Em uma postagem de blog ainda em novembro de 2010 (Poderia o mundo voltar para o padrão-ouro?), o principal comentarista de economia do Financial Times, Martin Wolf, concluiu que “nós não podemos e não iremos voltar ao padrão-ouro”.
Dentre vários argumentos típicos dos economistas convencionais levantados contra a desejabilidade e a possibilidade do padrão-ouro, o senhor Wolf desenvolve uma linha de raciocínio que particularmente pode servir muito bem como ponto de partida para debater sua posição. O senhor Wolf escreve:
Os economistas seguidores da Escola Austríaca desejam abolir as reservas fracionárias do sistema bancário. Porém, sabemos que as reservas fracionárias são uma consequência natural das forças de mercado. Para um banco, é um desperdício manter reservas de 100% para os depósitos em conta-corrente uma vez que os correntistas não necessitam que seu dinheiro esteja todo ali durante todo o tempo. Bancos têm fortes incentivos para emprestar parte do dinheiro depositado neles, o que irá expandir a oferta monetária e de crédito.
Os austríacos não defendem que o padrão-ouro seja estabelecido por decreto
Dando o pontapé inicial, os economistas austríacos (particularmente aqueles da tradição misesiana-rothbardiana) defendem inflexivelmente que o dinheiro fiduciário de curso forçado seja substituído pelo dinheiro gerado pelo livre mercado — dinheiro que seja produzido pela livre interação entre a oferta de dinheiro e a demanda por dinheiro.
Tal recomendação possui um sólido firmamento econômico e ético: o dinheiro de livre mercado representa a única ordem monetária compatível com os direitos de propriedade, que são os princípios que genuinamente governam uma sociedade de livre mercado.
O enfoque sobre os direitos de propriedade privada não advém apenas da teoria dos direitos naturais (na tradição lockeana); ele pode ser justificado, em última instância, baseando-se no irrefutável e autoevidenteaxioma da ação humana, como comprovou Hans-Hermann Hoppe.
Os austríacos, portanto, defendem a genuína privatização (completa desestatização) da produção de dinheiro e a abolição dos bancos centrais, permitindo que o mercado decida qual tipo de dinheiro as pessoas querem utilizar. O governo não teria nenhuma participação ativa no funcionamento de um sistema monetário de livre mercado.
Um austríaco pode perfeitamente dizer que os metais preciosos — particularmente o ouro e a prata, e até certo grau o cobre — seriam os meios de troca livremente escolhidos e universalmente aceitos. Em outras palavras, que tais metais se tornariam dinheiro tão logo as pessoas passassem a ter liberdade de escolha no âmbito monetário.
Entretanto, economistas austríacos não defenderiam a imposição de um padrão-ouro, muito menos um padrão-ouro com um banco central. Eles simplesmente defenderiam que houvesse plena liberdade para que o mercado criasse e escolhesse a moeda, arranjo esse sob o qual, presumivelmente, o ouro seria o dinheiro livremente escolhido pelas pessoas.
O sistema bancário de reservas fracionárias é uma violação aos direitos de propriedade
Abordemos agora o sistema bancário de reservas fracionárias. Um banco praticar reservas fracionárias significa que ele empresta o dinheiro que está na conta-corrente de seus clientes ao mesmo tempo em que permite que esses clientes continuem tendo acesso a esse dinheiro. Ou seja, a prática de reservas fracionárias leva a uma situação em que dois indivíduos se tornam proprietários do mesmo bem.
Desta forma, o sistema bancário de reservas fracionárias cria uma impossibilidade legal: por meio da criação de empréstimos bancários — que nada mais são do que a criação de contas-correntes para os indivíduos tomadores de empréstimo —, o tomador de empréstimo e o correntista que depositou o dinheiro que está sendo emprestado se tornam proprietários exatamente do mesmo dinheiro. Assim, o sistema bancário de reservas fracionárias gera obrigações contratuais que não podem ser cumpridas desde o exato momento em que são criadas.
