O dilema do sistema bancário e as regras da Basileia

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O artigo a seguir foi extraído do um boletim informativo mensal escrito para a empresa VOGA.

 

“Dentre todas as maneiras de se organizar o sistema bancário, a pior é justamente a que temos hoje”.  Essas palavras foram proferidas por ninguém menos que Sir Mervyn King, presidente do Banco Central da Inglaterra (Bank of England), em outubro de 2010, no seminário anual realizado pela revistaThe Economist (o Encontro de Buttonwood) em Nova York.  É difícil discordarmos.

A história do sistema bancário é repleta de crises, turbulências, euforias, depressões, quebras generalizadas, altos lucros e flutuações desenfreadas.  E, não obstante, o setor parece não ter aprendido muita coisa ao longo do tempo.  O dilema do sistema bancário ainda nos assombra: quando uma maioria de correntistas repentinamente resolve sacar o dinheiro de suas contas, não há dinheiro suficiente nos cofres dos bancos.

Um estudo do FMI, realizado em 2008, contabilizou 124 crises bancárias desde 1970.  Vários países estão na lista.  Devido à data do estudo, a Islândia não foi incluída.  E nem a Europa.

À luz dos atuais eventos, faz-se necessário a pergunta: pode o atual sistema bancário ser reformado?  A declaração de Sir Mervyn King deixa implícito que sim.  Certamente há outras maneiras de se organizar o sistema bancário.  Implícita também nessa afirmação está o fato de que o sistema bancário realmente já foi mais corretamente organizado.  Mas então por que o nosso atual sistema bancário é tão frágil?  Por que, em vez de progredir, regredimos nessa vital atividade econômica?  Por que esta é a única indústria que necessita de um emprestador de última instância?  Por que ela consegue fazer com que a economia de um país seja sua refém?  Quais são as reformas necessárias?

Abaixo, uma tentativa de abordar resumidamente as principais características do nosso atual sistema bancário.  Em seguida, uma análise da estrutura de Basileia III (os Acordos de Basileia III), a qual, no momento, está sendo anunciada solenemente como a suposta ferramenta que irá fortalecer a resiliência dos bancos a crises.  Ao final, serão levantadas algumas questões essenciais e, em seguida, apresentados os princípios sobre os quais devem ser basear qualquer tipo de reforma bancária.

O sistema bancário atual

São vários os aspectos da atual prática bancária que devem ser discutidos.  Não obstante, vamos aqui restringir nossa análise às características que melhor definem como os bancos operam nos dias de hoje.  Os efeitos econômicos de tais práticas são não apenas relevantes como também decisivos.

A maturação descompassada

A regra de ouro sobre como deveria funcionar o sistema bancário foi cunhada em 1853 por Otto Hübner, que disse que “ativos e passivos não devem ter suas datas de maturação descompassadas”.  Mas este não é um problema restrito aos bancos.  Com efeito, todas as empresas têm de aprender a como lidar com ativos e passivos que maturam em períodos de tempo distintos.  Seja uma produtora de aço ou um supermercado, os empreendedores têm de garantir que seus passivos não vencerão antes de seus investimentos.  Um problema de liquidez pode acabar se transformando em um problema de solvência caso os ativos tenham de ser vendidos a preços de liquidação ou caso os passivos não consigam ser rolados.

Em suma, os bancos emitem passivos de curto prazo (depósitos em conta-corrente, ou seja, dívida com com prazo de maturação zero) com o intuito de financiar investimentos de longo prazo (por exemplo, empréstimos comerciais, hipotecários etc.).  Se os correntistas constantemente renovarem suas dívidas (isto é, se absterem de sacar suas contas-correntes), os bancos não terão problemas de liquidez.  Os problemas surgem quando há uma mudança de comportamento e os correntistas decidem tirar seu dinheiro dos bancos.

O sistema bancário de reservas fracionárias

A maturação descompassada é uma especulação de risco.  E a prática de reservas fracionárias é uma maturação descompassada em ampla escala.

