Ensaio sobre a desindustrialização brasileira

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desindustrializacao1. Análise crítica sobre o foco da discussão

A desindustrialização brasileira é o tema do momento. Diversos economistas e membros do governo têm falado sobre o tema nos jornais e, não incrivelmente, parece que há uma unanimidade sobre o assunto. Mas não é difícil explicá-la: sempre que quer explicações fáceis, a mídia adora recorrer aos economistas domainstream.

Seus apontamentos sobre as causas da desindustrialização falam, sobretudo, em câmbio: que é o câmbio que tem causado a desindustrialização brasileira; que o câmbio brasileiro está sobrevalorizado e isso afeta a “nossa” competitividade (“nossa” como se o Brasil fosse uma única entidade empresarial); que a culpa é do Custo Brasil por ele representar um fator importante da falta de competitividade; que a culpa é da elevada taxa de juros.  Alguns até se dão conta (às vezes sem conseguir entender direito, parece, e sem se aprofundar muito no assunto) de que é a enxurrada de dólares proporcionada pelo Federal Reserve (inflação monetária à moda Keynes) o que está causando toda esta farra na taxa de câmbio.

E lá vão eles, criticando a inflação monetária americana (e européia também) e assegurando que isso nos afeta porque aprecia nossa moeda em relação ao dólar e reduz a “nossa” competitividade. Criticam o que os outros países fazem, mas adoram utilizar a mesma receita para “nos proteger”. Já foi dada a largada para a corrida ao protecionismo, sendo que o mais importante foi esquecido: as vantagens comparativas. 

Se produzimos commodities de uma maneira incrivelmente eficiente, mas produzimos chips de computador de forma cara e obsoleta, por que forçar a produção adicional e a qualquer custo de chips, desperdiçando nosso capital e trabalho escassos?  Façamos fazer valer das vantagens comparativas, importemos de quem sabe fabricá-los de maneira mais eficiente, e paguemos mais barato pelos chips.

Porém, antes que haja uma crítica de que seremos eternos exportadores de commodities, é necessário saber que isso não vai durar para sempre.  Não porque um dia a matéria prima vai acabar e toda aquela ladainha; mas sim porque a ditadura dos consumidores, a livre atividade empresarial e toda a sinalização de lucros que ocorre num sistema de preços, poderão nos levar, no futuro, a sermos produtores de chips e outros bens com competitividade mundial. Por que não?

Outro ponto que impressiona é a justificação para intervenções no câmbio.  Dizem os burocratas e seus economistas alinhados que tais intervenções são para a proteção dos “nossos” empregos, explicitando uma visão estática de que um trabalhador despedido jamais iria conseguir emprego em outro lugar.  Pura miopia dos ignorantes e demagogia dos que sabem que, se algumas empresas fecham por conta da inviabilidade econômica fruto de apreciação cambial, outras irão abrir suas portas e empregar trabalhadores, obedecendo às vantagens comparativas.  Não devemos nos esquecer de que vivemos em um mundo de escassez, que o trabalho, o capital e a oferte de bens são escassos, e que temos que fazer sua melhor alocação possível.  Ou por acaso todo mundo já mora em uma mansão, com uma mesa farta de comes e bebes, com uma variedade de jatinhos particulares? Pelo contrário: diariamente, 25.000 pessoas no mundo morrem de fome. Veja quanto há para se fazer apenas para amenizar a escassez.

Além disso, se o hedge cambial é amplamente acessível às empresas por meio do mercado financeiro, qual a necessidade de o governo intervir no câmbio, recaindo esse custo de intervenção sobre os pagadores de impostos e sobre aqueles que serão usurpados pela inflação monetária resultante?  Apenas uma palavra vem à cabeça uma hora dessas: mercantilismo.

Mas todo este relato inicial foi apenas para analisar e criticar o foco da discussão.  Na realidade, está ocorrendo um fato ainda mais grave na economia brasileira, cujo efeito é oculto aos olhos de muitos. Vejamos que fato é esse.

2. A efetiva desindustrialização brasileira

Nos últimos anos, foram relatadas pelas entidades governamentais uma taxa de crescimento do PIB próxima a 5% ao ano, da qual é válido suspeitar. Afinal, o estado brasileiro arrecada em tributação 38% do PIB, apresenta um déficit nominal de 1,5% a 2% do PIB, e investe menos de 2% do PIB[1].  Além disso, o governo, por meio do Banco Central do Brasil, tem aumentado o meio circulante M1 próximo aos 16% ao ano desde 1994, num claro mecanismo de indução econômica insustentável.  A taxa básica de juros da economia sempre manifestou esse sintoma inflacionário, estando entre as taxas reais mais altas do mundo.

