A estabilização gera o caos

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caosOs planejadores centrais mundiais já falam em suspender por tempo indeterminado as operações dos mercados financeiros (idéia recentemente propugnada por Silvio Berlusconi). Desnecessário dizer que, não só tal medida não ajudaria em nada, como, ao contrário, atrasaria toda a recuperação econômica. Conversas sobre um novo Bretton Woods e uma moeda mundial única, gerida por um banco central mundial, seguem cada vez mais firmes.

Toda a discussão atual está centrada no problema da falta de crédito. Os bancos têm dinheiro – ou é o que dizem – mas não querem emprestar por simples temor; não querem emprestar porque os mercados estão tomados pela incerteza. Em outras palavras: a notícia da moda é que falta liquidez no mercado. E é justamente essa a desculpa que o Fed (bem como todos os outros bancos centrais mundiais) precisa para sair imprimindo dinheiro a rodo – não sem a entusiasmada aprovação de toda a elite bem pensante -, pensando que isso é o que basta para restaurar a liquidez ao sistema. (Veja esserecente aumento indecente da base monetária).

Todas as correntes keynesianas, bem como os monetaristas, concordam com essa idéia. Mas, por que ela está errada?

A liquidez é um efeito, não uma causa. A falta de liquidez é o efeito de as pessoas que têm o dinheiro não quererem emprestá-lo. Quando elas se recusam a emprestar, os mercados de crédito se tornam ilíquidos.

Atualmente nos EUA (e também no Brasil), as pessoas têm muito dinheiro com o qual transacionar. A oferta monetária, como mostrada no link acima, não caiu absolutamente nada em todo esse episódio. O que caiu foi a riqueza. O que caiu foram as valorações dos ativos. Não há menos dinheiro na economia. Para cada vendedor, tem havido um comprador. O dinheiro troca de mãos. Ele não desaparece. Só que as trocas ocorreram a preços menores. A riqueza desapareceu. Ativos tiveram seus preços remarcados para baixo.

Portanto, é correto dizer que ninguém tem liquidez (significando que os mercados de títulos – também chamados de mercado da dívida – não estão transacionando em grandes volumes). As bolsas de valores, é claro, ainda estão transacionando grandes volumes e são líquidas. É o mercado de títulos que se tornou ilíquido, e não é por falta de dinheiro. A quantidade de dinheiro aplicado em letras do Tesouro americano e em fundos mútuos é enorme.

Assim, é correto dizer que ninguém vai emprestar dinheiro. Mas é 100% errado dizer que ninguém tem dinheiro. Todos têm dinheiro, e por isso não precisam que os bancos centrais mundiais saiam imprimindo mais dinheiro. As pessoas não irão emprestar esse novo dinheiro, e os BCs não deveriam tentar tomar o lugar delas e se tornarem os emprestadores de última instância.

Novamente, o problema todo chama-se CRÉDITO. Economias de troca dependem do crédito. Conquanto o dinheiro em si seja uma forma de crédito, o crédito é muito maior em quantidade do que o dinheiro propriamente dito. Atualmente, existem muitos créditos ruins espalhados por toda a economia mundial por causa de bolhas geradas pela impressão de dinheiro desregrada dos bancos centrais (liderados pelo Fed). É um fato muito simples saber que um prestamista somente irá emprestar para um mutuário após ter avaliado a solvência, a capacidade creditícia do mutuário. Isso é feito, em parte, avaliando-se os ativos e passivos do mutuário. Um dos maiores problemas atuais é justamente que os prestamistas não estão sendo capazes de apurar os valores atuais dos ativos e passivos dos mutuários. Quase todas as empresas financeiras estão com suas carteiras cheias de ativos “tóxicos” de valores desconhecidos. Elas estão carregando passivos em forma de seguros, como os credit default swaps (ou swaps de crédito), em quantias e valores desconhecidos. Ninguém irá emprestar a um mutuário tão incerto. Assim, toda a economia fica estagnada. Os créditos ruins precisam ser purgados do sistema.

O mercado precisa de transparência. Esses recentes resgates financeiros apenas pioram as coisas porque acabam sustentando os bancos insolventes ao invés de deixá-los quebrar. Os prestamistas em potencial têm maiores dificuldades em discernir o mutuário bom do ruim. Ademais, são muitas as conexões que os bancos têm dentro dos mercados de crédito. Manter operantes aqueles bancos insolventes apenas enfraquece os bancos mais sólidos a quem os insolventes estão conectados. Dessa forma, os prestamistas se tornam mais temerosos de emprestar para qualquer um, seja o mutuário bom ou ruim.