Se um banco utiliza $100 em dinheiro em espécie que estava em uma conta-corrente para emprestá-lo para um indivíduo qualquer a um prazo de maturação de dois anos, o banco está incorrendo em uma maturação descompassada.  Ele emitiu $100 em passivos de curto prazo para financiar ativos de longo prazo.  Se ele não conseguir converter esse ativo em $100 quando for demandado pelo correntista, o banco estará insolvente.

No entanto, no atual sistema bancário de reservas fracionárias, os bancos normalmente não emprestam o dinheiro em espécie que foi depositado.  Eles, em vez disso, criam uma nova conta-corrente (formada unicamente por dígitos eletrônicos), cujo valor é então concedido como empréstimo.  Desta forma, o balancete de um banco irá mostrar um total de $200 na forma de depósitos em conta-corrente, sendo $100 em dinheiro em espécie e $100 em empréstimos (com dinheiro exclusivamente eletrônico).  Portanto, o banco possui 50% de dinheiro em espécie (reservas) para honrar seu passivo de $200.  Ele possui apenas uma “fração” como reserva.  Ao constatarem que os correntistas raramente retiram seus fundos, os bancos se sentem confiantes para expandir o crédito, concedendo empréstimos em quantias várias vezes superiores ao dinheiro originalmente depositado.  Bancos, desta forma, criam dinheiro “ex nihilo“.  Ou, como descrito nos atuais livros-texto de economia, eles multiplicam dinheiro.  Trata-se do “multiplicador monetário” (mais detalhes abaixo).

Portanto, por meio da prática de reservas fracionárias, os bancos podem emitir passivos de curto prazo ao mesmo tempo em que mantêm apenas uma pequena fração de ativos líquidos de curto prazo, sendo que a vasta maioria dos ativos está na forma de investimentos de longo prazo.  Ao longo da história, a maioria dos bancos mostrou-se incapaz de sobreviver durante muito tempo seguindo esta prática, dado que eles simplesmente não eram capazes de restituir todo o seu passivo em espécie (no passado, ouro; no presente, cédulas criadas pelo banco central).  A criação de um banco central foi a consequência lógica desse arranjo, uma criação com o objetivo de remediar essa falha.

Bancos centrais

Praticamente todos os países do planeta possuem no núcleo de seu sistema financeiro um banco central, cujas funções precípuas são a emissão de moeda nacional e o controle das taxas de juros (controlando desta forma a oferta monetária), e que age como emprestador de última instância ao setor bancários em momentos de crise.  Adicionalmente, vários bancos centrais também assumem uma função regulatória com o objetivo de supervisionar os bancos, implementando uma miríade de regulamentações que tentam garantir a estabilidade do sistema financeiro.

O sistema bancário de reservas fracionárias não somente é monitorado como também é estimulado pelo banco central, cuja principal ferramenta de política monetária é o mecanismo dos “depósitos compulsórios”, isto é, a estipulação da quantidade de dinheiro que um banco deve manter como reserva para seus depósitos.  Ao reduzir a fração de reservas que os bancos são obrigados a manter, o banco central permite que o sistema bancário aumente o “multiplicador monetário”.  Os bancos podem agora expandir mais crédito em cima de uma mesma quantidade de reservas.

Até aqui, foram abordados de maneira descritiva apenas os aspectos mais essenciais do sistema bancário atual, com o objetivo de nos prepararmos para a análise a seguir.  À medida que prosseguirmos, serão apresentadas algumas críticas ao atual arranjo bancário.

O arranjo da Basileia

O total fracasso de Basileia I e principalmente de Basileia II em antecipar a crise financeira de 2007 estimulou as autoridades a revisar e atualizar seu arranjo de regras sobre a regulação do sistema bancário.  Sob o título de Basileia III, um arranjo revisado foi publicado às pressas.  Há algumas diferenças substanciais entre Basileia II e Basileia III.  Embora muitas das falhas anteriores tenham sido mantidas, trata-se de um passo na direção correta, embora seja um passo muito pequeno.  (A crítica a seguir está longe de ser completa).

De acordo com o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia (CSBB), as propostas de Basileia III têm dois principais objetivos: 1) fortalecer as regulamentações globais sobre capital e liquidez com o objetivo de promover um setor bancário mais resiliente; e 2) aprimorar a capacidade do setor bancário de absorver os choques oriundos de tensões financeiras e econômicas.