Mas o que significa essa síntese de dados?  Em verdade temos um claro sacrifício do investimento privado em função de consumo do governo.  E conforme meus dois artigos anteriores publicados pelo IMB (que apresentam a síntese das idéias apresentadas pelo Prof. Huerta de Soto em seu livro “Dinheiro, crédito bancário e ciclos econômicos”), sabemos que o crescimento sustentável se dá pelo aumento do grau de intensidade do capital da economia — isto é, quando a estrutura produtiva se torna mais intensiva em capital —, pois isso é o que proporciona uma maior produtividade de forma sustentável; e que a expansão creditícia artificial não sustentada pela poupança causa os ciclos econômicos, o consumo de capital e a concentração forçada da renda, traduzindo-se em uma estrutura produtiva menos intensiva em capital e menor produtividade.

Vejamos, então, a série histórica[2] de contas agregada nacionais dos últimos 15 anos[3], ou seja, desde a implementação do plano real até a atualidade, que podemos considerar como uma era contemporânea da economia brasileira.

Tabela 1 — Participação percentual do consumo intermediário e do Produto Interno Bruto em relação à produção total (produção total = 100)

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

Consumo intermediário

46,7

45,9

45,7

45,9

47,0

49,0

49,5

49,9

50,9

51,5

51,3

50,6

50,6

51,4

49,0

Produto Interno Bruto

61,1

61,5

61,4

61,2

60,9

58,9

58,8

58,2

56,8

56,6

56,7

57,5

57,5

57,1

59,1

Uma análise primária dos dados nos mostra claramente que, ao longo dos últimos 15 anos, a economia brasileira apresenta uma tendência de aumento relativo de consumo intermediário (consumo de bens e serviços para produzir outros bens e serviços) e uma tendência de redução relativa do produto interno bruto em relação à produção total.  Isto significa, em síntese, uma queda de produtividade, uma efetiva desindustrialização, pois estamos consumindo mais recursos para produzir uma quantidade relativa menor de produto.

Isto não quer dizer que não haja investimentos em capital, mas sim que o nível de investimentos é insuficiente sequer para repor o capital desgastado no processo produtivo da economia.  Ou, em termos técnicos, um investimento líquido negativo, ou ainda a diminuição da capacidade produtiva.

Quando expandimos a análise incorporando a drenagem de recursos do setor privado pelo governo, percebemos o quanto efetivamente sobra de recursos na economia. Vejamos os dados:

Tabela 2 — Participação percentual das contas que resultarão no produto privado remanescente em relação à produção total (produção total = 100)

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

Consumo intermediário

46,7

45,9

45,7

45,9

47,0

49,0

49,5

49,9

50,9

51,5

51,3

50,6

50,6

51,4

49,0

Produto Privado Bruto

53,3

54,1

54,3

54,1

53,0

51,0

50,5

50,1

49,1

48,5

48,7

49,4

49,4

48,6

51,0

Recursos drenados do setor privado

21,4

20,9

21,0

22,5

24,4

20,3

21,5

24,4

20,3

20,0

21,0

21,6

21,4

21,0

21,8

Produto Privado Remanescente

31,9

33,2

33,2

31,6

28,6

30,7

29,0

25,7

28,9

28,5

27,7

27,8

28,0

27,6

29,2

Aqui cabe um pequeno esclarecimento.  Como explicado neste artigo,

Quando o governo gasta, ele está consumindo bens que, de outra forma, seriam utilizados pela população ou mesmo por empreendedores para fins mais úteis e mais produtivos.  Por isso, todo o gasto do governo gera um exaurimento de recursos.  Bens que foram poupados para serem consumidos no futuro acabam sendo apropriados pelo governo, que os utilizará sempre de forma mais irracional que o mercado, que sempre se preocupa com o sistema de lucros e prejuízos.  Portanto, os gastos do governo exaurem a poupança (por ”poupança”, entenda-se ”bens que não foram consumidos no presente para serem utilizados em atividades futuras”).

[…]

Foi pensando nisso que os economistas da Escola Austríaca, capitaneados por Murray Rothbard, criaram uma maneira mais acurada de se medir o real valor da riqueza de uma economia.  A esse resultado eles deram o nome de PPR: Produto Privado Remanescente.

A maneira de se calcular o PPR é simples: dado que os gastos do governo equivalem na verdade a depredações econômicas, eles devem ser subtraídos do cálculo do PIB.  Ou seja: do valor anual do PIB divulgado, subtrai-se os gastos governamentais duas vezes.  A primeira, apenas para tirar essa variável da equação, obtendo-se assim o Produto Privado Bruto — PPB; a segunda, para levar em conta todos os recursos que o estado tungou do setor privado, obtendo-se assim o Produto Privado Remanescente, que representa a real criação de riqueza de uma economia.

