20. Soberania para cidades e condados: descentralizando os estados americanos

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Em 2021, durante a era dos lockdowns do COVID-19 e dos decretos de máscara, o governador da Flórida, Ron DeSantis, assinou uma nova legislação proibindo amplamente a exigência de vacina por entidades privadas ou governos locais. A nova legislação também reforçou os esforços gerais do governo DeSantis para impedir que os governos locais imponham decretos de máscaras. Mais notavelmente, o governo interveio para impedir que os distritos escolares impusessem obrigatoriedades.

Esta abordagem, previsivelmente, suscitou oposição. Geralmente, os opositores dos esforços de DeSantis suplantar os decretos locais alegavam que os governos locais deveriam exercer algum grau de independência em relação às políticas estaduais.

Dias depois, quando pressionado sobre essa questão em uma entrevista coletiva, DeSantis respondeu com uma declaração filosófica sugerindo que as prerrogativas dos governos estaduais deveriam superar todos os outros níveis de governo. Especificamente, quando perguntado por que ele estava disposto a impor decretos estaduais aos governos locais – ou seja, “violando o princípio do autogoverno autônomo” – DeSantis respondeu:

     São os Estados Unidos da América, não os conselhos escolares Unidos ou as comissões dos condados da América. Portanto, os estados são os principais veículos para proteger as liberdades das pessoas, sua saúde, sua segurança, seu bem-estar em nosso sistema constitucional.[1]

Ele ainda enfatiza que os governos locais devem ficar à mercê de seu governo estadual, porque os governos locais “não têm o direito de fazer o que é errado”. O que está “errado”, claro, é decidido por políticos estaduais. Essa resposta implica fortemente que DeSantis é da opinião de que a Flórida – e aparentemente todos os outros estados também – devem funcionar como estados unitários. Ou seja, sua posição parece ser a de que o poder descentralizado é apropriado nas relações entre governos estaduais e governos federais – mas não tem papel na relação entre governos estaduais e governos locais.

Esse debate levanta uma questão importante que vai muito além do debate atual da Flórida sobre decretos de vacinas.

Estados unitários versus confederações

Essencialmente, a questão – pelo menos para os americanos – resume-se a saber se um ideal descentralista deve ou não ser aplicado apenas às relações entre os governos estaduais e o governo federal. Se isso se aplica apenas às relações Estado-Federação, então a descentralização aparentemente deveria parar nas fronteiras estaduais. Assim, se houvesse secessão formal ou de fato de um estado no futuro, esse estado passaria a funcionar como um estado unitário soberano. Exemplos atuais de estados unitários incluem a França e o Peru, nos quais o governo central exerce amplo e supremo poder sobre quaisquer subdivisões administrativas, como municípios, condados ou províncias. Além disso, estas entidades locais são criaturas do governo central, na medida em que o governo central as governa diretamente e podem até abolir os governos locais sem o consentimento local.

A maioria dos países do mundo emprega governos unitários. Além disso, os próprios estados-membros dos EUA são atualmente de natureza unitária. Municípios e condados são criações de leis estaduais, e governos municipais e distritais podem ser criados ou abolidos por atos do legislativo estadual. Em alguns estados, os governos locais gozam de algum grau de autonomia por meio de disposições ou estatutos de “autogoverno autônomo”, mas mesmo nesses casos, o poder político está desproporcionalmente com o governo estadual.

Isso contrasta com a relação Estado-Federação nos EUA. Embora o poder dos estados dos EUA em relação ao governo federal tenha sido completamente enfraquecido nas últimas décadas, ainda está claro que o governo dos EUA deve frequentemente contar com incentivos financeiros para obter o que deseja dos governos estaduais, em vez de impor políticas diretamente. De fato, a crise do COVID evidenciou os limites dos poderes federais dentro dos estados, na medida em que, ao contrário dos estados unitários, o governo nacional claramente nunca teve o poder legal de impor “lockdowns” em todo o país.

Por outro lado, devido às estruturas unitárias dos estados, os governadores estaduais – ao contrário do presidente dos EUA – exerceram imenso poder diretamente sobre os níveis mais baixos de governo. No caso dos governadores estaduais, isso significa que ele ou ela pode exercer autoridade direta sobre os governos municipais e distritais, impondo lockdowns, decretos de máscara e muito mais.

Portanto, fica a pergunta: quando os estados-membros dos EUA começarem a obter maior autonomia em relação ao governo federal dos EUA – o que é inevitável em um futuro próximo ou em um mais distante – isso simplesmente levará à criação de novos estados unitários exercendo poder político centralizado sobre suas próprias populações?

