evidências empíricas parecem claras, portanto.  A crença em um estado protetor parece ser um erro evidente, e a experiência americana com o estatismo protetor, um fracasso completo.  O governo americano não nos protege.  Pelo contrário, não existe perigo maior à nossa vida, propriedade e prosperidade do que o governo americano, e o presidente americano em especial é o perigo mais ameaçador e armado do mundo, capaz de arruinar qualquer pessoa que se oponha a ele e de destruir o mundo todo.

 

II. Como pensar a respeito da resposta estatista

Os estatistas reagem de maneira muito parecida à dos socialistas quando confrontados com o desempenho econômico lastimável da União Soviética e de seus estados-satélites.  Eles não negam necessariamente os fatos decepcionantes, mas tentam afastá-los alegando que eles são o resultado de uma discrepância (desvio) sistemática entre o estatismo “real” e “ideal” ou “verdadeiro”, respectivamente o socialismo.  Até hoje, os socialistas afirmam que o “verdadeiro” socialismo não foi refutado pelas evidências empíricas, e que tudo teria dado certo e uma prosperidade sem paralelo teria se seguido, se a versão do socialismo de Trotsky, de Bucharin ou, melhor ainda, deles mesmos, tivesse sido implementada.  Do mesmo modo, os estatistas interpretam todas as evidências aparentemente contrárias como apenas acidentais.  Se outro presidente tivesse chegado ao poder nesse ou naquele momento da história, ou se essa ou aquela mudança ou emenda constitucional tivesse sido aprovada, tudo teria se saído maravilhosamente bem, e paz e segurança sem paralelo teriam se seguido.  Na verdade, isso ainda pode ocorrer no futuro, se suas políticas forem empregadas.

Aprendemos com Ludwig von Mises como responder à estratégia evasiva (de imunização) dos socialistas.[6]  Enquanto a característica definidora — a essência — do socialismo, ou seja, a inexistência de propriedade privada dos fatores de produção, continuar de pé, nenhuma reforma adiantará de nada.  A ideia de uma economia socialista é uma contradictio in adjecto, e a afirmação de que o socialismo representa um modo mais elevado, mais eficiente de produção social é absurda.  Para que se possa alcançar seus fins com eficiência e sem desperdício no âmbito de uma economia de trocas baseada na divisão do trabalho, é necessário realizar cálculos monetários (contabilidade dos custos).  Afora o sistema de uma economia formada por um único lar autossuficiente primitivo, o cálculo monetário é, em qualquer situação, o único instrumento para executar ações racionais e eficientes.  Apenas sendo capaz de comparar insumos e produtos aritmeticamente em termos de um meio de troca comum (a moeda), uma pessoa pode avaliar se suas ações são bem-sucedidas ou não.  Em contraste marcante, o socialismo significa não haver economia ou poupança, porque, sob essas condições, o cálculo monetário e a contabilidade de custos são impossíveis por definição.  Se não existe propriedade privada de fatores de produção, então não existem preços para fatores de produção; logo, é impossível avaliar se eles estão sendo empregados economicamente.  Portanto, o socialismo não é um modo de produção mais elevado, mas, sim, um caos econômico e um retorno ao primitivismo.

Murray N. Rothbard explicou como responder à estratégia evasiva dos estatistas.[7]  Mas a lição de Rothbard, embora igualmente simples e clara e com implicações ainda mais relevantes, permanece até hoje muito menos conhecida e valorizada.  Enquanto a característica definidora — a essência — de um estado continuar de pé, ele explicou, nenhuma reforma, seja no âmbito do pessoal, seja no da constituição, terá utilidade.  Dado o princípio do governo — monopólio judicial e o poder de cobrar impostos —, qualquer noção de limitação de seus poderes e de proteção da vida e da propriedade individuais é ilusória.  Sob auspícios monopolísticos, o preço da justiça e da proteção tem de subir e sua qualidade, de cair.  Uma agência de proteção financiada por impostos é uma contradição em termos e levará a impostos cada vez mais altos e a proteção cada vez menor.  Ainda que um governo limitasse suas atividades exclusivamente à proteção de direitos de propriedade pré-existentes (como todos os estados protetores deveriam fazer), surgiria a questão mais profunda de quanta segurança oferecer.  Motivados (como quase todos) pelo interesse próprio e pelo custo de trabalhar, mas com o poder singular de cobrar impostos, a resposta do governo será invariavelmente a mesma: maximizar gastos em proteção — e quase toda a renda de um país pode concebivelmente ser consumida pelo custo da proteção — e, ao mesmo tempo, minimizar a produção de proteção.  Além disso, um monopólio judicial tem de levar à deterioração da qualidade da justiça e da proteção.  Se só se pode apelar ao governo para justiça e proteção, a justiça e a proteção serão distorcidas em favor do governo, não obstante constituições e supremas cortes.  Afinal, constituições e supremas cortes são constituições e cortes estatais, e qualquer limitação à ação do governo que possam representar é determinada por agentes da própria instituição sob análise.  Portanto, a definição de propriedade e de proteção será continuamente alterada e a abrangência jurisdicional, ampliada em benefício do governo.

Deste modo, Rothbard salienta, segue-se que, assim como o socialismo não pode ser reformado mas tem sim de ser abolido para se alcançar a prosperidade, a instituição do estado não pode ser reformada mas tem sim de ser abolida para se alcançar a justiça e a proteção.  “A defesa na sociedade livre (incluindo serviços de defesa da pessoa e da propriedade tais como a proteção policial e decisões judiciais)”, Rothbard conclui,

teria assim de ser ofertada por pessoas ou empresas que (a) obtivessem sua renda voluntariamente, e não pela coerção, e (b) não arrogassem para si — como o estado faz —o monopólio compulsório da proteção policial e judicial (…) as empresas de defesa teriam de ser tão livremente competitivas e não-coercitivas perante inocentes quanto quaisquer outros fornecedores de bens e serviços no livre mercado.  Os serviços de defesa, como todos os outros serviços, seriam vendáveis e apenas vendáveis.[8]

Isto é, todos os proprietários privados poderiam tomar parte das vantagens da divisão do trabalho e buscar uma melhor proteção de sua propriedade do que aquela proporcionada pela autodefesa, por meio da cooperação com outros proprietários e suas propriedades.  Todos poderiam comprar de, vender para ou celebrar contratos com qualquer pessoa relativos a serviços judiciais e de proteção, e se poderia, a qualquer momento, suspender unilateralmente qualquer cooperação com outrem e retornar à defesa autossuficiente, ou mudar suas filiações protetoras.

