Como o STF chancelou o monopólio estatal dos Correios

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postavlozkaNo dia 26 de outubro de 2010, Leandro Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil, escreveu um texto intitulado “A urgente necessidade de se desestatizar os Correios“, o qual foi republicado no dia 16 de junho de 2012.

No texto, Leandro deixa claro por que a desestatização da produção de qualquer bem ou da prestação de qualquer serviço será sempre benéfica para os consumidores, e por que, ao revés, a estatização será sempre maléfica, beneficiando apenas burocratas, políticos e sindicalistas.

No presente texto, contarei para vocês uma história que poucos conhecem, sobretudo os que não são da área jurídica. Trata-se de um processo que tramitou no Supremo Tribunal Federal, a ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 46, ajuizada pela ABRAED (Associação Brasileira das Empresas de Distribuição) contra a ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos), na qual foi questionada a constitucionalidade da Lei nº 6.538/1978, que “dispõe sobre os serviços postais” no Brasil. Esta lei não apenas assegura o monopólio dos serviços postais aos Correios (arts. 2º e 9º), como considera crime a “violação do privilégio postal da União” (art. 42).

Na petição inicial, que pode ser lida na íntegra aqui, a ABRAED alegou que a lei questionada afrontaria as seguintes regras da nossa Constituição Federal de 1988: art. 1º, inciso IV; art. 5º, inciso XIII; e art. 170, caput, inciso IV e parágrafo único. Tais regras possuem a seguinte redação:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(…)

IV – livre concorrência;

(…)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A ABRAED ajuizou a ação porque os Correios estavam ingressando com várias medidas judiciais contra empresas de distribuição que prestavam serviços de entrega de malotes, jornais, revistas, contas de água e luz etc. Em tais ações, os Correios alegavam ter o monopólio de todo e qualquer serviço postal e tentavam impedir tais empresas de distribuição de continuar exercendo livremente suas atividades. Um absurdo, mas, infelizmente, chancelado pela legislação!

A ABRAED não requereu o fim do monopólio dos Correios, mas apenas que ele ficasse restrito especificamente a cartas, entendidas estas como “papel escrito, envelopado, selado, enviado de uma parte a outra com informações de cunho pessoal”.

Em um longo, bem escrito e percuciente voto, o qual pode (e deve!) ser lido na íntegra aqui, o relator do processo, Ministro Marco Aurélio, decidiu pela procedência da ação, entendendo que o monopólio estatal dos Correios “viola os princípios da livre iniciativa, da liberdade no exercício de qualquer trabalho, da livre concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica”[1].

No entanto, todos os demais Ministros discordaram. Ao final, prevaleceu a tese do Ministro comunista[2] Eros Grau. Sem conseguir rebater os irrefutáveis argumentos de Marco Aurélio, Eros Grau saiu pela tangente e começou seu voto assim:

Acabamos de ouvir um longo voto, muito bonito desde o seu primeiro momento, quando o Ministro relator começou fazendo uma exposição sobre a interpretação, o círculo hermenêutico, a pré-compreensão, temas que entendo fascinantes. Mas vou pedir vênia para divergir. Diria, inicialmente, que toda a exposição atinente à atividade econômica em sentido estrito perde o sentido porque o serviço postal é serviço público.

Mais adiante, repetiu o falso argumento:

 O serviço postal não consubstancia atividade econômica em sentido estrito, a ser explorada por empresa privada. Por isso é que a argumentação em torno da livre iniciativa e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde o sentido.

Como a refutação do longo e bem articulado voto do Ministro Marco Aurélio era impossível, em seu curto e insosso voto Eros Grau apelou para frases de efeito como “a realidade social é o presente; o presente é vida; e vida é movimento”. E ainda achou espaço para incluir no seu voto a seguinte pérola:

No Brasil, hoje, aqui e agora — vigente uma Constituição que diz quais são os fundamentos do Brasil e, no artigo 3º, define os objetivos do Brasil [porque quando o artigo 3º fala da República Federativa do Brasil, está dizendo que ao Brasil incumbe construir uma sociedade livre, justa e solidária] — vigentes os artigos 1º e 3º da Constituição, exige-se, muito ao contrário do que propõe o voto do Ministro relator, um Estado forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência digna. A proposta de substituição do Estado pela sociedade civil, vale dizer, pelo mercado, é incompatível com a Constituição do Brasil e certamente não nos conduzirá a um bom destino.

O Ministro Joaquim Barbosa acompanhou a tese do comunista Eros Grau e também se achou no direito de proferir sua pérola, ao afirmar o seguinte:

Uma análise pormenorizada do que consubstanciaria o serviço postal conduz inafastavelmente à constatação de que o interesse primordial em jogo é o interesse geral de toda a coletividade. É do interesse da sociedade que, em todo e qualquer município da Federação, seja possível enviar/receber cartas pessoais, documentos e demais objetos elencados na legislação, com segurança, eficiência, continuidade e tarifas módicas. Não é mera faculdade do Poder Público colocar esse serviço à disposição da sociedade, e muito menos deixar sua completa execução aos humores do mercado, informado por interesses privados e econômicos.

Viram só? O Ministro Joaquim Barbosa acha que a melhor forma de assegurar serviços postais seguros, eficientes, contínuos e baratos para todos é entregar esses serviços a uma estatal monopolista. Se eu fosse um Ministro presente naquela sessão de julgamento, eu o interpelaria sem titubear: “Ministro Joaquim, vamos estatizar toda a economia, a fim de que em todas as áreas do mercado tenhamos empresas estatais oferecendo bens e serviços de forma eficiente, segura, contínua e barata?” O perigo era ele não entender que eu estava sendo irônico e responder: “Vamos!”