Como observaram Hans-Hermann Hoppe, Walter Block e Jörg Guido Hülsmann, “qualquer acordo contratual que apresente dois diferentes indivíduos como os proprietários simultâneos do mesmo bem (ou, colocando de outra forma, que apresente um mesmo bem como sendo propriedade simultânea de mais de uma pessoa) é objetivamente falso e, portanto, fraudulento.” Um “acordo feito com um banco que pratica reservas fracionárias não é menos fraudulento ou impossível de ser cumprido do que aquele que envolva a venda de elefantes voadores ou de círculos quadrados.”
A verdade é que um banco praticar reservas fracionárias equivale a uma violação da lei dos direitos de propriedade. Sendo assim, o argumento de que a prática de reservas fracionárias representa uma sensata economia de dinheiro — um argumento feito por Martin Wolf contra o padrão-ouro — não se sustenta.
Argumentar em favor do sistema bancário de reservas fracionárias seria, na realidade, equivalente a dizer que é legítimo (ou correto ou mesmo lícito) o Sr. X fazer o que quiser com a propriedade do Sr. Y — sem o consentimento do Sr. Y.
E é nesse ponto que chegamos ao argumento favorito dos defensores das reservas fracionárias: e se o banco e o correntista acordarem voluntariamente entre si que o dinheiro depositado pelo correntista pode também ser utilizado para empréstimos? Essa criação de meios fiduciários não poderia ser tratada como ilegítima, certo? Afinal, foi tudo voluntariamente acordado.
Ainda assim, esse acordo voluntário seria uma violação da lei dos direitos de propriedade.
O banco e o correntista certamente se beneficiam (ou esperam se beneficiar) desse arranjo. Porém, e aqueles que irão receber os meios fiduciários criados por esse arranjo? Estes estarão sendo iludidos; eles estarão trocando bens e serviços por um item (meios fiduciários) que na realidade representa um título de reivindicação sobre algo que já é propriedade de um terceiro — ou, colocando de outra forma, um item que representa um título de reivindicação sobre algo que nem sequer existe, pois receber meios fiduciários significa, por definição, que o valor correspondente em dinheiro em espécie para aquela quantia não está no banco.
É presumível que um vendedor não concordaria com isso caso soubesse de antemão toda a realidade por trás dessa troca comercial.
Mas e se todos os participantes do mercado voluntariamente concordassem que o sistema bancário praticasse reservas fracionárias? A conclusão acima não mudaria: um sistema de reservas fracionárias voluntariamente aceito representaria um sistema monetário que é, por sua própria natureza, uma violação da lei dos direitos de propriedade privada. Tal sistema produziria caos econômico na mais ampla escala.
O sistema bancário de reservas fracionárias não surgiu “naturalmente”
Para esclarecer, o sistema bancário de reservas fracionárias não é, ao contrário do que disse Martin Wolf, “uma consequência natural das forças de mercado.” Ele é o resultado de leis criadas pelos governos — e sempre foi sustentado por elas.
Em um sistema de livre mercado, a prática de reservas fracionárias seria ilegal por sua própria natureza, o que faria com que o sistema bancário de reservas fracionárias fosse abolido (rapidamente, e não demoradamente) sob os auspícios de uma operante lei que impingisse o respeito aos direitos de propriedade privada.
O motivo por que o sistema bancário de reservas fracionárias existe há bastante tempo se deve a leis criadas pelos governos — as quais, obviamente, não devem ser confundidas com a lei natural que governa os direitos de propriedade. Claro que o governo pode legalizar a prática de reservas fracionárias. Entretanto, decretos governamentais não alteram a natureza das coisas. Como sucintamente explicou Murray Rothbard,
O sistema bancário de reservas fracionárias cria dinheiro literalmente do nada. Em sua essência, a prática é idêntica à de falsificadores. Os falsificadores também criam dinheiro do nada ao imprimir algo que se faz passar por dinheiro — ou, no caso de uma moeda-commodity como ouro, criando algo que se faz passar por certificados de armazenamento de ouro. Desta forma, eles fraudulentamente obtêm poder de compra e, com isso, extraem recursos dos outros cidadãos, pessoas que obtiveram dinheiro genuinamente, por meio do trabalho.