 

III. Em defesa da segurança privada

Tendo reconstruído o mito da segurança coletiva — o mito do estado — e criticado-o com fundamentos teóricos e empíricos, dedico-me agora à tarefa de construir uma defesa positiva da segurança e proteção privadas.  Para afastar o mito da segurança coletiva, compreender o erro implicado na ideia de um estado protetor não é suficiente.  Tão importante quanto, se não mais importante, é obter uma compreensão clara de como a alternativa de segurança não-estatista funcionaria na prática.  Rothbard, baseando-se na análise pioneira do economista franco-belga Gustave de Molinari[9], ofereceu-nos um esboço do funcionamento de um sistema de proteção e defesa de livre mercado.[10]  Devemos também a Morris e Linda Tannehill observações e análises brilhantes a esse respeito.[11]  Seguindo seu caminho, irei mais fundo em minha análise e apresentarei uma visão abrangente do sistema alternativo não-estatista de produção de segurança e de sua capacidade de lidar com ataques não apenas de indivíduos e gangues, mas também, e em especial, de estados.

Existe um entendimento muito disseminado — tanto entre libertários e liberais, como Molinari, Rothbard e os Tannehills, quanto entre a maioria dos outros debatedores da questão — de que a defesa é uma forma de seguro, e de que gastos em defesa representam uma espécie de apólice de seguro (preço).  Nesse sentido, como Rothbard e os Tannehills em especial enfatizavam, no âmbito de uma economia moderna complexa baseada em uma divisão de trabalho mundial, os candidatos com maior probabilidade de oferecerem serviços de proteção e defesa são as agências seguradoras.  Quanto melhor for a proteção da propriedade segurada, menos pedidos de indenização serão apresentados e, portanto, menores serão os custos da seguradora.  Assim, oferecer proteção com eficiência parece ser do interesse financeiro de toda seguradora; e, de fato, mesmo hoje em dia, embora restringidas e tolhidas pelo estado, agências seguradoras oferecem serviços muito diversificados de proteção e de indenização (compensação) a entidades privadas prejudicadas.  As empresas seguradoras atendem a um segundo requisito essencial.  Obviamente, quem oferece serviços de proteção tem de parecer apto a cumprir suas promessas para conquistar clientes.  Ou seja, é necessário possuir os meios econômicos — recursos tanto humanos quanto físicos — imprescindíveis para realizar a tarefa de lidar com os perigos, verdadeiros ou potenciais, do mundo real.  Segundo esse quesito, as agências seguradoras parecem ser candidatos perfeitos, também.  Elas operam em escala nacional e até internacional e possuem bens de monta espalhados por amplos territórios e além das fronteiras de um único estado.  Desse modo, elas têm um interesse próprio evidente na proteção efetiva e são grandes e economicamente poderosas.  Além disso, as empresas seguradoras estão ligadas por uma rede de acertos contratuais de assistência mútua e de arbitragem e por um sistema de resseguro internacional, representando um poder econômico somado que deixa muito para trás aquele da maioria, se não de todos, os governos atuais.

Gostaria de analisar mais a fundo e esclarecer sistematicamente essa sugestão: proteção e defesa são um seguro e podem ser oferecidas por agências seguradoras.  Para chegar a esse objetivo, duas questões têm de ser abordadas.  Primeiro, não é possível fazer um seguro contra todos os riscos da vida.  Não posso fazer um seguro contra cometer suicídio, por exemplo, ou contra queimar minha própria casa, ou contra ficar desempregado, ou contra não sentir vontade de sair da cama de manhã, ou contra sofrer perdas empreendedoriais, porque nesses casos tenho controle completo ou parcial sobre a probabilidade de o respectivo sinistro ocorrer.  Riscos como esses têm de ser suportados individualmente.  Ninguém além de mim tem qualquer possibilidade de administrá-los.  Assim, a primeira pergunta a ser feita é: o que torna a proteção e a defesa um risco segurável, ao invés de não-segurável?  Afinal, como acabamos de ver, isso não é evidente por si mesmo.  Na verdade, as pessoas não exercem um controle considerável sobre a probabilidade de um ataque ou de uma agressão à sua pessoa ou propriedade?  Agredindo ou provocando alguém, por exemplo, eu não trago um ataque deliberadamente à tona?  E não seria assim a proteção um risco não-segurável, como o suicídio ou o desemprego, pelo qual cada um tem de assumir total responsabilidade?

A resposta é um sim e um não com ressalvas.  Sim, na medida em que ninguém pode oferecer proteção incondicional, isto é, seguro contra qualquer tipo de agressão.  Ou seja, a proteção incondicional só pode ser oferecida, se é que o pode, por um indivíduo por sua própria conta e para ele mesmo.  Mas a resposta é não, na medida em que se trate de proteção condicional.  Apenas ataques e agressões provocados pela vítima não podem ser segurados.  No entanto, pode-se fazer seguro contra ataques não provocados e, portanto, acidentais.[12]  Isto é, a proteção se torna um bem segurável apenas se e na medida em que um agente segurador restringir contratualmente as ações do segurado, de modo a excluir qualquer provocação possível de sua parte.  Várias empresas seguradoras podem discordar a respeito da definição específica de provocação, mas não pode haver discordâncias entre as seguradoras a respeito do princípio de que todas têm de excluir (proibir) sistematicamente todas as ações provocativas e agressivas entre seus próprios clientes.

Por mais elementar que essa primeira consideração sobre a natureza essencialmente defensiva — não-agressiva e não-provocativa — do seguro-proteção possa parecer, ela é de uma importância fundamental.  Primeiro, ela implica que qualquer agressor ou provocador conhecido não conseguiria encontrar uma seguradora, ficando, assim, economicamente isolado, frágil e vulnerável.  Por outro lado, ela implica que quem desejasse mais proteção do que aquela fornecida pela autodefesa autossuficiente só a conseguiria se e na medida em que se sujeitasse às normas específicas de não-agressão e de conduta civilizada.  Além disso, quanto maior o número de pessoas seguradas — e, em uma economia de trocas moderna, a maioria das pessoas deseja mais do que autodefesa para sua proteção —, maior seria a pressão econômica sobre os não-segurados remanescentes para adotar padrões idênticos ou semelhantes de conduta social não-agressiva.  Ademais, como resultado da competição entre seguradoras por clientes voluntários, adviria uma tendência à queda de preços por valor de propriedade segurada.  Ao mesmo tempo, uma tendência à padronização e unificação do direito real e contratual seria posta em marcha.  Contratos de proteção com descrições padronizadas de propriedades e serviços surgiriam; e, da cooperação estável entre diversas seguradoras em procedimentos de arbitragem, resultaria uma tendência à padronização e unificação das regras de processo, de provas e de resolução de conflitos (incluindo compensação, restituição, punição e retaliação) e a uma segurança jurídica cada vez maior e mais firme.  Todos, por adquirirem seguro de proteção, estariam unidos a uma empresa competitiva mundial na luta pela minimização da agressão (e, assim, pela maximização da proteção defensiva), e todos os conflitos e pedidos de indenização, não importam onde e por quem ou contra quem, recairiam na jurisdição de apenas uma ou de um conjunto específico de agências seguradoras e seus procedimentos de arbitragem estabelecidos em acordo.