Para atingir estes objetivos, as principais propostas que o CSBB de Basileia III já desenvolveu são: a) reforma dosrequerimentos de capital (incluindo a qualidade e a quantidade do capital), completa cobertura de risco, grau de alavancagem; e b) alteração da liquidez do setor (razões de curto prazo e longo prazo).

Requerimentos de Capital e Ativos Ponderados pelo Risco (APR)

Em termos de requerimento de capital, as principais alterações estão nas exigências mais severas, tanto na qualidade quanto na quantidade.  Com relação à qualidade, as regras para a qualificação do capital são mais rigorosas.  Ações ordinárias e lucros obtidos passam a ser os componentes predominantes do Capital Tier 1 ao invés de apenas os instrumentos de dívida.

Com o intuito de preservar o núcleo do Tier 1, o Comitê introduziu dois novos “colchões”: o Colchão de Conservação de Capital tem o intuito de fazer com que os bancos absorvam choques durante períodos de tensão sem que saiam das especificações de capital do Tier 1, e um mais discricionário Colchão Contracíclico de capital tem o objetivo de compensar o aumento nos riscos sistêmicos em épocas de crescimento excessivo do crédito.

Em termos de quantidade, o Capital Tier 1 total agora requerido passa a ser de 6%, sendo que em Basileia II era apenas de 2% — em acréscimo aos “colchões”, que requerem 5% mais capital. Veja o gráfico.

(Colchão Contracíclico em azul claro; Colchão de Conservação de Capital em rosa; Capital Mínimo de Alta Qualidade em cinza)

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Período de tempo para a implementação dos novos requerimentos de capital

Adicionalmente, um novo grau de alavancagem também fará parte do aparato regulatório do sistema bancário.  Os bancos serão obrigados a manter um grau de alavancagem de 3% ou mais (33 vezes seu capital).  Os ativos não ponderados incluem provisões, empréstimos, itens não contabilizados nos balanços e que têm plena conversão, e todos os derivativos.  O principal objetivo desse grau de alavancagem é justamente restringir a alavancagem no setor bancário, ao mesmo tempo em que ajuda a proteger contra riscos de modelo (riscos envolvidos na utilização de modelos matemáticos que precificam papeis financeiros) e erros de mensuração.

É certamente meritório implementar regras mais rígidas sobre requerimentos de capital, mas isso ainda está longe de ser o bastante.  Vale lembrar que, no início da crise financeira, várias instituições financeiras estavam adequadamente capitalizadas, isto é, mais do que compatível com Basileia.  Não obstante, elas sucumbiram em menos de um mês.  Um exemplo emblemático foi o de um famoso banco hipotecário no Reino Unido.  Após a adoção de Basel II pelo Reino Unido em 2007, dentre todos os grandes bancos, aquele que mais rigorosamente seguia as determinações de requerimento de capital de Basileia II era o Northern Rock.  Apenas alguns dias após anunciar sua intenção de retornar seu capital em excesso aos seus acionistas, o banco simplesmente ficou sem dinheiro.  Em mais de 150 anos, foi a primeira “corrida bancária” clássica ocorrida na Grã-Bretanha.

Definir exatamente os requerimentos de capital é um trabalho em grande medida arbitrário.  Mais arbitrário ainda é a classificação de ativos de risco sob as regras da Basileia.  Na “abordagem padrão” (definida pelo Comitê da Basileia), títulos da dívida pública classificados entre AAA e AA- não requerem absolutamente nenhum capital, ao passo que A+ requer apenas 20%.  Entidades do setor público também desfrutam de um status de grande “segurança” sob Basileia.

Vejamos a Itália, por exemplo.  Um banco em posse de títulos italianos necessita de apenas 2,1% de Capital Tier 1 (20% de ativos ponderados pelo risco vezes 10,5% do necessário requerimento de capital estipulado por Basileia).  Isso significa que uma mera redução contábil de 5% na dívida italiana (na forma de calote) pode acabar com toda a base de capital de um banco.  Não nos esqueçamos de que a recente redução contábil proposta para a dívida grega foi de 50%.

