Mercado, praxeologia, lucros e prejuízos

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O mercado

Costuma-se falar, em um sentido metafórico, das forças automáticas e anônimas que influenciam o “mecanismo” do mercado. Ao empregar tais metáforas, as pessoas estão propensas a desconsiderar o fato de que os únicos fatores que dirigem o mercado e influenciam a formação de preços são as ações intencionais dos homens. Não há nenhum automatismo; existem apenas homens conscientes e que, deliberadamente, visam a atingir os objetivos que escolheram.

O mercado é um corpo social; é o corpo social por excelência. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.

Todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.

O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho.

A reiteração de atos individuais de troca vai dando origem ao mercado, à medida que a divisão de trabalho evolui numa sociedade baseada na propriedade privada.  Tais trocas só podem ser efetuadas se cada uma das partes atribuir maior valor ao que recebe do que ao que renuncia.

A divisibilidade da moeda, ilimitada na prática, torna possível determinar com precisão as relações de troca, que passam a ser conhecida, em via de regra, por preços expressos em moeda.

O mercado é um processo coerente e indivisível.  É um entrelaçamento indissolúvel de ações e reações, de avanços e recuos.  Entretanto, a insuficiência de nossa capacidade mental nos obriga a dividi-lo em partes e a analisar separadamente cada uma delas.  Ao recorrer a tais divisões artificiais, não devemos esquecer que a aparente existência autônoma dessas partes é um artifício de nossa mente.  São apenas partes, isto é, não podem ser concebidas como independentes da estrutura geral do todo.

A economia de mercado, em princípio, não respeita fronteiras políticas.  Seu âmbito é mundial.  O mercado torna as pessoas ricas ou pobres, determinam quem dirigirá as grandes indústrias e quem limpará o chão, fixa quantas pessoas trabalharão nas minas de cobre e quantas nas orquestras sinfônicas. Nenhuma dessas decisões é definitiva: são revogáveis a qualquer momento. O processo de seleção não para nunca.

Atribuir a cada um o seu lugar próprio na sociedade é tarefa dos consumidores, os quais, ao comprarem ou absterem-se de comprar, estão determinando a posição social de cada indivíduo.  Os consumidores determinam, em última instância, não apenas os preços dos bens de consumo, mas também os preços de todos os fatores de produção.  Determinam a renda de cada membro da economia de mercado.  São os consumidores e não os empresários que basicamente pagam os salários ganhos por qualquer trabalhador, tanto o da glamorosa artista de cinema quanto o da faxineira da sala do cinema.  É verdade que, no mercado, os vários consumidores não têm o mesmo direito de voto.  Os ricos dispõem de mais votos que os cidadãos mais pobres.  Mas essa desigualdade é, em si mesma, o resultado de um processo eleitoral anterior.

Se um empreendedor não obedecer estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência.  Outros homens que melhor souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.

Os consumidores prestigiam as lojas nas quais podem comprar o que querem pelo menor preço.  Ao comprarem e ao se absterem de comprar, os consumidores decidem sobre quem permanece no mercado e quem deve sair; quem deve dirigir as fábricas, as fornecedoras e as distribuidoras.  Enriquecem um homem pobre e empobrecem um homem rico.  Determinam precisamente a quantidade e a qualidade do que deve ser produzido.  São patrões impiedosos, cheios de caprichos e fantasias, instáveis e imprevisíveis.  Para eles, a única coisa que conta é sua própria satisfação.  Não se sensibilizam nem um pouco com méritos passados ou com interesses estabelecidos.

Os preços de mercado informam aos produtores o que produzir, como produzir e em que quantidade.  O mercado é o ponto focal para onde convergem e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos.

A economia de mercado, ou capitalismo, como é comumente chamada, e a economia socialista são mutuamente excludentes.  Não há mistura possível ou imaginável dos dois sistemas; não há algo que se possa chamar de economia mista, um sistema que seria parcialmente socialista.  A produção ou é dirigida pelo mercado, ou o é por decretos de um czar da produção, ou de um comitê de czares da produção.  A economia de mercado é o produto de um longo processo evolucionário.  É o resultado dos esforços do homem para ajustar sua ação, da melhor maneira possível, às condições dadas de um meio ambiente que ele não pode modificar. É, por assim dizer, a estratégia cuja aplicação permitiu ao homem progredir triunfalmente do estado selvagem à civilização.

Praxeologia

Não é mais possível definir claramente que ações devem estar compreendidas no âmbito da ciência econômica, em sentido restrito, e quais devem ser excluídas.

O agente homem nem sempre está interessado apenas em coisas “materiais”, mas também em coisas “ideais”. Escolhe entre várias alternativas, sem considerar se elas são classificadas como materiais ou ideais.