 

IV. Mais a respeito do seguro contra agressão

Agora, uma segunda questão tem de ser abordada.  Ainda que a condição da proteção defensiva como um bem segurável seja aceita, existem modalidades notavelmente diferentes de seguro.  Consideremos apenas dois exemplos característicos: seguro contra desastres naturais, como terremotos, enchentes e furacões, e seguro contra acidentes ou desastres industriais, como mau funcionamento, explosões ou produtos defeituosos.  O primeiro tipo pode servir como um exemplo de seguro de grupo ou mútuo.  Algumas regiões são mais propensas a desastres naturais do que outras; em consequência, a demanda por e o preço do seguro serão mais elevados em algumas áreas do que em outras.  No entanto, todos os lugares dentro de certos limites territoriais são considerados pela seguradora como homogêneos quanto ao risco envolvido.  A seguradora presumivelmente conhece a frequência e o alcance do evento em questão para a região como um todo, mas nada sabe a respeito do risco específico de qualquer localidade determinada dentro da região.  Nesse caso, todas as pessoas seguradas pagarão a mesma apólice por valor segurado, e as apólices acumuladas em um dado período são presumivelmente suficientes para cobrir todos os pedidos de reparação feitos ao longo do mesmo período (do contrário, a indústria de seguros terá prejuízo).  Assim, os riscos individuais específicos são reunidos e segurados mutuamente.

Em contraste, o seguro industrial pode servir como exemplo de seguro individual.  Ao contrário dos desastres naturais, o risco segurado é o resultado da ação humana, isto é, de esforços produtivos.  Todo processo produtivo está sob o controle de um produtor individual.  Nenhum produtor deseja o fracasso ou o desastre, e, como vimos, apenas desastres acidentais — não-desejados — são seguráveis.  No entanto, ainda que em grande medida controlados e em geral bem-sucedidos, todos os produtores e as tecnologias de produção estão sujeitos a percalços e acidentes ocasionais fora de seu controle — uma margem de erro.  Contudo, como o resultado, ainda que não-desejado, de esforços individuais de produção e de técnicas de produção, o risco de acidentes industriais é essencialmente diferente de um produtor e processo de produção para outro.  Deste modo, o risco de diferentes produtores e tecnologias de produção não podem ser reunidos, e cada produtor tem de ser segurado individualmente.  Neste caso, a seguradora presumivelmente terá de conhecer a frequência do evento controverso ao longo do tempo, mas ela nada sabe a respeito da probabilidade de o evento ocorrer em qualquer momento específico, a não ser que sempre estarão em operação a mesma tecnologia de produção e o mesmo produtor.  Não há nenhuma suposição de que as apólices acumuladas ao longo de qualquer período dado serão suficientes para cobrir todos os pedidos de reparação apresentados naquele período.  Na verdade, a suposição que sustenta os lucros é que as apólices acumuladas ao longo de vários períodos de tempo serão suficientes para cobrir as reparações durante o mesmo múltiplo intervalo de tempo.  Consequentemente, nesse caso, a seguradora tem de manter reservas de capital para cumprir suas obrigações contratuais e, ao calcular suas apólices, tem de levar em conta o valor atual dessas reservas.

Assim, a segunda pergunta é: que tipo de seguro pode oferecer proteção contra ataques e agressões por terceiros?  Ela pode ser fornecida como um seguro de grupo, como aquele para desastres naturais, ou terá de ser oferecida na modalidade de seguro individual, como no caso de acidentes industriais?

Permitam-me registrar, de início, que ambas as modalidades de seguro representam apenas os dois extremos possíveis de um contínuo, e que a posição de qualquer risco específico nesse contínuo não é estabelecida definitivamente.  Devido aos progressos científicos e tecnológicos na meteorologia, geologia e engenharia, por exemplo, os riscos que eram antes considerados homogêneos (permitindo seguro mútuo) podem ficar cada vez menos homogêneos.  Essa tendência é notável no campo do seguro médico e de saúde.  Com os avanços da genética e da engenharia genética — impressão digital genética —, os riscos médicos e de saúde anteriormente considerados como homogêneos (não específicos) relativos a grandes conjuntos de pessoas se tornaram cada vez mais específicos e heterogêneos.

Com isso em mente, algo específico poderia ser dito a respeito do seguro de proteção em especial?  Creio que sim.  Afinal, embora todo seguro exija que o risco seja acidental sob o ponto de vista da seguradora e do segurado, o acidente de um ataque agressivo é distintamente diferente do acidente de um desastre natural ou industrial.  Enquanto os desastres naturais e os acidentes industriais são o resultado de forças naturais e da operação das leis da natureza, a agressão é o resultado de ações humanas; e enquanto a natureza é cega e não faz discriminações entre indivíduos, seja em um momento dado ou ao longo do tempo, um agressor pode fazer discriminações e alvejar deliberadamente vítimas específicas e escolher o momento do seu ataque.

 

V. Fronteiras políticas e seguro

Permitam-me, em primeiro lugar, diferenciar o seguro de proteção defensiva daquele contra desastres naturais.  Com frequência, faz-se uma analogia entre os dois, e é instrutivo investigar se ou em que medida ela procede.  A analogia é que, assim como todo indivíduo dentro de certas regiões geográficas é ameaçado pelo mesmo risco de terremotos, enchentes ou furacões, todo habitante dos Estados Unidos ou da Alemanha, por exemplo, enfrenta o mesmo risco de ser vitimado por um ataque estrangeiro.  À parte alguma similaridade superficial — que abordarei logo em seguida —, é fácil reconhecer duas falhas fundamentais na analogia.  Primeiro, as fronteiras de regiões assoladas por terremotos, enchentes ou furacões são estabelecidas e traçadas de acordo com critérios físicos objetivos e, assim, podem ser classificadas como naturais.  Em contraste marcante, as fronteiras políticas são fronteiras artificiais.  As fronteiras dos Estados Unidos mudaram durante todo o século XIX, e a Alemanha não existia como tal até 1871, mas era sim composta por quase 50 países distintos.  Certamente, ninguém sustentaria que essa remarcação das fronteiras norte-americanas e alemãs é o resultado da descoberta de que o risco de segurança dos norte-americanos e dos alemães dentro dos Estados Unidos e da Alemanha ampliados era, contrariamente à crença oposta antes prevalecente, homogêneo (idêntico).

