Um episódio da série No Reservations — um seriado com enfoque em culinária exibido no Travel Channel, e apresentado por Anthony Bourdain — apresentou aos seus espectadores a cidade de Porto Príncipe, capital do Haiti. Já haviam me dito que esse episódio oferecia um vislumbre singular a respeito do país e de seus problemas. Eu apenas não imaginava o quanto isso era verdade. Através das lentes que focalizam a comida, podemos apreender algumas ideias sobre a cultura local, e da cultura podemos ter uma ideia da economia, e da economia para a política e, finalmente, para tudo o que há de errado nesse país e do que pode ser feito quanto a isso.
Através da objetiva da câmera, aprendemos mais sobre a economia do país do que teríamos aprendido caso o programa fosse totalmente voltado para questões econômicas. Caso o episódio fosse centrado em economia, sem dúvida ele apresentaria intermináveis e maçantes entrevistas com várias autoridades financeiras e vários especialistas do FMI, além de muita conversa sobre balança comercial e outros agregados macroeconômicos completamente sem propósito.
Porém, com o enfoque voltado para a comida e a culinária, podemos ver o que é que impulsiona e orienta a vida diária da multidão de haitianos. E o que descobrimos é surpreendente em vários sentidos.
Em uma cena no início do programa, rodada exatamente nessa enorme cidade onde ocorreu um devastador terremoto em janeiro de 2010, Bourdain e sua equipe fazem uma parada em uma barraca de rua para comer alguma comida local. Ele discute os ingredientes da comida e experimenta algumas iguarias. Uma multidão de pessoas famintas começa a se juntar ao redor dele. Porém, elas não estão interessadas em fazer pose para as câmeras; elas estão apenas observando, na esperança de sobrar algo para elas comerem.
E então, Bourdain, com a intenção de fazer algo bom para todos, tem uma ideia. Sabendo que apenas nessa refeição ele está comendo o equivalente ao que a maioria dos haitianos come em três dias, Bourdain decide comprar o restante da comida dessa vendedora para distribuí-las gratuitamente para todos os nativos ali presentes.
Belíssimo gesto! Exceto pelo fato de as coisas não saírem exatamente como o planejado. Assim que a notícia sobre a comida grátis se espalha — o boca a boca no Haiti é mais rápido que um chat no Facebook —, as pessoas começam a se aglomerar aos montes ao redor desse local. Filas se formam e se expandem. Algumas pessoas se agitam. Outras, em reação, tentam manter a ordem. Elas trazem cintos e começam a bater nos agitados. Toda a cena se torna bastante desagradável para todos — e o telespectador fica com a sensação de que tudo é ainda pior do que o que está sendo mostrado.
Bourdain aprende corretamente a lição: a solução para o problema da pobreza é mais complexa do que aparenta à primeira vista. Boas intenções dão errado. Ele e sua equipe estavam pensando com o coração e não com a cabeça, e acabaram causando mais dor e sofrimento do que havia originalmente no local. Desse acontecimento em diante, ele começa a abordar os problemas do país com um pouco mais de sofisticação.
O restante do episódio nos leva a um passeio por bairros extremamente pobres, mostrando exposições artísticas, festivais e desfiles em ruas — e entrevistas com todos os tipos de pessoas que conhecem o estado das coisas no Haiti. Mas não se trata de programa cuja intenção é manipular seus sentimentos de maneira convencionalmente dramática. Sim, há o óbvio sofrimento humano, mas a impressão geral que tive não foi essa. Ao contrário, fiquei com a sensação de que o Haiti é um lugar bastante comum, igual a todos os outros lugares que conhecemos, mas com uma grande diferença: eles são muito pobres.