Em dezembro de 2009, Grécia e Itália foram classificadas pela agência Fitch como A- e A+, respectivamente.  Isso significa que apenas 1,6% de Capital Tier 1 era requerido (20% de ativos ponderados pelo risco vezes 8% do requerimento de capital estipulado por Basileia).  Enquanto isso, títulos de Portugal, Irlanda e Espanha não requeriam absolutamente nenhuma reserva de capital.

As regras da Basileia geram um incentivo: acumular ativos de baixo risco e de risco nulo, o que faz com que a base de capital de um banco seja alavancada ao máximo.  Basileia III ao menos limita a alavancagem máxima.  Basileia II não impunha tal limite.  As securitizações foram um subproduto direto desta regras de requerimento de capital.  Várias hipotecas de risco foram empacotadas conjuntamente dentro do mesmo conjunto de títulos para serem revendidas no mercado secundário, e as agências de classificação de risco concederam AAA para esse conjunto de ativos podres (como que hipotecas ruins, ao serem empacotadas juntamente com centenas de outras hipotecas ruins, podem se transformar em ativos de alta qualidade é algo que ainda assombra).  Essa prática permitiu que os bancos concessores de empréstimos hipotecários retirassem ativos ruins de seus balancetes e, ao mesmo tempo, estimulava os bancos de investimento a acumular esses títulos sem jamais ter de se preocupar em manter uma quantidade suficiente de capital (pois eram AAA).

No entanto, em vez de utilizarem classificações externas, os bancos também podiam utilizar seus próprios parâmetros de risco para calcular seu capital, método esse conhecido como abordagem baseada na classificação interna (ABCI).  Por esse método, os bancos puderam empregar sofisticados modelos financeiros para determinar seu grau de exposição a vários riscos.  Apesar do total fracasso em utilizar complexos modelos de risco — os quais geraram a crise da LTCM (Long Term Capital Management) em 1998 —, os bancos estavam seguidamente determinando seu próprio requerimento de capital por meio de tais ferramentas (modelagem de risco é um tópico crucial, mas não será abordado em profundidade neste espaço).

Em suma, a modelagem financeira é algo amplamente imperfeito e bastante arbitrário.  Vários tipos de risco são irreconhecíveis e, por definição, não quantificáveis.  Ademais, modelos de risco estão sujeitos a grandes abusos e manipulações.  O principal incentivo dos bancos ao utilizar seus próprios modelos é subestimar os riscos de modo a permitir uma base de capital mais alavancada (e, logo, mais lucrativa).

Embora requerimentos de capital mais rígidos sejam de fato uma alteração bem-vinda, a estimativa de quanto capital é prudente é algo que depende de julgamentos arbitrários.  Adicionalmente, a avaliação de ativos de risco é completamente deficiente.  Ambas as abordagens — a padrão e a ABCI — são inerentemente falhas.

Por fim, os requerimentos de capital da Basileia são amplamente enviesados em prol da dívida governamental.  No Acordo da Basileia original (1988), as dívidas de todos os governos da OCDE receberam risco zero.  E isso permaneceu praticamente inalterado desde então.  Deveriam os reguladores se surpreender com o fato de que a maior ameaça para o sistema bancário europeu no momento seja exatamente a dívida soberana?

Índice de Liquidez

Basileia II centrou-se amplamente nos ativos dos balancetes dos bancos e negligenciou a liquidez e a estrutura dos passivos do sistema bancário.  Os novos Índices de Liquidez introduzidos por Basileia III tentam adereçar esta grave inconsistência.

Além do capital que os bancos devem ter como reserva para ativos ponderados pelo risco, as instituições financeiras hoje têm mais dois novos requerimentos para cumprir: Relação de Cobertura de Liquidez (RCL) e Relação Líquida de Financiamento Estável (RLFE).  A RCL foi criado para promover a resiliência de curto prazo do risco de liquidez de um banco, garantindo que ele possua uma quantidade suficiente de ativos altamente líquidos para sobreviver a um significativo cenário de tensão que dure 30 dias completos.  E a RLFE tem o objetivo de promover a resiliência de longo prazo ao exigir que os bancos possuam capital ou financiamento de longo prazo de alta qualidade para poderem sobreviver por um período de um ano de tensão um pouco menos severa.