Portanto, o produto privado bruto nada mais é do que o produto interno bruto menos os gastos governamentais contidos nele.  Do produto privado bruto, deduzimos novamente estes recursos drenados pelo governo — que perfizeram uma carga de 20% a 22% da produção nestes últimos 15 anos analisados — para compor o produto privado remanescente, a efetiva parcela da produção (aqui no Brasil, menos de 1/3 da produção total) que sustentará uma parte do consumo das famílias e praticamente todo o crescimento econômico.  É esta parcela que está sendo utilizada para a reposição do capital consumido na produção, bem como para a formação da poupança necessária para se investir em capital e para a expansão da capacidade produtiva e a modernização (aqui considero que o governo investe uma ínfima parte de todo o recurso drenado do setor privado).

E quando se acrescenta o consumo das famílias, as coisas ficam piores:

Tabela 3 — Participação percentual do consumo das famílias e da poupança privada em relação à produção total (produção total = 100)

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

Consumo das famílias

38,1

39,8

39,8

39,4

39,4

37,9

37,3

35,9

35,2

33,8

34,2

34,7

34,4

33,7

36,1

Poupança Privada

-6,3

-6,6

-6,6

-7,7

-10,8

-7,2

-8,3

-10,2

-6,3

-5,3

-6,5

-6,9

-6,5

-6,1

-6,9

O consumo das famílias ultrapassa o produto privado remanescente, evidenciando a poupança negativa.  Em outras palavras, o setor privado está consumindo capital para atender à demanda das famílias. Os empresários assim o fazem porque não há viabilidade econômica para a reposição de capital ou para investimentos para aumentar de capacidade de produção.  O custo de investir em reposição ou aumento de capacidade supera a expectativa de retorno.

3. Conclusões

O câmbio não é a causa da desindustrialização brasileira, já que, como foi mencionado anteriormente, câmbio apreciado fecha algumas portas, mas abre outras. O câmbio depreciado causa o mesmo efeito, só que as reclamações virão de outros setores da economia.  Além disso, na medida em que a taxa de câmbio aprecia, as importações se tornam mais baratas, aumentando a demanda por moeda estrangeira para o pagamento dos compromissos, exercendo um “efeito rebote” sobre a taxa de câmbio (a qual volta a se depreciar).  O revés também é verdadeiro.

Cantillon já explicou este fenômeno lá em remotos 1735, mas os burocratas sempre o ignoraram, preferindo a teoria mercantilista e todos os privilégios governamentais concedidos às empresas com boas conexões políticas à custa dos pagadores de impostos e dos usurpados pela inflação. Além disso, as operações de hedge cambial no mercado financeiro moderno possibilitam tranquilamente a efetiva proteção às empresas, tornando desnecessária qualquer intervenção cambial por parte do governo.

No que tange a estes últimos 15 anos, estamos num claro movimento de despoupança, ou seja, de consumo de capital.  Não é por acaso que os setores de consumo (etapas finais da estrutura produtiva e mais intensivos em mão-de-obra) apresentam melhores viabilidades econômicas em virtude das medidas de estímulo decorrentes da expansão artificial do crédito, e contribuem para o aquecimento do mercado de trabalho — o outro contribuinte é a inflação de preços que faz reduzir o salário real de uma maneira geral — fazendo parecer que estamos em uma bonança econômica.

Em termos de variação de PIB, apresentamos crescimento econômico, produzimos mais em termos absolutos em relação ao ano anterior.  Mas a que custo?  Ao custo do consumo de capital, ao custo da desindustrialização.  E quando a economia se der conta, a capacidade de produção já terá sofrido enorme perda, dificultando a sua retomada de crescimento sustentável.

É preciso, então, que haja viabilidade econômica na reposição de capital e um aumento da capacidade produtiva, o que irá reverter o quadro de despoupança, propiciando uma estrutura produtiva mais intensiva em capital.  Sabemos que os empresários estão sempre alertas para oportunidades e reduções de custo, mas a alta carga tributária, custo sobre folha de pagamento e burocracia, entre outros itens do “Custo Brasil”, são custos que não podem ser diretamente controlados por eles.  Reduzir os gastos do governo (e, consequentemente, os impostos) proporcionaria um aumento no produto privado remanescente, uma tendência à reversão do quadro de despoupança e, por conseguinte, a reversão do processo de desindustrialização.

Deixem o câmbio em paz.

 


[1] Economista Eduardo Gianetti, em entrevista ao jornal brasileiro “O Estado de São Paulo” em 18/09/2008.

[2] No que diz respeito aos dados, sua fonte são as tabelas de recursos e usos (TRU) e contas econômicas integradas (CEI) fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os valores originais são em moeda corrente, mas a análise aqui apresentada se dá em termos percentuais em relação à produção total para evidenciar a efetiva importância de cada conta.

[3] Os dados apresentados vão de 1995 até o ano de 2009 devido ao IBGE não apresentar a consolidação dos dados de 2010 e 2011.

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