O princípio de perfeição e o financiamento da arte (Concurso IMB)

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Nota do IMB: o artigo a seguir faz parte do concurso de artigos promovidos pelo Instituto Mises Brasil .  As opiniões contidas nele não necessariamente representam as visões do Instituto e são de inteira responsabilidade de seu autor.

Um pouco de arte

Durante muito tempo o fazer artístico acompanhou a religião. A igreja católica financiou obras magníficas, como a famosa A criação de Adão de Michelangelo que, juntamente com diversos outros afrescos, decora o teto da Capela Sistina no Vaticano. Além da igreja, muitos outros pedidos e encomendas particulares foram feitos. Pode-se afirmar que a arte esteve sempre atrelada a quem pudesse pagar pela sua produção. Contudo, nas sociedades contemporâneas os financiadores se alteraram. Entra na lista o Estado e os recursos de incentivo à cultura.

Para Marcos Rizolli [1], existem três fases que diferenciam a relação entre o artista e seu contexto socio-econômico: (1) a corporação, (2) o mercado privado e (3) a academia[2]. A corporação “faz do artista um profissional que desenvolve sua arte liberal em concordância com o contratante” (RIZOLLI, 2005, p. 7). O mercado privado “permite ao artista expressar-se livremente, segundo seus próprios valores visuais e buscas pessoais, mas […] limita suas ações às expectativas estéticas coletivas” (Idem). A academia seria o espaço que possibilitaria ao artista o contato com a técnica, bem como em desenvolver-se enquanto artista-pesquisador.

O que nos interessa é mostrar que na época medieval, a Igreja financiava a arte e (apesar de produções que criticassem disfarçadamente ou fugissem dos padrões e valores religiosos) controlava a temática. O artista era incorporado ao projeto estético da Igreja. O próprio conceito do belo, no Renascimento Italiano, atrelava-se com uma concepção greco-romana. A simetria, a ordem, a disposição, a precisão, o efeito, a harmonia e a materialidade eram parâmetros para mostrar a virtuose do artista. Uma obra perfeita daria conta destes parâmetros, acrescidos ainda com o potencial imaginativo de seu realizador.

Na época citada, a liberdade da criação estaria na capacidade de executar com precisão um retrato (no caso das pinturas) do mundo. Há o surgimento da perspectiva, e o quadro começa a ser visto com profundidade. “Para a maioria dos artistas, a criatividade era quase sempre influenciada pelas tradições metodológicas e concretamente condicionadas às circunstâncias artesanais determinantes da preparação e execução de uma pintura” (Ibidem, p. 60). Isso ocorria porque o ensino e o fazer artístico dava-se em oficinas de grandes artistas. O papel do artista era distribuir tarefas entre os aprendizes e os colaboradores. Cabia-lhe a função de dar a pincelada final no trabalho pronto. O toque de mestre.

Os jovens aspiravam por aprenderem as técnicas, se tornarem chefes de oficina e, finalmente, abrirem suas próprias oficinas e “serem reconhecidos como artistas” (Ibidem, p. 61). Se o Renascimento fez uma leitura figurativa do mundo, a representação do que é perceptível casou-se muito bem com a corporação e o controle dos financiadores de arte. Esperavam retratos e representações do mundo invisível. A linguagem, para falar do que não era sensorialmente perceptível, foi justamente a de representar o sensível da forma mais perfeita, tornando as temáticas pictóricas verossímeis.

A arte, entretanto, sempre teve um caráter de autonomia. O artista possui criatividade, o que torna possível a novidade, a surpresa. A negação das tradições metodológicas possibilitou novas formas de representações visuais. As imagens perdem a profundidade e a perspectiva 3D e o desenho final abstratiza-se. É sobre este momento no qual a individualidade e a independência afloram, que Rizolli escreve:

A vida moderna parece encontrar seu nexo na manifestação de impressões pessoais, consequência da nova consciência de liberdade artística. O reconhecimento da individualidade em arte e a independência assumida pelo artista frente às leis artísticas e à natureza configuram um panorama de sentimento, de fantasias, de experiências que nem sempre se apresenta equilibrado (Ibidem, p.103-4).