O Ministro Carlos Ayres Britto, outro conhecido por proferir pérolas nas sessões de julgamento do STF[3], também votou pela manutenção do monopólio estatal dos Correios. Ele disse que os Correios precisam ser monopolistas para “favorecer a comunicação privada entre pessoas, a integração nacional e o sigilo da correspondência”. Mais um que acredita que estatais monopolistas são melhores prestadoras de serviços e fornecedoras de bens do que empresas privadas atuando em regime de livre competição.

No final das contas, os Correios, como era de se esperar, mantiveram seu monopólio estatal[4], mas com uma importante ressalva, felizmente. Os Ministros excluíram do monopólio a distribuição de boletos, jornais, livros e periódicos. Menos mal. Confiram a ementa do julgado:

“ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES AO SERVIÇO POSTAL. PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL. COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E PARÁGRAFO ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO 9º, DA LEI.

1. O serviço postal —- conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e determinado —- não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público.

2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre no vocabulário vulgar.

3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X].

4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos — ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969.

5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado.

6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de privilégio, o privilégio postal.

7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade.

8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades postais descritas no artigo 9º desse ato normativo.”
(ADPF 46, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-01 PP-00020)

Que o monopólio estatal é péssimo, sobretudo para o consumidor, qualquer pessoa sensata sabe. Essas pessoas também sabem que monopólios estatais não são apenas ineficientes, mas antros de corrupção e de toda sorte de baixaria do mundo político e burocrático. Os Correios, evidentemente, não fogem a essa regra[5].

Mas e daí? À luz da Constituição, era preciso encontrar uma interpretação jurídica que acabasse com o monopólio estatal dos Correios. Os Ministros do STF tiveram a chance de fazê-lo no julgamento da ADPF 46, mas, com exceção do Ministro Marco Aurélio, fugiram do verdadeiro debate — livre iniciativa e livre concorrência são ruins para o consumidor? Um monopólio estatal atende melhor o consumidor do que um mercado desimpedido e competitivo? — e caíram no falacioso argumento do comunista Eros Grau, para quem “serviços públicos” não configuram “atividade econômica em sentido estrito” e, pois, são insuscetíveis de prestação pela iniciativa privada, sabe-se lá por quê? Sabendo que a expressão “monopólio” tem um sentido pejorativo, Eros Grau usou um eufemismo — “privilégio legal” — e conseguiu vencer a sua “luta de classes”[6]. Pior para todos nós, defensores da liberdade econômica.

 


[1] O voto tem trechos muito bons, em que o Ministro faz uma defesa firme e consistente da livre iniciativa e da livre concorrência e faz críticas acerbas ao monopólio estatal de qualquer atividade econômica. No entanto, o Ministro parece não defender uma total desestatização do setor, já que flerta em alguns momentos com a ideia do Estado regulador. Sobre o assunto, nunca é demais relembrar os excelentes textos de Leandro Roque sobre as privatizações brasileiras mais uma vez, deixa claro que privatizar sem desestatizar é insuficiente, representando, quando muito, uma mera mudança de endereço dos burocratas, que saíram das vetustas estatais e foram para as modernas agências reguladoras, facilmente capturadas pelos amigos do rei.

[2] Não sabia que Eros Grau é comunista? Então leia isso aqui: Sim, o Ministro comunista, hoje aposentado, confessou que tentava preservar a utopia do comunismo nos votos que proferia. Com certeza esse foi um dos votos em que ele fez isso, não é mesmo?

[3] Em seu voto na ação que pedia aos casais homossexuais os mesmos direitos dos heterossexuais, ele afirmou que “o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza”. No julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa, ele se saiu com essa: “enquanto o indivíduo é gente, o membro do poder é agente. Para sair da singela condição de gente para a de agente, é preciso maior qualificação, e essa é a razão de ser da Ficha Limpa”. Que erudição!

[4] Nesses julgamentos eu sempre me lembro de uma advertência feita por Hans-Hermann Hoppe: “Atualmente, o que ocorre é que, na eventualidade de um conflito entre um cidadão e o estado, será sempre o estado (ou um juiz que é empregado do estado) quem irá decidir quem está certo.  Se o estado decidir, por exemplo, que eu tenho de pagar a ele mais impostos e que eu não posso permitir que pessoas fumem no restaurante do qual sou o dono, e se eu não concordar com nenhuma destas decisões, o que posso fazer a respeito?  Posso apenas recorrer a um tribunal estatal, cujos juízes — muito bem remunerados com o dinheiro coletado pelo estado via impostos — são pagos para impingir as regulamentações do governo.  E o que estes juízes, com toda a probabilidade, irão decidir?  Que tudo isto é legal, obviamente!”.

[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Esc%C3%A2ndalo_dos_Correios.

[6] Pelas informações sobre o julgamento que constam do site do próprio STF, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não se manifestou como interessado para defender a livre iniciativa e a livre concorrência. Isso é estranho, porque no site do Ministério da Justiça há um link que explica para que servem o CADE e os demais órgãos integrantes do SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), e lá é possível ler o seguinte: “A defesa da concorrência preocupa-se com o bom funcionamento do sistema competitivo dos mercados. Ao se assegurar a livre concorrência, garante-se não somente preços mais baixos, mas também produtos de maior qualidade, diversificação e inovação, aumentando, portanto, o bem-estar do consumidor e o desenvolvimento econômico. A defesa da concorrência não se presta a proteger o concorrente individual, mas sim a coletividade, que se beneficia pela manutenção da concorrência nos mercados. O consumidor, portanto, é sempre o beneficiário final das normas de defesa da concorrência”. Talvez se o CADE, autoridade estatal, tivesse explicado isso ao comunista Eros Grau e seus seguidores, o julgamento da ADPF 46 tivesse outro desfecho.

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