No início deste ano, a rede estatal inglesa BBC publicou uma série de artigos celebrando os 20 anos da queda do estado na Somália. Embora os artigos expressassem a típica repulsa ao termo “anarquia”, a série foi surpreendentemente equilibrada para um veículo da grande mídia tradicional. Desde a queda do estado, a Somália inegavelmente progrediu de acordo com vários critérios, apesar (ou, alguns diriam, por causa) da ausência de um governo central forte.
Economistas familiares com a tradição do anarquismo de livre mercado levaram a análise ainda mais longe, argumentando persuasivamente que a Somália está melhor sem o estado do que quando tinha um. A desdenhosa resposta estatista padrão — “Se vocês gostam tanto de anarquia, por que não se mudam para a Somália?” — é típica de quem não entende a teoria anarcocapitalista. O anarquista de livre mercado não afirma que a ausência de um estado é condição suficiente para a bem-aventurança. Antes, esse livre-mercadista afirma que, por mais próspera e cumpridora das leis que seja uma sociedade, acrescentar a este arranjo uma instituição que pratica o roubo e a violência organizada irá apenas piorar as coisas.
A BBC repercute os 20 anos de anarquia
Como dito inicialmente, o tratamento dado pela BBC à questão somali foi notavelmente equilibrado. Um dos artigos começa dizendo,
O senso comum afirma que segurança e estabilidade são as precondições necessárias para o desenvolvimento econômico.
Desde 26 de janeiro de 1991, a maior parte da Somália não tem nem um nem outro; entretanto, a economia não apenas tem se mantido resiliente, como também alguns setores apresentaram um crescimento extraordinário.
Em particular, a indústria de telecomunicações expandiu-se acentuadamente:
O especialista em telecomunicações somali Ahmed Farah diz que a primeira antena de telefonia celular foi erguida na Somália em 1994, e hoje é possível fazer ligações via celular de qualquer lugar do país.
Há nove operadoras disponíveis e elas oferecem uma ampla variedade de serviços, de mensagens de texto a acesso à internet.
Não foi apenas a indústria de telecomunicações que se expandiu. Um outro artigo da série esquematiza as melhorias ocorridas em alguns do principais índices ao longo dos últimos 20 anos de (relativa) anarquia:
Somália: Como a vida mudou? |
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Índice |
1991 |
2011 (ou mais tarde) |
Expectativa de vida |
46 anos |
50 anos |
Taxa de natalidade |
46 |
44 |
Índice de mortalidade |
19 |
16 |
PIB per capita |
$210 |
$600 |
Mortalidade infantil |
116 mortes <1 ano, por 1.000 nascimentos |
109 mortes <1 ano, por 1.000 nascimentos |
Acesso a água potável |
35% |
29% |
Taxa de alfabetização |
24% |
38% |
Exceto pela queda na taxa de natalidade (que é algo ambíguo) e pela queda no acesso a água potável (que é definitivamente algo ruim), os números acima demonstram um incrível progresso em várias frentes. Ouso dizer que se uma intervenção da ONU ou do Banco Mundial em algum país africano totalmente controlado pelo estadotivesse gerado os resultados acima, tal feito seria trombeteado e glorificado a plenos pulmões e com incessantes propagandas. (Para evitar confusão: grupos de ajuda internacionais estão atualmente trabalhando na Somália, e eles podem ser parcialmente responsáveis pelas melhorias ilustradas na tabela acima).
A BBC anseia por um governo perfeito
Não obstante o inegável progresso, o primeiro artigo da BBC lamenta a situação anárquica:
Por um lado, podemos nos maravilhar com o fato de que os empreendimentos continuam na Somália; por outro, é fato que as coisas poderiam estar muito melhores.
A ausência de tributação e de regulamentações pode significar uma certa liberdade contra interferências. Porém, os empreendedores têm de pagar empresas de segurança para garantir a proteção de seus bens, e têm de remunerar diferentes facções caso queiram fazer qualquer tipo de comércio.
Essa situação arriscada não desestimula todos os investimentos, porém estes seriam muito maiores caso existisse uma autoridade estável.
[O especialista em telecomunicações] Ahmed Farah crê que as operadoras de telefonia celular gostariam de ideia de um governo efetivo.
“Elas teriam segurança, teriam estabilidade e poderiam operar harmoniosamente”, diz o especialista em telecomunicações.
“Portanto, sem nenhuma dúvida, a indústria de telecomunicações da Somália precisa de um governo”.
Porém, com o atual governo somali [que controla somente algumas poucas áreas importantes da capital Mogadíscio], que é respaldado pela ONU, não é possível ter nenhuma ideia de quando este dia virá.