Da mesma maneira, bancos que praticam reservas fracionárias falsificam dinheiro criando falsos recibos de armazenamento — ou, no mundo atual, criando entradas eletrônicas na conta de pessoas sem que haja dinheiro físico lastreando estas contas —, os quais circulam entre o público como equivalentes a dinheiro. Mas há uma exceção a esta equivalência: a lei não trata estes recibos falsos como sendo contrafações.
Reservas fracionárias sob uma moeda commodity versus sob uma moeda fiduciária
Em um regime de moeda-commodity — como o padrão-ouro — o sistema bancário de reservas fracionárias é, como mostram os economistas austríacos, de fato uma forma de contrafação. Entretanto, o que dizer do sistema bancário de reservas fracionárias em um ambiente de moeda fiduciária de curso forçado?
Nesse caso, as obrigações dos bancos em relação aos seus clientes (no caso, quando usuários de contas-correntes fazem saques) são quitadas na forma de dinheiro padrão — dinheiro que, nesse caso, só pode ser criado fisicamente pelo banco central, as cédulas e moedas metálicas.
Os bancos centrais detêm o monopólio da produção de dinheiro padrão. Eles podem aumentar a quantidade de dinheiro padrão a qualquer momento e em qualquer quantidade considerada politicamente desejável. É o banco central quem no fim irá determinar se os bancos devem ou não cumprir suas obrigações para com seus clientes.
Se um banco sofrer uma corrida bancária e seus correntistas exigirem sacar o dinheiro de suas contas-correntes, é o banco central quem decidirá se irá fornecer a quantidade de cédulas suficientes para tal — seja emprestando para os bancos (pela janela de redesconto), seja comprando parte dos ativos dos bancos, como títulos públicos em sua posse (operações de mercado aberto).
O ponto essencial, entretanto, é mostrar que os bancos que praticam reservas fracionárias em um regime de moeda fiduciária criam obrigações contratuais que não podem ser cumpridas desde o exato momento em que são criadas. Rothbard observa que,
Não importa o que a sociedade considere como sendo dinheiro padrão, se ouro, tabaco ou pedaços de papel criados pelo governo — o método de criação de dinheiro pelos bancos (em múltiplos da quantidade original de dinheiro padrão) permanece o mesmo.
A incômoda verdade sobre o sistema bancário de reservas fracionárias
Os economistas austríacos, e Ludwig von Mises em particular, mostraram que a prática de reservas fracionárias com uma moeda-commodity irá necessariamente gerar problemas econômicos em grande escala. Isso porque os bancos irão praticar a criação de meios fiduciários — isto é, irão criar dinheiro (recibos de armazenamento, na época de Mises) para ser emprestado, mas um dinheiro que não possui nenhuma commodity lastreando-o. Isto é, não há uma poupança real por trás dessa criação de crédito.
A criação de meios fiduciários é inflacionária e provoca desequilíbrios econômicos e excesso de endividamento do setor privado, e principalmente do governo. É também a causa essencial dos ciclos econômicos.
E os ciclos econômicos, por sua vez, abrem as portas para doses cada vez maiores de intervenções governamentais — regulamentações, estatizações, controle de preços etc. — que, ao longo do tempo, corroem e até mesmo destroem os princípios essenciais sobre os quais se fundamenta uma sociedade de livre mercado.
Essa conclusão não é em nada alterada quando os bancos praticam reservas fracionárias com moeda fiduciária de curso forçado. O papel-moeda fiduciário — ou, pra ser mais exato, sua produção pelo governo — já é em si uma violação dos princípios do livre mercado; e os bancos praticarem reservas fracionárias significa potencializar as consequências econômicas da moeda fiduciária.
Em nome de uma cooperação social próspera e pacífica, deve-se chegar a uma conclusão exatamente oposta daquela do senhor Wolf: nós podemos e iremos retornar a um sistema monetário sólido, e o padrão-ouro é em particular uma forma plenamente aceitável do ponto de vista econômico e ético — se e quando ele for livremente escolhido pelas pessoas.