Na época em que esse programa havia sido filmado, aquele glamour pós-terremoto, que havia atraído vários visitantes americanos para o local com a intenção de ajudar, já havia desaparecido. Um que ainda permanece lá é o ator Sean Penn. Embora ele seja amplamente conhecido como um esquerdista hollywoodiano, ele está realmente morando lá, movendo-se estrepitosamente em seu carro, subindo e descendo os morros de um bairro extremamente pobre da cidade, todo barbado e desgrenhado, sendo aquilo que ele classifica como “funcionário”, transportando coisas para as pessoas que precisam. Ele não apresentou respostas fáceis, porém desfiou palavras fortes sobre os doadores americanos, palavras extremamente interessantes vindas de um esquerdista que, supostamente, deveria acreditar em distribuição de renda: apenas despejar dinheiro em novos projetos não vai ajudar ninguém.
As pessoas do Haiti retratadas no programa de fato correspondem a tudo aquilo que todos os visitantes sempre dizem a respeito delas. São notavelmente amigáveis, talentosas, empreendedoras, felizes e cheias de esperança. Como a maioria das pessoas, elas odeiam seu governo. Na realidade, elas odeiam o governo muito mais do que a maioria dos americanos odeia o seu. Isso realmente é uma precondição para a liberdade. Há uma genuína sensação de nós-contra-eles no Haiti; tão viva é essa sensação que, quando o palácio presidencial desmoronou no recente terremoto, multidões se juntaram ao redor para vibrar abertamente. Foi um consolo em meio a toda uma terrível tempestade.
Aí vem a pergunta: com todo esse povo empreendedor, trabalhador e criativo — milhões de pessoas —, como pode haver algo de errado no país? Por que eles são tão pobres? Bom, é verdade que o terremoto destruiu a maioria das casas. Se isso tivesse ocorrido nos EUA, por exemplo, esse terremoto não causaria o mesmo nível de estragos. Toda a destruição causada pelo terremoto levou algumas pessoas a crer que, de alguma forma, a ausência de códigos de edificação, que determinam normas mínimas de segurança para a construção de prédios e de outras estruturas, foi a principal causa do problema. Logo, a solução estaria em mais imposições e controles governamentais mais rígidos.
Porém, a realidade mostra que essa noção de códigos de edificação é algum tipo de pilhéria. A própria ideia de que um governo poderia melhorar a situação de todos caso ele apenas saísse por aí punindo pessoas que constroem abrigos para si próprias — ao mesmo tempo em que estas se recusam a obedecer às ordens do planejamento central — é simplesmente risível. Uma coerção desse tipo não geraria absolutamente nenhum resultado positivo, levando apenas a amplos níveis de corrupção, violência e falta de moradia.
O âmago do problema, como bem explicou Robert Murphy, nada tem a ver com falta de regulamentações. O problema está na ausência de riqueza. Trata-se de uma óbvia verdade dizer que as pessoas sempre irão preferir morar em casas seguras, e não em casas de estruturas frágeis; porém, a questão é: qual é o custo disso? É economicamente viável? Querer é uma coisa; poder fazer é outra. No caso específico do Haiti, a resposta é: não, não é viável; não com uma população que mal consegue sobreviver no dia a dia.
O que nos leva a outra pergunta: onde está a riqueza do país? Afinal, há um grau extremamente elevado de comércio, há muitas pessoas trabalhando e fazendo vários tipos de coisa, há uma vasta gama de trocas e transações comerciais, e o dinheiro muda de mão frequentemente. Com tudo isso, por que o lugar permanece desesperadoramente pobre? Se os economistas estão corretos ao dizer que o comércio é o caminho para a riqueza — e há um amplo comércio no Haiti —, por que a riqueza não surge?
Ao se elaborar a questão desta maneira, fica fácil entender por que as pessoas facilmente se confundem; afinal, a resposta não é nada óbvia para aqueles que não possuem algum entendimento econômico. Um visitante aleatório poderia facilmente concluir que o Haiti é pobre porque, de alguma forma, sua riqueza está sendo sugada pelo seu vizinho do norte, os Estados Unidos. Se os EUA não estivessem devorando grande parte do estoque de riquezas do mundo, esta poderia ser distribuída de maneira bem mais uniforme, abrangendo também o Haiti nessa distribuição. Ou, uma outra teoria poderia dizer que as empresas multinacionais, ou até mesmo as instituições que fazem ajuda humanitária, estariam de alguma forma roubando todo o dinheiro e privando os haitianos de utilizá-lo.