A teoria geral da escolha vai muito além dos limites que cingiam o campo dos problemas econômicos estudados pelos economistas, de Cantillon, Hume e Adam Smith até John Stuart Mill.  É muito mais do que simplesmente uma teoria do “aspecto econômico” do esforço humano e da luta pela melhoria de seu bem-estar material.  É a ciência de todo tipo de ação humana. Toda decisão humana representa uma escolha.

Da economia política da escola clássica emergiu a teoria geral da ação humana, a praxeologia.  Os problemas econômicos ou catalácticos [Cataláxia — a teoria da economia de mercado, isto é, das relações de troca e dos preços] estão embutidos numa ciência mais geral da qual não podem mais ser separados.  O exame dos problemas econômicos tem necessariamente de começar por atos de escolha: a economia torna-se uma parte — embora até agora a parte elaborada — de uma ciência mais universal: a praxeologia.

A praxeologia — e consequentemente também a economia — é um sistema dedutivo.  Sua força provém do ponto de partida de suas deduções, ou seja, da categoria da ação humana.  Nenhum teorema econômico, que não esteja consistentemente ligado a esta origem por uma irrefutável sequência lógica, pode ser considerado como válido.  Qualquer afirmativa proclamada sem esta ligação é arbitrária e insustentável.  Não é possível tratar qualquer segmento da economia sem enquadrá-la numa teoria geral e completa da ação.

As ciências empíricas partem dos eventos singulares e progridem do que é individual e específico para o que é mais universal.  Sua abordagem está sujeita à especialização.  Podem lidar com segmentos de seu campo de investigação sem se preocupar com o conjunto.  Em contrapartida, o economista não pode, jamais, ser um especialista.  Ao lidar com qualquer problema, deve ter sempre uma visão abrangente de todo o conjunto.

Em relação às leis da natureza, temos consciência da inexorabilidade dos fenômenos físicos e biológicos, e de que o agente homem tem de se submeter a essas regularidades, se quiser ser bem-sucedido.  Em relação às leis da ação humana, devemos ter consciência de que também existe essa mesma inexorabilidade dos fenômenos no campo da ação humana e que, portanto, o agente homem terá de reconhecer a existência dessas regularidades, se quiser ser bem-sucedido.

Na física, estamos diante de mudanças que os sentidos registram.  Percebemos uma regularidade na sequência dessas mudanças e essas observações nos permitem formular uma ciência da física.

Na praxeologia, sabemos antes de tudo que os homens têm o propósito de provocar mudanças.  É com base nesse conhecimento que se efetua o estudo da praxeologia, diferenciando-a das ciências naturais.  Conhecemos as forças que provocam as mudanças e este conhecimento apriorístico nos permite compreender os processos praxeológicos.  O físico não sabe o que “é” a eletricidade.  Conhece apenas os fenômenos atribuídos ao que chamamos de eletricidade.  Já o economista sabe o que impulsiona o processo de mercado.  Graças a esse conhecimento é que ele pode distinguir os fenômenos de mercado de outros, e descrever o processo de mercado.

A praxeologia não é uma ciência histórica, mas uma ciência teórica e sistemática.  Suas afirmativas e proposições não derivam da experiência.  São como a lógica e a matemática: apriorísticas.  Não estão sujeitas a verificação ou a falsificação com base na experiência e nos fatos.

Os ensinamentos da praxeologia e da economia são válidos para qualquer ação humana, independentemente de seus motivos, causas ou objetivos subjacentes.  Os julgamentos finais de valor e os objetivos finais da ação humana são dados para qualquer tipo de investigação científica; não são passíveis de maior análise.  A praxeologia lida com os meios e recursos escolhidos para a obtenção de tais objetivos finais. Seu objeto são os meios, não os fins.  O único padrão que utiliza é o de procurar saber se os meios escolhidos para a obtenção dos fins pretendidos são ou não os mais adequados.

Só os loucos se atrevem a desrespeitar as leis físicas e biológicas.  Mas é muito comum desdenharem-se as leis praxeológicas.  Os governantes não gostam de admitir que o seu poder possa ser limitado por leis outras que não as da física ou da biologia.  Nunca atribuem seus fracassos e frustrações à violação das leis econômicas.

Lucros e prejuízos

Os lucros são a força motriz da economia de mercado.  Quanto maior forem os lucros, melhor estarão sendo atendidas as necessidades dos consumidores.  Porque, no livre mercado, só se pode auferir lucros eliminado-se os obstáculos existentes entre os desejos dos consumidores e a configuração existente da atividade produtora.  Quem melhor servir o público, maiores lucros terá. Ao combater o lucro, os governos deliberadamente sabotam o funcionamento da economia de mercado.