Por mais louvável que seja esta regulação, ela se baseia em fundamentos questionáveis.  A RCL tem o objetivo de garantir que um banco possua uma quantidade suficiente de ativos líquidos desimpedidos e de alta qualidade que o permitam sobreviver (isto é, que o permitam satisfazer as crescentes exigências de restituição de dinheiro) durante um curto período (30 dias completos) de tensão bastante severa.  Isto, portanto, requer que um banco especule quais serão o fluxo de saída e o fluxo de entrada de dinheiro ao qual ele estará sujeito durante este período.  Considerando-se que é provável que eles sofram um aumento das exigências e uma diminuição dos recursos disponíveis, os bancos deveriam manter um colchão de ativos líquidos de alta qualidade em valor igual ou maior do que seu esperado fluxo líquido total de saída de dinheiro.  Os bancos serão obrigados a satisfazer A RCL a todo o momento.

A RCL supostamente possui uma função similar àquela dos compulsórios (definidos pelos bancos centrais).  Os compulsórios definem quanto de dinheiro em espécie (ou de dinheiro eletrônico na forma de reservas depositadas no banco central, conversíveis em dinheiro a qualquer momento) os bancos devem ter para lastrear seus depósitos em conta-corrente.  A RCL é exatamente a mesma coisa, com o acréscimo de que ativos de alta qualidade também se qualificam para satisfazer o regulador.  Os compulsórios no atual sistema bancário são menores do que 10% na maioria dos países, chegando até mesmo a 0% em alguns casos extremos (Austrália, Canadá e Nova Zelândia).

Duas críticas devem ser feitas: o arranjo de ativos de alta qualidade e o método de se estimar um “curto período de tensão bastante severa”.  Não é difícil adivinhar qual classe de ativos vai mais uma vez receber a imerecida classificação de alta qualidade.  Sim, naturalmente, as dívidas soberanas.  Não querendo soar repetitivo, deixemos aos mercados de capital decidir quão boas elas são.

Quanto à segunda crítica: como podem os bancos estimar o que constitui um período de tensão severa?  De acordo com o CSBB, as instituições financeiras devem calcular seu esperado fluxo líquido total de saída de dinheiro durante um cenário de 30 dias de tensão.  Com relação à saída de dinheiro, ela é “calculada multiplicando os saldos pendentes de várias categorias ou tipos de passivo e itens não contabilizados nos balanços por taxas esperadas de saques” (ênfase minha).

O eterno dilema do sistema bancário jaz exatamente no fato de que estas taxas não são quantificáveis.  A RCL da Basileia baseia-se no mesmo princípio utilizado para respaldar o valor percentual do compulsório: a “lei dos grandes números”.  Ou seja, para satisfazer as normais exigências de liquidez de seus clientes, os bancos precisam ter em mãos, na forma de dinheiro, apenas uma fração do dinheiro total que foi neles depositado.  No caso da RCL, para aguentar 30 dias de tensões severas, é necessário ter em mãos dinheiro e mais alguns outros ativos altamente líquidos.

No entanto, pelo simples fato de que o fenômeno bancário recai dentro do âmbito da ação humana, os riscos de retiradas de depósitos não são nem quantificáveis e nem seguráveis.  A ação humana está sempre sujeita a uma permanente incerteza.  Consequentemente, não se trata de um risco segurável (ou mensurável).  Ao longo da história, os bancos nunca se mostraram capazes de permanece solventes ao mantendo como reservas apenas uma fração de seus depósitos.  A RCL da Basileia irá impor um colchão mais grosso contra esta incerteza, é fato.  Mas não será capaz de evitá-la indefinidamente.  Não nos esqueçamos de que uma corrida bancária necessita de muito menos de que 30 dias para derrubar uma instituição financeira.

A Relação Líquida de Financiamento Estável (RLFE) é similar às regras de requerimento de capital, embora um pouco mais rígida.  Ela ataca as dificuldades geradas pela maturação descompassada obrigando os bancos a financiar determinadas classes de ativos com passivos de prazo mais longo (Capital Tier 1 e 2 incluídos).  Evidentemente, a dívida soberana está entre a classe de ativos da alta qualidade.  No final, a RLFE claramente representará um empecilho adicional ao crescimento dos balancetes.