Estas não são teorias simplórias ou tolas; são apenas teorias — que não podem ser confirmadas nem refutadas apenas pelos fatos. Elas apenas se revelam erradas quando você passa a entender uma constatação central da teoria econômica: trocas comerciais são condições necessárias para a acumulação de riqueza, mas por si só elas não são condições suficientes. Ainda mais importante para a acumulação de riqueza é aquela preciosa instituição chamada capital.
O que é capital? Capital é um bem (ou serviço) que é produzido não para ser consumido, mas para ser utilizado na produção de outros bens ou serviços. Exemplos de capital são os bens físicos de empresas e indústrias: as instalações, as ferramentas, os maquinários, os equipamentos etc. Capital é tudo aquilo que auxilia um modo de produção.
A existência de indústrias de capital permite que a estrutura de produção de uma economia seja subdividida em vários estágios de produção, em mais de milhares de etapas que se interligam ao longo dessa vasta estrutura de produção. Quanto mais longa uma cadeia produtiva, maior a qualidade dos bens produzidos.
O capital é a instituição que gera o comércio entre empresas, que amplia a mão-de-obra, que dá origem a empresas e fábricas, que estimula a especialização, e que possibilita a produção de todos os tipos de coisas — coisas que por si sós não são úteis como objetos de consumo final, mas que são úteis para a produção de outras coisas.
O capital não deve ser definido como um bem em particular — a maioria das coisas possui muitas variedades de uso —, mas sim como o propósito para a criação de um bem. Seu propósito é expandido durante um longo período de tempo com o objetivo supremo de produzir bens para o consumo final. O capital é empregado em uma longa estrutura de produção que pode durar um mês, um ano, 10 anos ou 50 anos. O investimento nos estágios iniciais da cadeia produtiva (também chamados de estágios mais altos, aqueles que estão mais longe do produto final) ocorre muito antes de haver qualquer ganho oriundo do consumo do bem final que será produzido.
Como Hayek enfatizou em seu livro The Pure Theory of Capital, outra característica definidora do capital é que se trata de um recurso não permanente que deve, contudo, ser mantido e preservado ao longo do tempo para que continue gerando um fluxo de renda. Isso significa que o proprietário do capital deve ser capaz de saber contratar trabalhadores, substituir as partes desgastadas de todo o seu maquinário, garantir a segurança da linha de produção e saber como manter as operações gerais ao longo de todo esse extenso período de produção.
Em uma economia desenvolvida, a vasta maioria das atividades produtivas consiste em participar desses setores de bens de capital, e não dos setores de bens de consumo final. Com efeito, como exlicou Murray Rothbard emMan, Economy, and State,
Durante qualquer período de tempo, toda essa estrutura é propriedade dos capitalistas. Quando um capitalista se torna o proprietário único de toda a estrutura, esses bens de capital — e isso deve ser enfatizado — não lhe trazem absolutamente nenhum benefício.
E por quê? Porque a valoração de todos os bens de capital — isto é, a atividade que realmente gera todo o valor dos bens de capital — é conduzida apenas em nível do consumo final. O consumidor final é o senhor do mais rico dos capitalistas. É ele quem, por meio de seus atos de compra de bens de produto final, imputa o valor de todos os bens de capital. É o consumidor final quem determina o quão rico é o capitalista.
Muitas pessoas (e eu já estive entre elas) criticam o termo capitalismo porque ele implica que a liberdade se resume em privilegiar os proprietários de capital.
Porém, há um sentido em que capitalismo é o termo perfeito para uma economia desenvolvida: a evolução, a acumulação e a sofisticação do setor de bens de capital é a principal característica que diferencia uma economia desenvolvida de uma economia subdesenvolvida.