Em seu atelier o artista consegue fechar-se em si mesmo. A individualidade possibilita a exploração de novas linguagens. Neste espaço solitário, o artista é dono de si. Transforma o ambiente de acordo com sua personalidade. Cria um espaço capaz de lhe proporcionar os mais diversos experimentos de cor e formas. A distância do artista da realidade resultou numa arte também ausente do real. Não há contratantes. Há o desejo de simbolizar o mundo.

Apesar do século XX conhecer um alto grau de liberdade artística, ainda há quem pense que o fazer artístico deva ser financiado. A produção livre de arte deu-se apesar do mercado. Entretanto, o medo de toda produção artística voltar-se ao que o coletivo, enquanto consumidor de arte, desejar, faz com que o financiamento estatal seja defendido e desejado. Este desejo pela realização estética pode ser entendido pelo desejo de perfeição.

O princípio de perfeição

De acordo com John Rawls, existe uma infinidade de concepções de bem. Significa que os indivíduos, livres e iguais, irão trabalhar e buscar realizar diferentes objetivos, de acordo com o que considerarem bom para si próprios. Entre as diversas possibilidades de realizações no ambiente social está a produção da arte.

Há, também, nas sociedades, um desejo por perfeição que relaciona-se com a realização artística. O filósofo norte-americano aponta dois tipos de princípios de perfeição: um primeiro teleológico e um segundo intuicionista[3]. O princípio de perfeição teleológico é como encontramos em Nietzsche, que afirma que o trabalho da humanidade é o dever de gerar seres humanos únicos e singulares. O valor mais elevado será retido com o indivíduo “vivendo para o bem dos mais raros e valorosos espécimes” (HOLLINGSDALE apud RAWLS, 2002, p. 683).

O princípio intuicionista, segundo Rawls, é encontrado em Aristóteles, que afirma que a realização artística-cultural grega justifica a escravidão “(supondo-se que essa prática era necessária para tais realizações)” (Ibidem, p. 359).

No campo político, a discussão se dará entre a realização de um alto grau estético e as desigualdades existentes, tanto no financiamento estatal, quanto na justificativa de diferentes padrões de beleza. Há o problema da conciliação entre as reivindicações da liberdade e o desejo pela perfeição.

No exemplo de princípio de perfeição, no qual se encontra Nietzsche, há o problema de uma teleologia que irá conduzir a sociedade com o objetivo de “maximizar as realizações humanas na arte e na cultura” (SILVA, 1998, p. 203), tanto na construção de uma Constituição, quanto definindo os deveres dos cidadãos. O princípio intuicionista, como encontrado em Aristóteles, contém a possibilidade de se justificar injustiças (o que Rawls, evidentemente quer evitar). Seria possível maximizar a produção da arte sem aumentar as disparidades socio-econômicas?

A proposta política de Rawls é que a sociedade seja construída a partir de princípios de justiça. Tais princípios seriam escolhidos pelos indivíduos quando estes, ignorando o conhecimento de suas posições na sociedade, fariam a escolha de princípios (sempre a partir da possibilidade de estarem no ponto de partida na sociedade dos mais necessitados). Vestidos com esse “véu de ignorância”, escolheriam os princípios a seguir:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.

Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos. (RAWLS, op. cit., p. 64)

A partir destes dois princípios é possível pensar sobre procedimentos justos sobre a questão da realização da perfeição.

O problema de uma visão liberalista equitativa, como a proposta por Rawls, é que “pela renúncia a algumas liberdades fundamentais os homens sejam suficientemente compensados através dos ganhos econômicos e sociais resultantes” (Ibidem, p. 67). Implica em aceitar como justo que, por exemplo, exista financiamento cultural (através de impostos e taxas) se os ganhos com a produção forem positivos para a economia e para a sociedade enquanto coletividade. O que Rawls não compreende é que sua própria teoria possui um caráter do qual ele queria fugir.