Há uma segunda falha óbvia.  A natureza — terremotos, enchentes, furações — é cega em sua destruição.  Ela não faz discriminações entre lugares e objetos mais ou menos valiosos, mas sim ataca indiscriminadamente.  Em contraste marcante, um agressor pode fazer e de fato faz discriminações.  Ele não ataca ou agride lugares e coisas sem valor, como o deserto do Saara, mas atinge lugares e coisas que são valiosas.  Tudo o mais constante, quanto mais valioso for um lugar ou um objeto, maior a probabilidade de que seja alvo de uma agressão.

Isso suscita uma pergunta crucial: se as fronteiras políticas são arbitrárias e os ataques de qualquer tipo nunca são indiscriminados, mas, sim, dirigidos especificamente a lugares e coisas valiosas, haveria fronteiras não-arbitrárias separando diferentes zonas de risco de segurança (de ataque)?  A resposta é sim.  Essas fronteiras não-arbitrárias são aquelas da propriedade privada.  A propriedade privada é o resultado da apropriação e/ou produção de objetos ou efeitos físicos específicos por determinados indivíduos em determinados lugares.  Todo produtor-apropriador original (dono) demonstra por meio de suas ações que ele considera as coisas produzidas e apropriadas valiosas (bens), ou não as teria produzido ou apropriado.  As fronteiras da propriedade de todos são objetivas e estabelecidas intersubjetivamente.  Elas são simplesmente determinadas pela extensão e dimensão das coisas apropriadas e/ou produzidas por qualquer indivíduo específico.  E as fronteiras de todas as coisas e lugares valiosos são coextensivas às fronteiras da propriedade.  Em qualquer momento específico, toda coisa ou lugar de valor pertence a alguém; apenas lugares e coisas sem valor não têm dono.

Rodeados por outros homens, todo apropriador e produtor também pode se tornar o objeto de um ataque ou agressão.  Toda propriedade — em contraste a coisas (matéria) — é necessariamente valiosa; assim, todo dono de propriedade se torna um possível alvo dos ímpetos agressivos de outros homens.  Consequentemente, a escolha de todo proprietário em relação ao lugar e à forma de sua propriedade também será influenciada, entre outras incontáveis considerações, por preocupações de segurança.  Tudo o mais constante, todos irão preferir formas e lugares mais seguros de propriedade a formas e lugares menos seguros.  No entanto, não importa onde um proprietário e seus bens estejam localizados e qual seja a forma física de sua propriedade, todo proprietário, ao não abandonar sua propriedade mesmo diante de uma possível agressão, demonstra sua disposição pessoal de proteger e defender essas posses.

Contudo, se as fronteiras da propriedade privada são as únicas fronteiras não-arbitrárias em posição de relação sistemática com o risco de agressão, então se segue que existem tantas zonas de segurança diferentes quanto bens possuídos como propriedade, e que essas zonas não são maiores do que a extensão desses bens.  Isto é, ainda mais do que no caso de acidentes industriais, o seguro de propriedades contra agressões parece ser um exemplo de proteção individual, e não de grupo (mútua).

Enquanto o risco de acidentes de um processo de produção individual é tipicamente independente de sua localização — de tal modo que, se o processo fosse replicado pelo mesmo produtor em lugares diferentes, sua margem de erro permaneceria a mesma — o risco de agressão contra a propriedade privada — a planta de produção — é diferente de um lugar para o outro.  Por sua própria natureza de bens apropriados e produzidos privadamente, a propriedade é sempre independente e distinta.  Toda propriedade está situada em um local diferente e sob o controle de um indivíduo diferente, e cada lugar se defronta com um risco de segurança singular.  Pode fazer diferença para minha segurança, por exemplo, se eu resido no campo ou na cidade, em uma encosta ou em um vale, perto ou longe de um rio, oceano, porto, rodovia ou rua.  Na verdade, mesmo localidades contíguas não se defrontam com o mesmo risco.  Pode fazer diferença, por exemplo, se eu resido mais acima ou mais abaixo em uma montanha do que o meu vizinho, rio acima ou rio abaixo, mais perto ou mais longe do oceano, ou simplesmente ao norte, ao sul, a oeste ou a leste dele.  Além disso, toda propriedade, não importa onde esteja situada, pode ser moldada e transformada por seu dono de modo a aumentar sua segurança e reduzir a probabilidade de uma agressão.  Posso adquirir um revólver ou um cofre, por exemplo, ou posso ser capaz de derrubar um avião que esteja atacando meu quintal ou possuir uma arma a laser que pode matar um agressor a milhares de quilômetros de distância.  Assim, nenhum lugar e nenhuma propriedade são iguais a outro.  Cada proprietário terá de ser segurado individualmente, e para tanto cada seguradora contra agressões tem de manter reservas de capital suficientes.

 

VI. O estado democrático e a guerra total

A analogia tipicamente traçada entre seguro contra desastres naturais e agressão externa é fundamentalmente falha.  Assim como a agressão nunca é indiscriminada, mas sim seletiva e direcionada, também o é a defesa.  Todos têm lugares e coisas diferentes a defender, e o risco de segurança de ninguém é igual ao de outra pessoa.  E, no entanto, a analogia também possui um fundo de verdade.  Contudo, qualquer semelhança entre desastres naturais e agressão externa se deve não à natureza da agressão e da defesa, mas à natureza um tanto específica da agressão e da defesa estatais (conflito interestatal).  Como explicado acima, um estado é uma agência que exerce um monopólio territorial compulsório de proteção e do poder de cobrar impostos, e qualquer agência assim será comparativamente mais agressiva porque pode externalizar os custos de tal comportamento sobre seus súditos.  No entanto, a existência de um estado não aumenta apenas a frequência da agressão; ela muda todo o seu caráter.  A existência de estados, e sobretudo de estados democráticos, implica que a agressão e a defesa — a guerra — tenderão a ser transformadas em guerras totais, indiscriminadas.[13]

Considere por um momento um mundo completamente livre de estados.  A maioria dos proprietários seria segurada individualmente por empresas seguradoras grandes, com frequência multinacionais, dotadas de reservas de capital enormes.  A maioria se não todos os agressores, comportando riscos ruins, ficaria sem qualquer tipo de seguro.  Nessa situação, todo agressor ou grupo de agressores desejaria restringir seus alvos, preferencialmente a propriedades não-seguradas, e evitar todos os “danos colaterais”, já que, do contrário, eles se veriam confrontados com uma ou mais poderosas agências profissionais de defesa.  Do mesmo modo, a violência defensiva seria altamente seletiva e direcionada.  Os agressores seriam indivíduos ou grupos específicos, situados em lugares específicos e providos de recursos específicos.  Em reação a ataques a seus clientes, as agências seguradoras alvejariam esses lugares e recursos em retaliação, e desejariam evitar danos colaterais, já que, do contrário, elas se envolveriam com e seriam responsáveis perante outras seguradoras.