Parece que qualquer defesa de princípio da descentralização deve levar a apelos à descentralização também no nível estadual.

Afinal, apoiar um estado independente e unitário de facto ou de jure na Florida, por exemplo, seria simplesmente adotar o modelo europeu dominante.

Além disso, as eleições em um desses novos regimes unitários americanos se tornariam exatamente o que os defensores do colégio eleitoral procuraram evitar: as eleições estaduais refletiriam – e atualmente refletem – nada mais do que o majoritarismo, com o executivo escolhido com base no princípio de conquistar 50% dos votos mais um. Não haveria mecanismo para equilibrar as realidades políticas regionais como faz o colégio eleitoral com as eleições presidenciais agora.

Como transformar estados dos EUA em confederações

Se a descentralização é algo que levamos a sério – e não apenas uma manobra temporária para obter mais autonomia para certos governos estaduais – então os próprios governos estaduais devem ser limitados pela autonomia local.

Especificamente, a governança nesses locais deve ser submetida a ferramentas que protejam a autonomia local. Essas ferramentas incluem maiorias duplas, vetos locais e representação política não baseada no tamanho da população.

Por exemplo, vamos olhar para um estado como o Colorado. Se o estado se tornasse um estado unitário independente, a área metropolitana de Denver exerceria um poder quase absoluto sobre o resto do estado. A metade oeste do estado e as áreas metropolitanas fora de Denver estariam à mercê dos eleitores da área de Denver. Essa, é claro, é a situação atual em termos de política estadual.

A resposta para isso poderia ser dar às áreas metropolitanas fora de Denver uma maneira de vetar políticas estaduais que beneficiam apenas uma ou duas regiões do estado em detrimento de todas as outras. Por exemplo, poderia ser utilizado um sistema de dupla maioria. Isso significaria que mudanças legislativas significativas precisariam ser aprovadas tanto pela maioria dos eleitores em geral quanto pela maioria dos eleitores na maioria dos governos regionais. (Este sistema é atualmente usado na Suíça.) Da mesma forma, diferentes regiões do estado precisariam receber votos iguais num corpo legislativo. Dessa forma, cada região do estado estaria em pé de igualdade, independentemente da população de cada região. Isso evitaria que as regiões altamente povoadas passassem por cima das regiões mais rurais. Além disso, deveriam ser exigidas supermaiorias ao estilo dos antigos Artigos da Confederação.

Sem medidas como essas, esses governos unitários não seriam governados por outro princípio que não o majoritarismo.

Mas, talvez o mais importante de tudo, deve ser explícito que os municípios ou governos regionais do estado podem se separar legalmente. Sem essa garantia, estaríamos simplesmente olhando para uma eventual repetição do que vemos agora nos Estados Unidos: uma classe dominante entrincheirada na capital nacional exercendo um poder descomunal para forçar políticas em todas as regiões da nação, independentemente dos valores, leis ou preferências locais.

Assim, a visão de DeSantis de que os governos estaduais são necessariamente os “veículos primários” através dos quais a política deve ser feita é uma visão perigosa. Parece pressupor que há algo de mágico no nível estadual de governo e que não é necessária mais descentralização do poder.

DeSantis está, é claro, certo de que as tentativas federais de impor decretos nacionais de COVID são perigosas e ilegítimas. Mas ele está errado ao dizer que a descentralização é necessária apenas para limitar o poder federal. O perigo do poder estadual está especialmente presente para estados maiores, como Flórida, Califórnia, Nova York e Texas. Estes estados têm populações do tamanho de países europeus de média dimensão e, portanto, já consolidam demasiado poder num pequeno punhado de regimes unitários. Poderíamos contrastar estados como o Texas, por exemplo – com 25 milhões de pessoas governadas sob um regime unitário – com uma confederação descentralizada como a Suíça, com 8 milhões de pessoas espalhadas por vinte e seis cantões, majoritariamente autônomos. A maioria desses cantões tem populações inferiores a 1 milhão. Pode parecer bom para alguns secessionistas centralizar o poder político em Sacramento, Austin ou Tallahassee, desde que essas políticas tenham escapado da bota federal. Mas esse esquema só vai configurar uma eventual repetição dos tipos de abusos federais que vemos hoje.

 

 

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Notas

[1] “Transcrição da Conferência de Imprensa do Governador da Flórida, Ron DeSantis, 18 de novembro: Proíbe mandatos de vacina”, 18 de novembro de 2021. https://www.rev.com/blog/transcripts/florida-governor-ron-desantis-press-conference-transcript-november-18-bans-vaccine-mandates

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