É função dos mercados e dos investidores discernir os mutuários ruins dos bons e belos. É a função dos mercados transferir o capital que está em circulação para os competentes, tirando-o dos incompetentes. É por isso que as falências deveriam ter sido permitidas desde o início. É por isso que o mercado despencou forte após a aprovação do pacote de resgate. Quando começaram a falar sobre o pacote de resgate, o índice de volatilidade da S&P 500 (VIX) imediatamente subiu – e subiu novamente depois que o pacote foi aprovado. O mercado entendeu que a aprovação significava que o risco de os valores dos títulos cair acabava de aumentar.

Nos EUA, o Fed e o Tesouro estão solapando o mercado de crédito ao mesmo tempo em que dizem que estão tentando salvá-lo. Ambas as instituições estão fornecendo o seu respectivo “crédito”, que não é um crédito real, construído no comércio e na produção. Essas instituições não são o mercado. Elas estão pagando $0,50 por papéis que valem $0,05 ou menos. Ninguém acredita quando ambas dizem que esses ativos no futuro irão valer $1. E por que deveriam? Ao final do boom da década de 90, as ações da empresa Nortel Networks estavam em quase $900. Hoje, estão em $1,57. Nunca se recuperaram. E estamos falando apenas de ações. O mercado de títulos e o mercado imobiliário são muito maiores que o mercado de ações. Ademais, o Fed não pode cobrir todos os créditos ruins, que já estão na casa dos trilhões. O Fed está confundindo liquidez com crédito verdadeiro. Isso decorre de um entendimento falho sobre como uma economia cria crédito real.

Injetar uma “dose muito necessária”, como diz a imprensa, de confiança e liquidez nos moribundos mercados de crédito irá apenas adiar as necessárias e inevitáveis correções. Lutar contra o sistema de preços quando os preços simplesmente querem – e devem – cair é uma tarefa que jamais se revelou bem sucedida em qualquer lugar do mundo.

E não é só o Fed que está fazendo isso. Ele está agindo concertadamente com os bancos centrais mundiais. Eles estão agindo como o cientista maluco, o Dr. Frankenstein, que tenta criar vida a partir de peças mortas.

A burocracia até agora vem continuamente piorando as coisas; e essa situação já perdura há meses. Com o sistema bancário insolvente, o sistema de crédito só vai se revigorar se os prestamistas puderam fazer arranjos de modo a emprestarem diretamente aos mutuários, evitando os bancos. Existe uma vasta riqueza disponível para empréstimos, mas que no momento está escondida por causa das incertezas. Ela só será “desentesourada” em troca de taxas de juros mais altas. Mas é tanta regulamentação que existe no sistema que fica impossível fazer com que essa riqueza disponível chegue a quem precisa, que é onde os bancos não estão. Todo o sistema precisa urgentemente de uma desregulamentação maciça, e não de bancos centrais imprimindo dinheiro. Até mesmo a formação de novas empresas e a criação de fundos mútuos para fazerem tais empréstimos fica emperrada por causa da regulamentação.

Crédito X Poupança

É estarrecedor o número cada vez maior de pessoas, outrora sensatas, que parecem ter a impressão de que créditos fiduciários, criados do nada, são a chave do sucesso capitalista, quando sabemos que a poupança e o capital é que o são. Elas seguem ignorantes da mensagem principal da Teoria Austríaca. Muitos capitalistas aceitaram a linha keynesiana e/ou a idéia de que a produtividade irá acabar na ausência de empréstimos baratos para todos. Se os bancos “entesourarem” seus recursos, alegam eles, todos nós voltaremos à idade da pedra. Daí eles apoiarem entusiasmadamente esse pacote coordenado de injeções monetárias.

O que essas pessoas não entendem é que o crédito deve ser construído sobre fundamentos nos quais o consumo é postergado em prol da poupança.

Peguemos o exemplo de uma pequena empresa.

Nenhum dos pequeno-empresários que eu conheço depende de crédito fácil para cumprir sua folha de pagamento. Quando as coisas chegam ao ponto de você precisar tomar empréstimos para poder pagar seus funcionários, a bancarrota está próxima. A maioria dos pequenos negócios quebra nos primeiros anos, em grande parte porque a atividade não é fácil, exige perícia e estratégia. Nem todos são bons nisso. Mas é parte essencial do livre comércio e da economia de mercado que empresas quebrem, de modo que outras melhores possam surgir em seus lugares.

São poucas as pequenas empresas que dependem de crédito fácil. Bancos são normalmente relutantes para emprestar para pequenas empresas, e com boa razão. Assim, a maioria das pequenas empresas é fundada pela poupança do dono. Algumas vezes, o capital inicial vem de empréstimos feitos por parentes ou amigos. Ainda que seja compreensível que pequenas empresas envolvidas com a construção civil possam lucrar com o crédito fácil, o mercado nesse caso está enviando sinais inequívocos de que há muitas casas que estão excessivamente caras. Inundar ainda mais o sistema com crédito fácil não pode ser a cura – ao contrário, é o problema.