Tudo isso muda inteiramente em um mundo estatista com conflitos interestatais.  Primeiro, se um estado, os Estados Unidos, atacar outro, por exemplo o Iraque, esse não é um ataque apenas de um número limitado de pessoas, dotadas de recursos limitados e situados em um lugar claramente identificável.  Ao contrário, é um ataque de todos os norte-americanos e com todos os seus recursos.  Todo norte-americano supostamente paga impostos ao governo e está assim, de facto, queira ele ou não, envolvido em toda agressão do governo.  Assim, embora seja obviamente falso sustentar que todo norte-americano se defronta com o mesmo risco de ser atacado pelo Iraque, (por mais baixo ou inexistente que esse risco seja, ele é certamente mais alto na cidade de Nova York do que em Wichita, Kansas, por exemplo) todo norte-americano torna-se igual em relação à sua participação ativa, ainda que nem sempre voluntária, em cada uma das agressões de seu governo.

Segundo, assim como o agressor é um estado, o agredido também o é: o Iraque.  Assim como sua contraparte, os Estados Unidos, o governo iraquiano tem o poder de cobrar impostos de seu povo ou de alistá-lo em suas forças armadas.  Como pagador de impostos ou recruta, todo iraquiano está envolvido na defesa de seu governo do mesmo modo que todo norte-americano é arrastado para o ataque do governo americano.  Assim, a guerra se torna uma guerra de todos os norte-americanos contra todos os iraquianos, isto é, uma guerra total.  A estratégia tanto do estado agressor quanto do defensor mudará conformemente.  Enquanto o agressor continua tendo de ser seletivo quanto aos alvos de seu ataque, ainda que seja pela única razão de que até as agências cobradoras de impostos (os estados) são em última análise limitadas pela escassez, o agressor tem pouco ou nenhum incentivo para evitar ou minimizar danos colaterais.  Ao contrário, dado que toda a população e a riqueza nacional estão envolvidas no esforço defensivo, danos colaterais, seja de vidas ou de propriedades, são até desejáveis.  Não existe nenhuma distinção clara entre combatentes e não-combatentes.  Todos são inimigos, e qualquer propriedade oferece apoio ao governo atacado.  Assim, todos e tudo estão dentro do jogo.  Do mesmo modo, o estado defensor estará pouco preocupado com danos colaterais que resultem de sua retaliação ao agressor.  Todo cidadão do estado agressor é um inimigo e todas as suas propriedades são propriedades inimigas, tornando-se assim um possível alvo de retaliação.  Além disso, todo estado, em conformidade com esse caráter de guerra interestatal, desenvolverá e empregará mais armas de destruição em massa, como bombas atômicas, em vez de armas de precisão de longo alcance, como minha imaginária arma a laser.

Assim, a semelhança entre guerras e catástrofes naturais — sua aparente destruição e devastação indiscriminadas — é um traço exclusivo de um mundo estatista.

 

VII. Seguro e incentivos

Isso nos leva ao último problema.  Vimos que, assim como toda propriedade é privada, toda defesa tem de ser segurada individualmente por agências seguradoras capitalizadas, de modo muito parecido a seguros contra acidentes industriais.  No entanto, também vimos que ambas as modalidades de seguro diferem em um aspecto fundamental.  No caso de seguros defensivos, a localização da propriedade segurada importa.  A apólice por valor segurado será diferente em localidades diferentes.  Além disso, os agressores podem se locomover, seu arsenal de armas pode mudar, e toda a natureza da agressão pode se alterar com a presença de estados.  Assim, mesmo considerando-se a localização inicial da propriedade, o preço por valor segurado pode se alterar com mudanças no meio social ou nas vizinhanças do local.  Como um sistema de agências seguradoras em competição reagiria a esse desafio?  Em especial, como ele lidaria com a existência de estados e agressão estatal?

Ao respondermos essas questões, é essencial lembrar algumas considerações econômicas elementares.  Tudo o mais constante, proprietários privados em geral, e donos de empresa em especial, preferem localizações com custos de proteção baixos (apólices mais baratas) e valores de propriedade em alta àquelas com custos de proteção elevados e valores de propriedade em queda.  Consequentemente, há uma tendência à migração de pessoas e bens de áreas de alto risco e valores de propriedade em queda para áreas de baixo risco e valores de propriedade em alta.  Além disso, custos de proteção e valores de propriedade relacionam-se diretamente.  Tudo o mais constante, custos de proteção mais altos (riscos maiores de agressão) implicam valores de propriedade menores ou em queda, e custos de proteção menores implicam valores de propriedade maiores ou em alta.  Essas leis e tendências definem a operação de um sistema competitivo de agências seguradoras de proteção.

Primeiro, ao passo que um monopolista financiado por impostos manifestará uma tendência a aumentar o custo e o preço da proteção, agências seguradoras privadas voltadas para o lucro se esforçam para reduzir o custo de proteção e, assim, fazem os preços cair.  Ao mesmo tempo, agências seguradoras estão, mais do que ninguém, interessadas em valores de propriedade em constante alta, porque isso implica não apenas que suas próprias posses se apreciam, mas também e sobretudo que haverá mais propriedades de terceiros para serem seguradas.  Em contraste, se o risco de agressão aumenta e os valores de propriedade caem, há menos valor para ser segurado, enquanto o custo de proteção e o preço do seguro aumentam, implicando um ambiente de negócios desfavorável para uma seguradora.  Consequentemente, empresas seguradoras estariam sob uma pressão econômica permanente para promover a condição favorável e evitar a condição desfavorável.

Essa estrutura de incentivos tem um impacto fundamental na operação das seguradoras.  Primeiro, no tocante ao caso aparentemente mais simples da proteção contra crimes e criminosos comuns, um sistema de seguradoras em competição levaria a uma mudança dramática na política de crimes atual.  Para reconhecer a dimensão dessa mudança, é instrutivo observar primeiro a atual e, portanto, familiar política estatista de crimes.  Embora seja do interesse dos agentes estatais combater o crime privado comum (ainda que seja apenas para que existam mais propriedades das quais cobrar impostos), na condição de agentes financiados por impostos, eles têm pouco ou nenhum interesse em ser especialmente eficientes na tarefa de impedi-lo, ou, caso ele já tenha ocorrido, de compensar suas vítimas e prender ou punir os criminosos.  Além disso, sob condições democráticas, as coisas só pioram.  Porque se todos — tanto agressores quanto não-agressores, tanto residentes de áreas de alta criminalidade quanto os de áreas de baixa criminalidade — podem votar e ser eleitos para cargos públicos, uma redistribuição sistemática de direitos de propriedade de não-agressores para agressores e de residentes de áreas de baixa criminalidade para os de áreas de alta criminalidade é posta em ação e o crime será na verdade estimulado.  Por isso, o crime, e consequentemente a demanda por serviços de segurança privada de todos os tipos, nunca estiveram tão elevados.  Ainda mais escandalosamente, ao invés de compensar as vítimas de crimes que ele não evitou (como deveria), o governo força as vítimas a pagar mais uma vez, como pagadoras de impostos, pelo custo da apreensão, da prisão, da reabilitação e/ou do lazer de seus agressores.  E ao invés de cobrar preços de proteção mais altos em áreas de alta criminalidade e mais baixos em áreas de baixa criminalidade, como as seguradoras fariam, o governo faz exatamente o contrário.  Ele cobra impostos mais altos em áreas de baixa criminalidade e de valores de propriedade elevados do que em áreas de alta criminalidade e de valores de propriedade baixos, ou chega a subsidiar os residentes destas últimas áreas — as favelas — à custa daqueles das primeiras áreas, minando condições sociais desfavoráveis ao crime e promovendo aquelas que o favorecem.[14]