A expansão do setor de bens de capital foi a grande contribuição dada ao mundo pela Revolução Industrial.
O capitalismo de fato surgiu em um momento específico da história, como explicou Mises, e foi nesse período que começou a democratização em massa da riqueza.
O aumento da riqueza, portanto, sempre é caracterizado por uma ampliação das etapas da estrutura de produção de uma economia, da ampliação das etapas da cadeia produtiva. Tais etapas de produção praticamente inexistem no Haiti. A esmagadora maioria das pessoas no Haiti pratica apenas atividades comerciais cotidianas. Elas vivem apenas para o dia de hoje, elas comercializam apenas para o dia de hoje, elas planejam apenas para o dia de hoje. O horizonte temporal delas é necessariamente curto, e a estrutura econômica do país é um reflexo disso. É por essa razão que todo o trabalho duro, todo o comércio e toda aquela ocupação que existe no Haiti não se transmutam em riqueza genuína. A sensação é a de estar pedalando uma bicicleta estática. Você trabalha duro e se torna cada vez melhor naquilo que faz, porém você na verdade não está indo a lugar nenhum; sua vida não está melhorando.
Isso é interessante porque qualquer um pode facilmente se deixar enganar ao olhar para o Haiti e ver todas aquelas pessoas trabalhando e produzindo loucamente, mas aparentemente sem estarem progredindo. Sem uma correta compreensão da teoria econômica, é praticamente impossível ver o que não se vê: o capital que está ausente é o que permitiria o crescimento econômico. E essa é a razão absoluta da persistência da pobreza — a qual, afinal, é, sempre foi e sempre será a condição natural da humanidade. É necessário algo heróico, algo especial, algo historicamente único para se sair dessa condição.
Agora o porquê da ausência de capital.
A resposta tem a ver com o regime. Trata-se de um fato bem conhecido que qualquer acumulação de riqueza no Haiti faz de você um alvo, se não da população em geral (a qual cresceu aprendendo a suspeitar de toda e qualquer riqueza, e provavelmente por bons motivos), então certamente do governo. O regime, não importa quem esteja no comando, é como um cachorro voraz à solta, ávido por devorar qualquer riqueza privada que porventura surja.
Isso cria algo ainda pior do que o problema da “incerteza do regime”, termo cunhado por Robert Higgs. O regime é certo: é certo que ele vai espoliar tudo que puder, sempre que puder, eternamente. Logo, por que as pessoas não elegem os bons e retiram os ruins da vida pública? Bom, todos nós que temos experiência com a democracia sabemos muito bem a resposta: não há os bons. O sistema em si é propriedade do estado e enraizado no mal. Qualquer mudança sempre será algo ilusório, uma ficção criada para consumo público.
O Haiti é um exemplo interessante de uma maneira peculiar de como o governo está impedindo a prosperidade. O governo não está destruindo o país diretamente por meio de uma intensa aplicação de tributos, regulamentações ou estatizações. É até possível crer que a maioria dos haitianos realmente nunca ficou cara a cara com um burocrata do governo e nunca teve de lidar com papelada ou burocracias. O estado ataca apenas quando há algo a ser espoliado. E roubar é algo que ele faz: previsivelmente e consistentemente. E apenas isso já é o suficiente para impedir qualquer acumulação de capital, garantindo assim um permanente estado de pobreza.
Por fim, um adendo: há no mundo várias pessoas firmemente convencidas de que todos nós estaríamos em melhor situação caso nós mesmos cultivássemos nossa comida, comprássemos apenas nas mercearias locais, proibíssemos as empresas de crescer, abríssemos mão de conveniências modernas, como aparelhos elétricos e utensílios domésticos sofisticados, voltássemos a utilizar apenas produtos naturais, expropriássemos poupadores ricos, e assediássemos a classe dos capitalistas até que eles se sentissem indesejados e desaparecessem afugentados. Esse paraíso sonhado tem um nome: Haiti.
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