Não é porque parte da escolha de princípios justos que Rawls consegue fugir de um princípio de perfeição. “A própria teoria da justiça como equidade de Rawls é um perfeccionismo, na medida em que preconiza um ideal de perfeição, a mesmo grau de liberdade extensivo a todos os homens” (QUEIROZ, 2009).

Outra dificuldade encontrada é que os “ganhos” econômicos para o Estado estão distantes de um real “ganho” econômico proveniente de uma concorrência em um mercado livre. É este intervencionismo governamental que atrapalha os cálculos econômicos e não aloca corretamente os custo. Um mercado livre tem como premissa o poder do consumidor. É este poder o responsável pela oferta e demanda de produtos e bens. Quando há financiamento estatal há restrição da “supremacia do consumidor. O governo quer arrogar a si mesmo o poder – ou pelo menos parte do poder – que, na economia de mercado livre, pertence aos consumidores” (MISES, 1998, p. 39-40).

Se há o problema de uma cultura de massa e uma produção artística visando apenas o lucro, certamente não é através da intervenção estatal que se corrigirá este problema. Historicamente, pensando na classificação entre arte boa e arte ruim temos:

(…) na Alemanha um governo que considerava seu dever discriminar as boas e as más pinturas – boas e más, é claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora reprovado no exame de admissão à Academia de Arte, em Viena: era o bom e o mau segundo a ótica de um pintor de cartão-postal. E tornou-se ilegal expressar concepções sobre arte e pintura que divergissem daquelas do Führer supremo (Ibidem, p. 22).

Eis um exemplo de quando o governo usa de seu poder sobre o fazer artístico. O financiamento não proíbe ao cidadão comum a prática de produzir arte da maneira que desejar. O problema é perguntar sobre “quem” é financiado. A partir de quais princípios o governo decide financiar um filme ou uma exposição?

A Lei Rouanet[4], promulgada em 1991, visou financiar o artístico através da redução de impostos para pessoas físicas ou jurídicas que financiassem projetos culturais. Este é um exemplo da maneira como o Estado permuta a realização da arte e cultura. Em artigo lúcido encontramos a conclusão:

Alguns dizem que devemos confiar no MinC e na sua capacidade de apontar o que é culturalmente relevante. Que se trata de órgão governamental fundado em alicerces democráticos, possuindo, portanto, legitimidade para definir os projetos que possuem maior mérito artístico-cultural. Que se não permitirmos separar o que é culturalmente relevante daquilo que não é, cairemos em um lugar indesejável no qual tudo pode ser patrocinado, pois “se tudo é arte, nada é arte” (DRUMMOND, 2009).

Ao contrário do que se propõe, o financiamento estatal não salva a cultura. Há sim parâmetros subjetivos para a liberação de verba. Quando não é o público que escolhe, financia-se com qual objetivo? Se a legislação de incentivo está interessada em financiar projetos que tenham entrada gratuita ou amplo acesso, não está afastando o artista de seu público?

Se um mérito artístico-cultural não pode ser medido (Cézanne foi altamente criticado em sua época) como definir o que é arte e o que não é arte? Ainda hoje há quem odeie arte abstrata e não a considere arte. Como o governo pode avaliar o que é culturalmente relevante? Se o desejo é que exista critérios objetivos no financiamento, os que defendem uma sociedade voluntária, pautada no livre mercado, irão afirmar que não é possível que o governo consiga alocar corretamente os recurso. O melhor é que ninguém seja ajudado pelo governo. Organizações e financiamentos privados ou comunitários podem trabalhar para que determinada expressão artística não morra. Novamente o poder está na mão do indivíduo que, enquanto consumidor, pode estimular que determinada arte continue a ser desenvolvida.

Conclusão

Os livre-mercadistas são acusados de censura, pois sem o financiamento através da taxação diversas expressões seriam caladas. Deixar a livre iniciativa e o mercado responsáveis pela arte resultaria no fim destas expressões artísticas. Há, entretanto, a ideia de que exista uma arte boa e uma arte ruim. A arte ruim, é claro, está associada com a “indústria cultural”. O que não é percebido é que não é o mercado da arte que censura, e sim o financiamento estatal (que financiará o que considera arte, dentro de seus parâmetros abstratos). “Recusar ajudar alguém a se expressar não é censura; muito menos é censura recusar forçar outros a ajudá-lo”[5] (LEVIN, 1996, tradução nossa).