A operação de seguradoras concorrentes seria marcadamente distinta.  Primeiro, se uma seguradora não impedisse um crime, ela teria de indenizar a vítima.  Assim, as seguradoras, mais do que ninguém, desejariam ser eficientes na prevenção do crime.  E ainda que elas não conseguissem evitá-lo, iriam querer ser eficientes na detecção, apreensão e punição dos criminosos, porque, ao encontrar e prender um criminoso, a seguradora poderia forçá-lo — e não a vítima e sua seguradora — a pagar pelos danos e pelo custo de indenização.

Mais especificamente, assim como as empresas seguradoras atualmente mantêm e continuamente atualizam um detalhado inventário local de valores de propriedade, elas então manteriam e continuamente atualizariam um detalhado inventário local de crimes e criminosos.  Tudo o mais constante, o risco de agressão contra qualquer área de qualquer propriedade privada aumenta com a proximidade e a quantidade e os recursos de agressores em potencial.  Assim, as seguradoras teriam interesse em colher informações de crimes correntes e de criminosos conhecidos e sua localização, e seria de seu mútuo interesse em minimizar danos à propriedade, compartilhar essas informações entre si (assim como os bancos atualmente compartilham informações sobre riscos de crédito ruins entre si).  Além disso, as seguradoras também ficariam bastante interessadas em colher informações sobre crimes e agressores em potencial (ainda não cometidos ou conhecidos), e isso levaria a uma revisão e a uma melhora nas atuais estatísticas — estatais — de criminalidade.  Para prever a incidência futura de crimes e assim calcular seu preço atual (apólice), as seguradoras relacionariam a frequência, a descrição e o caráter dos crimes e criminosos com o ambiente social em que ocorrem e operam, e desenvolveriam e, sob pressão competitiva, refinariam continuamente um sistema elaborado de indicadores demográficos e sociológicos de crimes.[15]  Isto é, todo bairro seria descrito, e seus riscos avaliados, em termos e à luz de uma infinidade de indicadores de crimes, como a composição de gêneros, de faixas etárias, de raça, de nacionalidades, de etnias, de religiões, de línguas, de profissões e de rendas.

Consequentemente, e em marcante contraste com a situação atual, qualquer redistribuição interregional, racial, nacional, étnica, religiosa, linguística e de renda desapareceria, e uma fonte constante de conflitos sociais seria eliminada permanentemente.  Em seu lugar, a estrutura de preços (apólices) em crescimento tenderia a refletir com precisão o risco de cada região e seu ambiente social característico, de modo que ninguém seria forçado a pagar pelo risco de seguro de ninguém se não o seu e aquele associado ao seu bairro específico.  Ainda mais importante, baseado em seu sistema continuamente atualizado e refinado de estatísticas de crimes e valores de propriedade e motivado, além disso, pela mencionada tendência de migração de lugares de risco-alto/valor-baixo (logo, “ruins”) para lugares de risco-baixo/valor-alto (logo, “bons”), um sistema concorrencial de seguradoras contra agressão promoveria uma tendência ao progresso civilizatório (e não à descivilização).

Os governos — e governos democráticos em especial — solapam bairros “bons” e promovem “ruins” por meio de seus impostos e políticas distributivas.  Eles também fazem isso, e possivelmente com um efeito ainda mais danoso, por meio de sua política de integração forçada.  Essa política tem dois aspectos.  Por um lado, para os proprietários e residentes em lugares e bairros “bons” que se defrontam com um problema de imigração, a integração forçada significa que eles têm de aceitar, sem discriminação, qualquer imigrante doméstico como usuário ou turista em rodovias públicas, como consumidores, clientes, residentes ou vizinhos.  Eles são proibidos por seu governo de excluir qualquer pessoa, inclusive alguém que considerem um indesejado risco em potencial, da imigração.  Por outro lado, para os proprietários e residentes em lugares e bairros “ruins”, que vivenciam a emigração e não a imigração, a integração forçada significa que eles são impedidos de se autoprotegerem com eficiência.  Ao invés de poderem se livrar por si mesmos do crime, por meio da expulsão de criminosos conhecidos de seu bairro, eles são forçado por seu governo a viver na companhia permanente a seus agressores.[16]

Os resultados de um sistema de seguradoras privadas de proteção estariam em oposição absoluta àqueles efeitos e tendências tão conhecidos da proteção estatal contra o crime.  Sem dúvida, as seguradoras não poderiam eliminar as diferenças entre bairros “bons” e “ruins.”  Na verdade, essas diferenças poderiam ficar até mais pronunciadas.  No entanto, impelidos por seu interesse em valores de propriedade em alta e em custos de proteção em queda, as seguradoras promoveriam uma tendência a se desenvolver erguendo e cultivando bairros “bons” e “ruins.”  Assim, em bairros “bons”, as seguradoras adotariam uma política de imigração seletiva.  Diferentemente de estados, elas não poderiam e não iriam querer desprezar as inclinações discriminatórias dos segurados contra imigrantes.  Pelo contrário, ainda mais do que qualquer um de seus clientes, as seguradoras estariam interessadas na discriminação: admitindo apenas aqueles imigrantes cuja presença implicasse diminuição de risco de crimes e aumento de valores de propriedade e excluindo aqueles cuja presença levasse a riscos maiores e valores de propriedade menores.  Isto é, ao invés de eliminar a discriminação, as seguradoras racionalizariam e aprimorariam sua prática.  Baseadas em suas estatísticas sobre crimes e valores de propriedade, e a fim de reduzir o custo de proteção e aumentar os valores de propriedade, as seguradoras formulariam e refinariam continuamente várias regras e procedimentos restritivos (de exclusão) relativos à imigração e a imigrantes e, assim, confeririam precisão quantitativa — sob a forma de preços ou diferenças de preços — ao valor da discriminação (e ao custo da não-discriminação) contra imigrantes em potencial (como de alto ou baixo risco e quanto ao seu valor produtivo).