Como um todo, Basileia III representa um aprimoramento sobre seu fracassado antecessor.  Os requerimentos de capital foram elevados.  E o Comitê finalmente reconheceu que a iliquidez pode rapidamente se transformar em insolvência.  Infelizmente, suas arbitrárias ponderações de risco se mantêm praticamente inalteradas desde 1988, concedendo a determinadas classes de ativos uma classificação de baixo risco (no mínimo) questionável.  Talvez a mais desapontadora peculiaridade seja seu longo cronograma de implementação.  Propostas essenciais foram postergadas para anos mais à frente e a conformidade completa às novas regras ficou apenas para 2019.  Algo que me diz que os bancos não têm todo esse tempo.

A lucratividade dos bancos (retorno sobre o patrimônio) sofrerá um bom impacto, tudo o mais o constante.  Mas é difícil prever como os bancos irão reagir para compensar esta perda de renda.  E há também os fardos burocráticos: relatórios, divulgações, transparências e aquiescência às regras de Basileia III certamente irão afetar o resultado financeiro dos bancos.

No final, o arranjo da Basileia é como um motorista indo em direção a um penhasco a 145 km/h e que repentinamente reduz para 95 km/h, ao mesmo tempo em que decide parar de fumar.  Isso certamente irá reduzir seus riscos.  Sua vida pode até se prolongar.  Mas o resultado final não será alterado.

Reformas verdadeiras

Portanto, como podemos aperfeiçoar o pior sistema bancário que já houve?  Como podemos garantir que os bancos internalizem os custos de suas maturações?

A primeira reforma a ser proposta já foi na realidade apresentada por dois membros do Parlamento britânico, Steven Baker e Douglas Carswell, por meio de um projeto de lei que proibiria os bancos e as sociedades de crédito imobiliário de emprestar dinheiro depositado em contas-correntes sem a permissão do respectivo correntista.

Seu propósito é distinguir os depósitos destinados à custódia dos depósitos destinados a serem emprestados por instituições financeiras.  Um projeto de lei simples e direto, que exigiria que os bancos especificassem no momento do depósito se o desejo do correntista é unicamente pedir que o banco guarde seu dinheiro ou se, ao contrário, ele autoriza o banco a emprestar seu dinheiro para terceiros.  Essa simples mudança na legislação teria um enorme impacto, uma vez que ela iria organizar a confusão e impedir que os bancos emprestassem dinheiro de correntistas que jamais intencionaram destinar seus fundos a empréstimos.  Emprestadores seriam recompensados com um pagamento de juros, por satisfazerem as necessidades de financiamento de um tomador de empréstimos; e os correntistas não mais se tornariam emprestadores involuntária e compulsoriamente, da noite para o dia.

Sim, correntistas que desejassem um serviço de custódia provavelmente teriam de pagar por ele.  No final, tudo vai depender do contrato entre o correntista e o banco; a única  desde que o contrato seja claro exequível.  Esta iniciativa iria diminuir enormemente os riscos de maturação descompassada que os bancos acentuadamente praticam no presente, o que iria reduzir as ameaças de crises de liquidez.

Consequentemente, o sistema bancário de reservas fracionárias (SBRF) teria de ser reavaliado, o que nos leva à segunda proposta.  A capacidade de criar depósitos por meio da expansão creditícia ex nihilo coloca todo o sistema bancário sob um enorme risco sistêmico.  Primeiramente, há o argumento legal, que considera ser uma fraude os bancos criarem múltiplos direitos de reivindicação sobre o mesmo dinheiro originalmente depositado por um único correntista (um argumento que este autor endossa).  Em segundo lugar, ao expandir o crédito independentemente de ter havido uma prévia formação de poupança, o SBRF gerará investimentos insustentáveis em diversas áreas, os quais mais cedo ou mais tarde terão de ser liquidados, exatamente por não haver recursos que deveriam ter sido previamente poupados.  Um típico exemplo de um ciclo econômico.

Reduzir a maturação descompassada a um mínimo e abolir o SBRF iria aperfeiçoar amplamente a solidez do sistema bancário.  Certamente o deixaria menos propenso a quebras sistêmicas.  Sob esse cenário, um banco central seria irrelevante, uma vez que sua principal função — prover liquidez — tornar-se-ia virtualmente desnecessária.