Não há como negar que a vida é mais fácil quando há crédito fácil, pelo menos até que a conta chegue. Mas há uma alternativa: a poupança. Antes de a minha empresa contratar um novo empregado, tenho de poupar o suficiente para comprar o equipamento que ele irá utilizar e para pagar o salário das semanas ou meses que vou gastar para treiná-lo. Essa poupança advém dos meus lucros.

Ou seja: o crédito genuíno é somente aquele que advém da poupança real. E essa, no momento, não está disponível para os mercados de crédito. Tentar criar um crédito artificial através da mera impressão de dinheiro só irá bagunçar ainda mais o sistema, além de ser incapaz de promover a mesma função da poupança genuína.

(Para mais sobre esse fascinante assunto, ver o artigo A Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos: Uma Breve Explanação)

Estabilização = Caos

Por mais que tentem, os bancos centrais não conseguirão reativar o sistema de crédito no futuro imediato – isto é, de 6 a 18 meses. A situação é semelhante àquela de 1930-32, quando muitos bancos quebraram e o crédito desapareceu. No cenário atual, os bancos estão aí, mas não estão funcionando. Portanto, não há muita diferença.

Durante a década de 30 e durante outras depressões passadas, o livre mercado foi capaz de reativar o crédito fora do sistema bancário. Para isso ele utilizou como dinheiro recibos de armazéns, certificados, tickets, vouchers e vários outros substitutos monetários. No comércio internacional atual, as remessas começaram a cair e as cartas de crédito dos bancos já estão estagnadas. Elas precisam ser substituídas rapidamente por outras formas de crédito se quisermos evitar uma depressão. Caso contrário, os negócios irão diminuir e as demissões irão aumentar sensivelmente.

Em seu livro Causes of the Economic Crises, de 1931, Mises escreveu o atemporal trecho:

“O surgimento de crises econômicas periódicas e recorrentes é a conseqüência necessária de tentativas repetidamente renovadas de se reduzir a taxa ‘natural’ de juros do mercado por meio de políticas bancárias. As crises não irão desaparecer enquanto os homens não aprenderem a evitar tais estímulos expansionários, porque um crescimento artificialmente estimulado tem inevitavelmente de levar a uma crise e a uma depressão…

“Qualquer tentativa de pôr fim a essa crise por meio de novas medidas intervencionistas é algo completamente equivocado. Só há uma maneira de sair dela: abdicar de qualquer tentativa de impedir o impacto dos preços de mercado sobre a produção. Abandonar as políticas que tentam estabelecer taxas de juros, salários e preços de commodities a níveis diferentes daqueles indicados pelo mercado. Isso pode contradizer a atual idéia predominante. Certamente essa não é uma visão popular. Presentemente, todos os governos e partidos políticos têm confiança plena no intervencionismo e não é provável que irão abandonar suas plataformas. Entretanto, talvez não seja excessivamente otimista supor que aqueles governos e partidos cujas políticas trouxeram essa crise irão algum dia desaparecer de cena e dar espaço a homens cujos programas econômicos levem, não à destruição e ao caos, mas ao desenvolvimento econômico e ao progresso.”

Vale para ontem, vale para hoje. Ou seja: foi durante a década de 1930 que passou a ser crença geral que é possível utilizar as ferramentas do estado para se estabilizar os mercados em meio a ciclos econômicos. As medidas são normalmente de dois tipos: fiscal e monetária. Com a política fiscal, o estado gasta dinheiro para estimular a demanda e impulsionar o setor de consumo. Com a política monetária, o estado inflaciona os preços para evitar que os salários caiam devido à pressão deflacionária. Ambas as idéias parecem boas, mas acontece que sempre há efeitos secundários. Os truques fiscais geram déficits orçamentários que sobrepujam o investimento privado e atrasam a recuperação. Os truques monetários saqueiam a poupança e criam distorções nas taxas de juros que também atrasam a recuperação. Ambas as medidas fazem com que o mundo seja um lugar ainda mais maluco e destroem todas as chances de uma prosperidade.

Portanto, em nome da estabilização, você tem o caos. Se você realmente quer estabilização, você tem de permitir que a “anarquia” do mercado prevaleça.

Ou seja: a tentativa de se estabilizar os mercados através do estado é inerentemente caótica. Ao mesmo tempo, você deve permitir que o “caos” do mercado produza a genuína estabilização.

E é exatamente essa lição que as autoridades se recusam a aprender.

Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque

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