De modo semelhante, em bairros “ruins”, os interesses das seguradoras e dos segurados coincidiriam.  As seguradoras não iriam querer suprimir as inclinações à expulsão entre os segurados contra criminosos conhecidos.  Elas racionalizariam tais tendências oferecendo descontos seletivos nos preços (condicionados a operações específicas de limpeza).  De fato, em cooperação uma com a outra, as seguradoras iriam querer expulsar criminosos conhecidos não apenas de sua vizinhança imediata, mas da própria civilização, levando-os ao deserto ou à fronteira aberta da floresta amazônica, ao Saara ou às regiões polares.

 

VIII. Seguro contra a agressão do estado

E quanto à defesa contra o estado?  Como as seguradoras nos protegeriam da agressão do estado?

Primeiro, é essencial lembrar que governos, na condição de monopolistas compulsórios, financiados por impostos, são inerentemente perdulários e ineficientes em qualquer coisa que façam.  Isso também é verdadeiro para a tecnologia e para a produção de armas, para a estratégia e para a inteligência militar, sobretudo em nosso tempo de alta tecnologia.  Deste modo, os estados não poderiam competir dentro do mesmo território contra agências seguradoras financiadas voluntariamente.  Além disso, a regra mais importante e geral dentre as regras restritivas a respeito da imigração — e formuladas pelas seguradoras para diminuir os custos de proteção e aumentar os valores da propriedade — seria aquela relativa aos agentes do governo.  Estados são inerentemente agressivos e representam um perigo permanente a todos os segurados e seguradoras.  Assim, as seguradoras em especial iriam querer excluir ou restringir seriamente — como risco potencial de segurança — a imigração (entrada territorial) de todos os agentes conhecidos do governo, e induziriam os segurados, seja como uma condição para o seguro ou para uma apólice menor, a excluir ou limitar seriamente qualquer contato direto com agentes conhecidos do governo, fosse como visitante, consumidor, cliente, residente ou vizinho.  Isto é, onde quer que as empresas seguradoras operassem — em todos os territórios livres —, os agentes estatais seriam tratados como párias rejeitados, potencialmente mais perigosos do que qualquer criminoso comum.  Desse modo, os estados e seu pessoal poderiam operar e residir apenas em territórios separados de, e no entorno de, territórios livres.  Além disso, devido à produtividade econômica comparativamente mais baixa dos territórios estatistas, os governos se enfraqueceriam continuamente pela emigração de seus residentes de maior valor produtivo.

Agora, e se um governo decidisse atacar ou invadir um território livre?  É mais fácil falar isso do que fazer!  Quem e o que ele atacaria?  Não haveria nenhum oponente estatal.  Apenas proprietários privados de bens e suas agências seguradoras privadas existiriam.  Ninguém, e muito menos as seguradoras, presumivelmente se envolveria em agressões ou mesmo em provocações.  Se houvesse alguma agressão ou provocação contra o estado, essa seria a ação de uma pessoa específica, e nesse caso o interesse do estado e das agências seguradoras coincidiriam perfeitamente.  Ambos iriam querer ver o agressor punido e julgado responsável por todos os danos causados.  Mas sem qualquer agressor-inimigo, como o estado poderia justificar um ataque e ainda mais um ataque tão indiscriminado?  E certamente ele teria de justificá-lo!  Porque o poder de todo governo, até do mais despótico deles, apoia-se em última análise na opinião popular e no consentimento, como la Boétie, Hume, Mises e Rothbard explicaram.[17]  Reis e presidentes podem emitir uma ordem de ataque, é claro.  Mas tem de haver multidões de outros homens dispostos a executar sua ordem para colocá-la em prática.  Tem de haver generais recebendo e seguindo a ordem, soldados dispostos a marchar, matar e morrer, e produtores domésticos dispostos a continuar produzindo para financiar a guerra.  Se faltasse essa disposição consensual porque as ordens dos governantes eram consideradas ilegítimas, até o governo aparentemente mais poderoso se tornaria ineficiente e entraria em colapso, como os exemplos recentes do Xá do Irã e da União Soviética ilustraram.  Assim, sob o ponto de vista dos líderes do estado, um ataque a territórios livres teria de ser considerado extremamente arriscado.  Nenhum esforço de propaganda, não importa quão elaborado, faria o povo acreditar que seu ataque fosse mais do que uma agressão contra vítimas inocentes.  Nessa situação, os governantes ficariam satisfeitos em manter um controle monopolístico sobre seu território atual, ao invés de correrem o risco de perder legitimidade e todo o seu poder em uma tentativa de expansão territorial.

No entanto, por mais improvável que isso pareça, o que aconteceria se um estado ainda assim atacasse e/ou invadisse um território livre contíguo?  Nesse caso, o agressor não encontraria uma população desarmada.  Apenas em territórios estatistas a população civil está caracteristicamente desarmada.  Estados por todo o mundo buscam desarmar seus próprios cidadãos de modo a ter maior poder de expropriá-los e cobrar impostos sobre eles.  Em contraste, seguradoras em territórios livres não iriam querer desarmar os segurados.  Tampouco poderiam fazê-lo.  Afinal, quem desejaria ser protegido por alguém que exigisse, como um primeiro passo, que se abrisse mão de seus principais meios de autodefesa?  Pelo contrário, as agências seguradoras estimulariam a propriedade de armas entre seus segurados como meio de dar descontos seletivos nos preços.

Além disso, fora a oposição de cidadãos armados privadamente, o estado agressor encontraria a resistência de não apenas uma mas com toda a probabilidade de várias agências seguradoras e de resseguros.  No caso de um ataque ou invasão bem-sucedido, essas seguradoras se defrontariam com enormes pagamentos de indenização.  Ao contrário do estado agressor, no entanto, essas seguradoras seriam empresas eficientes e competitivas.  Tudo o mais constante, o risco de um ataque — e, logo, o preço do seguro de defesa — seria maior em localidades adjacentes ou muito próximas a territórios estatistas do que em lugares distantes de qualquer estado.  Para justificar esse preço mais elevado, as seguradoras teriam de demonstrar prontidão defensiva vis-à-vis qualquer possível agressão estatal contra seus clientes, sob a forma de serviços de inteligência, de propriedade de armas e equipamentos apropriados, e de pessoal e treinamento militar.  Em outras palavras, as seguradoras estariam preparadas — efetivamente equipadas e treinadas — para a contingência de um ataque estatal e prontas para reagir com uma estratégia de defesa dupla.  Por um lado, no tocante às suas operações em territórios livres, as seguradoras estariam prontas para expulsar, capturar ou matar invasores, tentando ao mesmo tempo evitar ou minimizar danos colaterais.  Por outro lado, no tocante às suas operações em territórios estatais, as seguradoras estariam prontas para alvejar o agressor — o estado — em retaliação.  Isto é, as seguradoras estariam prontas para contra-atacar e matar, seja com armas precisas de longa distância ou com grupos de assassinato, agentes estatais do topo da hierarquia governamental, como reis, presidentes ou primeiros-ministros, até a base, tentando ao mesmo tempo evitar ou minimizar danos colaterais à propriedade de civis inocentes (agentes não-estatais), e estimulariam assim a resistência interna contra o governo agressor, promoveriam sua deslegitimização e, possivelmente, incitariam a liberação e a transformação do território estatal em um país livre.