A terceira e última proposta possivelmente irá fazer com que as duas primeiras se tornem redundantes: a adoção de um free banking (sistema bancário livre, sem regulamentações, sem barreiras à entrada e sem moeda de curso forçado).  O free banking acarretaria a liberdade de se ser bem sucedido e, ainda mais importante, a liberdade de ir à falência; uma restauração dos incentivos adequados e uma abolição do sistema regulatório.  Acima de tudo, uma completa retirada do estado do sistema financeiro.  Isso significaria o fim do banco central.  Também significaria o fim de todos os seguros governamentais dos depósitos.  E, obviamente, nenhum tipo de pacote de socorro.

Internalizar os custos do sistema financeiro é algo central para restaurar a confiança no setor bancário.  Instituições deveriam ser livres para colher os altos (e arriscados) lucros oriundos da prática de tomar emprestado a curto prazo e emprestar a longo prazo.  Mas elas não deveriam poder socializar seus prejuízos para o restante da sociedade quando esses investimentos dessem errado.  Os bancos devem ser totalmente responsáveis por suas decisões.

Esse conjunto de reformas iria atacar várias questões que ameaçam o atual sistema bancário, como os derivativos.  Amplamente reconhecidos como “armas de destruição em massa”, a verdade é que eles só podem ser assim considerados em um cenário de garantia implícita de socorro.  A realidade é que o banco central foi criado não para impedir que os bancos assumissem riscos excessivos, mas sim para impedir que eles quebrassem como consequência desta assunção de riscos excessivos.  Jaz aí um de seus principais defeitos.

Seria preferível a adoção de todas as três propostas acima.  Nesta ordem.  E então poderíamos finalmente ter um free banking sujeito aos tradicionais princípios legais.  Um conceito tão simples e, no entanto, tão revolucionário em tempos modernos.  Tem funcionado para todas as outras indústrias.  Não há razão para crer que ela não funcionaria para os bancos.

Conclusão

Para utilizar outra frase de Sir Mervyn King, “esta é a pior crise financeira que já vivenciamos pelo menos desde a Grande Depressão, se não da história”.  Não há dúvidas a respeito.  E suas causas fundamentais estão intimamente ligadas à maneira como o sistema bancário é organizado.

Abolir o sistema bancário de reservas fracionárias e deixar claro quando os depósitos serão mantidos sob custódia é uma medida que irá aprimorar a solidez dos bancos.  No entanto, essas duas reformas podem fracassar se um emprestador de última instância continuar em operação, uma vez que os bancos encontrariam maneiras inovadoras de contornar essas restrições.

É válido lembrar que, dada a presença de uma implícita garantia de socorro, as regulamentações simplesmente se tornam o principal obstáculo no caminho dos bancos.  O incentivo do setor passa a ser o de contorná-las de modo a obter os maiores lucros possíveis.  Derivativos, exposições não contabilizadas nos balanços e tudo o mais que esteja fora do escopo das regulamentações se tornam válidos.  Perigosas inovações financeiras são o subproduto de regulamentações bancárias combinadas com uma implícita garantia de socorro.  O regulador sempre estará vários passos atrás.

A atual estrutura do sistema bancário estimula uma excessiva assunção de risco, embora desconsidere as consequências de tal postura.  Regulamentações bancárias (inclusive Basileia) induzem instituições financeiras a operarem no limite.  Aquiescer a regras mínimas, aceitar riscos máximos, e confiar em pacotes de socorro do banco central são atitudes que jamais podem infundir prudência à prática bancária.  Porém, o temor de falência certamente pode alterar o comportamento.

Um sistema financeiro sólido não pode se basear somente na confiança ou na ideia de que a maioria dos correntistas não irá exigir a restituição de seu dinheiro depositado.  Retornar a um sistema bancário sólido significa estender aos bancos as mesmas regras e incentivos que se aplicam a todo o resto da economia.  Nada de privilégios.  Nada de subsídios.  Bancos prudentes e capazes irão prosperar.  Os imprudentes e fraudulentos irão perecer.  E toda a economia irá se desenvolver sobre bases mais sólidas.

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