Vivemos uma medievalização do financiamento artístico. Os novos comerciantes e a Igreja já não são os principais contratantes do artista. O financiamento estatal está distante da promoção da cultural. As consequências podem ser notadas pelo excesso de “arte” não apreciada. A má alocação de recursos distancia o artista de seu nicho espectador. Neste contexto, torna-se impossível afirmar que exista uma liberdade do artista em buscar novas linguagens para expressar-se.

Mesmo numa sociedade voluntária o desejo por perfeição continuará a existir. Se há um bem a ser realizado ele não pode ser imposto via Estado. Artisticamente, abre-se a porta para novas possibilidades. Se o conceito de belo altera-se ao longo do percurso histórico, a arte irá sempre se refazer. Haverá indivíduos que irão se expressar, ou não, de acordo com suas vontades. Cada cidadão, enquanto participante e consumidor, será responsável pela arte produzida amanhã.

Não significa, é claro, que as determinações do mercado irão sempre dizer o que é uma boa arte. Logicamente, o que vende muito não é necessariamente bom. Entretanto, existe a responsabilidade de cada um de não fazer morrer a arte que se adequa ao seu gosto. Este é um exemplo de como funcionaria a produção artística  numa sociedade que tem como princípio a liberdade e a responsabilidade.

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[1] Marcos Rizolli é doutor (1999) em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É professor, pesquisador e orientador do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua também como pesquisador-visitante no Dipartimento Delle Arti Visive na Universitá Degli Studi di Bologna, na Itália. Como artista plástico participou de diversas exposições coletivas e teve sete exposições individuais. Enquanto crítico, publicou mais de quinhentos artigos e colaborou com diversos veículos de comunicação.

[2] Não falaremos, neste artigo, sobre a terceira fase.

[3] Apesar dos problemas conceituais, apontados por Francisco Queiroz, de que “Rawls não tem precisão na definição das primeiras [éticas perfeccionistas] e, obviamente, das segundas [éticas não perfeccionistas]” (2009), iremos nos ater à definição proposta em Uma teoria de justiça.

[4] A Lei Rouanet foi reformulada e atualmente a regulamentação é feita pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, a Lei nº 8.313/99 e o Decreto 5.761/06.

[5] No original: Refusing to help someone express himself is not censorship; still less is it censorship to refuse to force others to help him.


Referências Bibliográficas:

01.   DRUMMOND, Alessandra; ASSIS, Bernardo. A Reforma da Lei Rouanet: apontamentos sobre a aprovação dos projetos. 09 mai 2009. Disponível em: <http:// www. culturaemercado. com. br/ post/ a-reforma-da-lei-rouanet-apontamentos-sobre-a-aprovacao-dos-projetos/>. Acesso em: 04 jul 2009.

02.   LEVIN, Michael. Who Should Pay For Art?. The Free Market, Auburn, v. 14, n. 5, mai 1996. Disponível em: <http:// mises. org/ freemarket_detail.aspx?control=183>. Acesso em: 01 jul 2009.

03.   MISES, Ludwig von. As seis lições. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998, 6a ed.

04.   QUEIROZ, Francisco Limpo de Faria. Filosofia e epistemologia: perfeccionismo versus intuicionismo e outras confusões de John Rawls. 10 mar 2009. Disponível em: <http:// filosofar. blogs. sapo. pt/ arquivo/ 1090679.html>. Acesso em: 29 mai 2009.

05.   RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

06.   RIZOLLI, Marcos. Artista, cultura, linguagem. Campinas: Akademika Editora, 2005

07.   SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da justiça de John Rawls. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 35, n. 138, abr./jun. 1998. Disponível em: <http:// www. uff. br/ artigos/ TeoriadaJustiçaSenadoFederal.pdf>. Acesso em: 15 mar 2009.

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