O senhor Farah e o laudatório repórter da BBC cometem nesse ponto a falácia do Nirvana, a qual compara coisas reais a alternativas irrealistas e idealizadas. No caso, ambos contrastam um imperfeito resultado de mercado no mundo real com um idealizado resultado que seria produzido por um governo benevolente que só existe nos livros-texto. A realidade é que, mesmo que uma única organização consiga suprimir todos os seus rivais e conquiste a soberania sobre o território somali (organização essa chamada estado), os empreendedores ainda assim terão de “remunerar diferentes facções caso queiram fazer qualquer tipo de comércio”.
Particularmente cômica é a reclamação de que os empreendedores atualmente têm de pagar empresas de segurança privadas para assegurar a proteção de seus bens. Ora, uma polícia e um sistema judiciário estatais não funcionarão à base de gorjetas — ambos também terão de ser financiados, só que por meio da tributação involuntária. Assim como ocorre com qualquer monopólio, o fornecimento estatal de um “sistema de justiça” será muito mais caro — tudo o mais constante — do que esse mesmo serviço sendo fornecido por meio de agências privadas e concorrentes.
Lutando pela soberania
Farah e outros defensores de um estado central podem retorquir dizendo que, no atual arranjo, os custos de segurança são particularmente altos para os empreendedores somalis porque há uma constante luta entre diversas facções militares rivais (“os guerrilheiros”) que estão tentando assumir e controlar o governo. Isso é verdade, mas essa observação não prova aquilo que Farah pensa. Farah e outros estatistas acreditam que é inevitável que grupos guerrilheiros briguem violentamente para adquiri o controle da nação, e que a paz doméstica só será conquistada quando um grupo (ou coalizão) conseguir sobrepujar todos os outros e, com isso, assumir o controle total. Esta é a lógica que diz que o estabelecimento de um governo (supostamente) levará a menores gastos com segurança.
Há dois grandes problemas com essa visão. Primeiro, alguns afirmam que essas milícias somalis brigam entre si de maneira tão cruel justamente por causa da intromissão de ocidentais que insistem em tentar impor um governo. Em outras palavras, os vários clãs poderiam estar dispostos a coexistirem de maneira relativamente pacífica, sabendo que há um equilíbrio de poder e que nenhum grupo representa uma grande ameaça. Porém, quando a ONU entra em cena com seu dinheiro e suas armas, e tenta colocar um grupo acima dos outros, as facções somalis excluídas partem para o ataque. É uma questão de sobrevivência.
O outro problema com essa típica argumentação pró-estado — a saber, que grupos rivais entrarão em guerra civil até que um deles atinja uma óbvia superioridade sobre os outros — é que ela é exageradamente simplista e ignora a realidade. Afinal, se não é possível haver um equilíbrio de poder entre os pequenos clãs da Somália, então como pode haver um em toda a Europa? Ou, mais ainda, em todo o mundo?
Em outras palavras, para ser consistente, Farah e outros que clamam pelo estabelecimento de um governo na Somália — com o intuito de acabar com a guerra civil — deveriam também clamar pela criação de um governo central mundial para controlar todo o planeta. Caso contrário, as várias facções existentes no globo iriam lutar continuamente entre si (algo que, obviamente, elas fazem o tempo todo).
Conclusão
Em outro artigo, já respondi àquela genérica objeção ao anarquismo, que alega, que em uma sociedade sem estado, os déspotas assumiriam o controle. Particularmente sobre a Somália, recomendo o fantástico trabalho de Ben Powell et al. analisando a Somália antes e depois de sua transição para uma sociedade sem estado, e também comparando seu destino ao destino de outras similares nações africanas. A conclusão é que — obviamente — a Somália sem estado não é nenhum paraíso, porém a ausência de um governo corrupto e brutal deu ao país uma vantagem não apenas em relação aos seus países vizinhos, como também em relação à própria Somália do passado.
A Somália conseguiu um notável progresso desde o colapso da brutal ditadura de Siad Barre em 1991. Se as pessoas dos países mais desenvolvidos do mundo desejam ajudar aquela região pobre, podemos certamente enviar dinheiro e até mesmo visitá-los para oferecer serviços médicos e outros tipos de assistência. Porém, se o Ocidente continuar tentando impor sobre os sitiados somalis a “dádiva” de um outro estado, a resposta apropriada deles deveria ser “Caiam fora já!”
E o que o “anarco-capitalismo” tem haver com anarquismo ?
Os libertários são anarquistas?
O Estado é uma ferramenta inevitável, orgânica, natural, e que sempre acaba por se formar – em maior ou menor tempo, dependendo de circunstâncias históricas, sociais e culturais.
O problema não é a ferramenta de organização social em si, mas sim quando seu uso é desvirtuado e a ferramenta se torna maior do que a sociedade a que deveria servir.
Quando uma sociedade existe em função do Estado, e não o Estado em função uma sociedade, aí está o problema.
Uma ferramenta-Estado ágil, enxuta e leve exponencializa, organiza e dá estabilidade aos resultados do trabalho e do esforço de uma sociedade.