 

IX. Recuperando nosso direito de autodefesa

Completo assim o meu argumento.  Primeiro, mostrei que a ideia de um estado protetor e da proteção estatal da propriedade privada está baseada em um erro teórico fundamental, e que esse erro tem tido consequências desastrosas: a destruição e a insegurança da propriedade privada e guerras perpétuas.  Segundo, mostrei que a resposta correta à pergunta de quem deve defender os proprietários privados da agressão é a mesma para a produção de qualquer outro bem ou serviço: proprietários privados, cooperação baseada na divisão do trabalho e competição de mercado.  Terceiro, expliquei como um sistema de seguradoras em busca de lucro minimizaria com eficiência a agressão, seja por criminosos privados ou por estados, e promoveria uma tendência à civilização e à paz perpétua.  A única tarefa que falta, então, é implementar essas ideias: deixar de consentir e de se dispor a cooperar com o estado e promover sua deslegitimização perante a opinião pública, convencendo outros a fazer o mesmo.  Sem a percepção e o juízo errôneos do povo quanto à justiça e à necessidade do estado, e sem a cooperação voluntária do povo, até o governo aparentemente mais poderoso implodiria e seus poderes, sumiriam.  Deste modo libertados, recuperaríamos nosso direito de autodefesa e seríamos capazes de nos voltar a agências livres e não-regulamentadas em busca de eficiente ajuda profissional em todas as questões de proteção e de solução de conflitos.

 

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Notas

[1] James M. Buchanan and Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1962); James M. Buchanan, The Limits of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1975); para uma crítica, cf. Murray N. Rothbard, “Buchanan and Tullock’s Calculus of Consent,” em idem, The Logic of Action, vol. 2, Applications and Criticism from the Austrian School (Cheltenham, U.K.: Edward Elgar, 1995); idem, “The Myth of Neutral Taxation,” em ibid.; Hans-Hermann Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer, 1993), cap. 1.

[2] Sobre esse ponto específico, cf. Lysander Spooner, No Treason: The Constitution of No Authority (Larkspur, Colo.: Pine Tree Press, 1996).

[3] Cf. Hans-Hermann Hoppe, “The Trouble With Classical Liberalism,” Rothbard-Rockwell Report 9, no. 4 (1998).

[4] Cf. Hans-Hermann Hoppe, “Where The Right Goes Wrong,” Rothbard-Rockwell Report 8, no. 4 (1997).

[5] Cf. John Denson, ed., The Costs of War (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1997).

[6] Ludwig von Mises, Socialism (Indianapolis: Liberty Classics, 1981); Hans-Hermann Hoppe, Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo (Instituto Rothbard, 2010), cap. 6.

[7] Murray N. Rothbard, A Ética da Liberdade (Instituto Rothbard, 2010), esp. caps. 22 e 23.

[8] Murray N. Rothbard, Power and Market (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977), p. 2.

[9] Gustave de Molinari, Da Produção de Segurança (New York: Center for Libertarian Studies, 1977).

[10] Murray N. Rothbard, Power and Market, cap. 1; idem, For A New Liberty (New York: Collier, 1978), caps. 12 and 14.

[11] Morris and Linda Tannehill, The Market for Liberty (New York: Laissez Faire Books, 1984), sobretudo parte 2.

[12] Sobre a “lógica” do seguro, cf. Ludwig von Mises, Human Action (Chicago: Regnery, 1966), cap. 6; Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1993), pp. 498ff; Hans-Hermann Hoppe, “On Certainty and Uncertainty, Or: How Rational Can Our Expectations Be?” Review of Austrian Economics10, no. 1 (1997); também Richard von Mises, Probability, Statistics, and Truth (New York: Dover, 1957); Frank H. Knight, Risk, Uncertainty, and Profit (Chicago: University of Chicago Press, 1971).

[13] Sobre a relação entre estado e guerra, e sobre a transformação histórica da guerra de limitada (monárquica) em total (democrática), cf. Ekkehard Krippendorff, Staat and Krieg (Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1985); Charles Tilly, “War Making and State Making as Organized Crime,” in Bringing the State Back In, Peter B. Evans, Dietrich Rueschemeyer, Theda Skocpol, eds. (Cambridge: Cambridge University Press, 1985); John F.C. Fuller, The Conduct of War (New York: Da Capo Press, 1992); Michael Howard, War in European History (New York: Oxford University Press, 1976); Hans-Hermann Hoppe, “Time Preference, Government, and the Process of De-Civilization,” in The Costs of War, John V. Denson, ed. (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1997); Erik von Kuehnelt-Leddihn, Leftism Revisited (Washington, D.C.: Regnery, 1990).

[14] Sobre crime e punição, no passado e no presente, cf. Terry Anderson and P.J. Hill, “The American Experiment in Anarcho-Capitalism: The Not So Wild, Wild West,” Journal of Libertarian Studies 3, no. 1 (1979); Bruce L. Benson, “Guns for Protection, and Other Private Sector Responses to the Government’s Failure to Control Crime,” Journal of Libertarian Studies 8, no. 1 (1986); Roger D. McGrath, Gunfighters, Highwaymen, and Vigilantes: Violence on the Frontier (Berkeley: University of California Press, 1984); James Q. Wilson and Richard J. Herrnstien, Crime and Human Nature (New York: Simon and Schuster, 1985); Edward C. Banfield, The Unheavenly City Revisited (Boston: Little, Brown, 1974).

[15] Para uma visão geral sobre a medida em que as estatísticas oficiais? estatistas?, sobretudo sobre crimes, deliberadamente ignoram, deturpam ou distorcem os fatos conhecidos por razões da assim chamada política pública (correção política), cf. J. Philippe Rushton, Race, Evolution, and Behavior (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1995); Michael Levin, Why Race Matters (Westport, Conn.: Praeger, 1997).

[16] Cf. Hans-Hermann Hoppe, “Free Immigration or Forced Integration,” Chronicles (July 1995).

[17] Étienne de la Boétie, The Politics of Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude (New York: Free Life Editions, 1975); David Hume, “The First Principles of Government,” in idem, Essays: Moral, Political, and Literary (Oxford: Oxford University Press, 1971); Ludwig von Mises, Liberalism: In the Classical Tradition (San Francisco: Cobden Press, 1985); Murray N. Rothbard, Egalitarianism As A Revolt Against Nature and Other Essays (Washington, D.C.: Libertarian Review Press, 1974.).

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