Os lucros daqueles que produzem bens e serviços disputados pelos compradores não são a causa dos prejuízos daqueles que produzem mercadorias pelas quais o público não está disposto a pagar um preço suficiente para cobrir os custos de sua produção.  Esses prejuízos decorrem da falta de visão quanto à futura situação do mercado e quanto à demanda dos consumidores.

Na economia de mercado não existem conflitos entre os interesses de compradores e vendedores.  Existem prejuízos decorrentes de uma previsão malfeita.  Seria uma maravilha se todos os membros da sociedade de mercado pudessem, sempre, prever corretamente as condições futuras e ajustar suas ações correspondentemente. Se isso ocorresse, um exame retrospectivo mostraria que nenhuma parcela de capital e trabalho teria sido desperdiçada para satisfazer necessidades que fossem consideradas menos urgentes do que outras ainda não satisfeitas.  Mas o homem não é onisciente.  Examinar esses problemas com uma atitude de ressentimento e inveja conduz ao erro.

Se os lucros fossem restringidos em favor dos que foram prejudicados por uma mudança nas condições do mercado, ou seja, daqueles cujas previsões estavam erradas, o ajuste da oferta à demanda estaria sendo dificultado e não aperfeiçoado.  Se impedíssemos os médicos de ocasionalmente ganharem honorários elevados, estaríamos diminuindo, e não aumentando, o número daqueles que optam por se dedicar à medicina.

Lucros e prejuízos são favoráveis a alguns membros da sociedade e desfavoráveis a outros.  Daí a famosa conclusão: o que um ganha, o outro perde; ninguém lucra sem que alguém tenha prejuízo.  Esse dogma já havia sido enunciado por autores antigos.  Foi a quintessência das doutrinas do mercantilismo, antigo e moderno.  Está na raiz de todas as doutrinas modernas que alegam existir, no contexto da economia de mercado, um irreconciliável conflito de interesses entre as várias classes sociais de uma nação e, mais ainda, entre os interesses de uma nação e os de todas as outras nações.  Isso é inteiramente falso para quaisquer casos de lucros ou prejuízos empreendedoriais.

Em uma sociedade de mercado, livre de interferências, os ganhos de um indivíduo não decorrem da dor ou do sofrimento de seus concidadãos; decorrem do fato de ter aliviado a sensação de desconforto dessas mesmas pessoas.  O que faz mal ao doente é a doença e não o médico que o cura.  O ganho do médico não é decorrente da epidemia, mas da ajuda prestada àqueles que utilizam os seus serviços.

Um excesso do total de lucros sobre o total de prejuízos é uma prova do fato de estar havendo progresso econômico e melhora do nível de vida de todos os estratos da população.  Quanto maior esse excesso, maior o incremento de prosperidade geral.  Lucros e prejuízos empreendedoriais são fenômenos essenciais na economia de mercado.  Não pode haver uma economia de mercado sem ambos.

É absurdo falar de uma “taxa de lucro”, ou de uma “taxa normal de lucro”, ou de uma “taxa média de lucro”.  O lucro não é função nem depende da quantidade de capital empregado pelo empreendedor.  O capital não “gera” lucro.  Lucros e prejuízos dependem exclusivamente do sucesso ou fracasso do empreendedor em ajustar sua produção à demanda dos consumidores.  Não há nada que se possa chamar de “normal” ou “equilibrado” em relação a lucros.  Pelo contrário, lucros e prejuízos são sempre um fenômeno decorrente de um desvio da “normalidade”, de mudanças não previstas pela maioria das pessoas, e de um “desequilíbrio”.  Não poderiam existir em um mundo de normalidade e equilíbrio.  Numa economia em movimento prevalece sempre uma tendência ao desaparecimento dos lucros e prejuízos.  Lucros empreendedoriais não são um fenômeno permanente e, sim, um fenômeno transitório. Há no que concerne aos lucros e prejuízos uma tendência inerente ao seu desaparecimento.

A função empreendedorial, o empenho dos empreendedores em obter lucros, é a força motriz da economia de mercado. Lucro e prejuízo são os instrumentos por meio dos quais os consumidores exercem sua supremacia no mercado.  O comportamento dos consumidores gera os lucros e os prejuízos e, desta forma, transfere a propriedade dos meios de produção das mãos dos menos eficientes para as mãos dos mais eficientes.

A produção visando ao lucro é necessariamente produção voltada para o consumo, uma vez que os lucros só podem ser ganhos quando se fornece aos consumidores aquilo que eles mais urgentemente desejam.

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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