Agora que Obama foi reeleito e a mídia foi finalmente liberada de sua prestimosa função de ‘chefe de torcida’ para a reeleição do ungido, toda a atenção voltou-se para um só assunto: o “precipício fiscal” para o qual a economia americana está se dirigindo e no qual ela chegará no início de 2013 — a menos que o Congresso e o presidente cheguem a um acordo e pisem no freio ou virem o volante.
Ainda fresquinho de sua vitória, Obama dedicou parte do seu discurso para explicar sucintamente como ele propõe evitar a queda no precipício: aumentando os impostos sobre aqueles americanos que ganham mais de US$250.000 por ano. Ele deixou claro que ninguém que ganha menos do que isso será intimado a pagar mais em impostos. Qual a fatia da população americana que ganha mais de US$250.000 por ano? Apenas 2% da população que paga impostos. Esses 2% que Obama quer atacar ganham 24,1% de toda a renda do país e são os responsáveis por 43,6% (dados de 2008) de toda a receita do governo federal com o imposto de renda de pessoa física.
De acordo com vários estudos de entidades autônomas e apartidárias, os 4 ou 5 pontos percentuais que Obama quer aumentar no imposto de renda destas pessoas irão gerar uma receita adicional de aproximadamente US$30 ou US$40 bilhões por ano. Dado que o déficit orçamentário do governo federal está muito acima de US$1 trilhão por ano, essa receita adicional seria apenas uma gota no balde. Mesmo se estes ricos dobrassem a quantia que pagam atualmente de impostos, o déficit do governo americano seria reduzido em apenas um terço — e isto supondo que tamanho aumento de impostos não gerassem nenhum efeito recessivo sobre a economia (o que teria o efeito de diminuir as receitas tributárias do governo), uma suposição bastante otimista.
Mas o que é exatamente esse tal “precipício fiscal”? Por que ele é tido como uma ameaça perigosa? Despido de todo o linguajar retoricamente carregado, o precipício fiscal é um mecanismo que, de maneira legal, entra em ação automaticamente com o intuito de reduzir o déficit do governo americano em 2013. Em outras palavras, trata-se de um gatilho orçamentário que é disparado automaticamente, impondo cortes de gastos e aumentos de impostos. Ou seja, o governo federal terá obrigatoriamente de gastar menos, sendo que uma maior fatia de seus gastos terá de ser paga via impostos e não via emissão de dívida. Não seria exatamente isso o que ambos os partidos, mais ou menos como o público em geral, querem? O precipício fiscal significa que o déficit orçamentário do governo federal será imediatamente reduzido à metade, caindo de seu atual valor (previsto) de US$1.1 trilhão em 2012 para aproximadamente US$641 bilhões em 2013. O que há de tão terrível nisso? Eu diria que há um perigo muito maior em se evitar o precipício do que em dirigir até ele.
O leitor há de se lembrar que o precipício foi criado ano passado, quando o Congresso não conseguiu encontrar maneiras de reduzir o déficit em troca de um aumento no teto da dívida. O teto da dívida foi elevado, mas ninguém apresentou propostas concretas sobre como iriam reduzir o déficit. O resultado dessa concessão foi oBudget Control Act of 2011 (Decreto do Controle Orçamentário de 2011), assinado em agosto daquele ano com o intuito único de ‘fazer de conta’ que estavam preocupados com o longo prazo da crise fiscal, e não simplesmente elevando o teto da dívida sem a imposição de compromissos especiais. Isso foi feito não apenas para apaziguar alguns deputados republicanos que ameaçavam votar contra o aumento do teto da dívida, mas também para satisfazer as agências de classificação de risco que haviam ameaçado reduzir a nota dos títulos americanos caso o Congresso não apresentasse nenhuma proposta.
Agora o enfoque passa a ser como o Congresso irá desmantelar a estrutura que ele próprio criou há apenas 16 meses. Não há dúvidas de que ele fará isso, dado que todos os economistas favoritos do regime estão assegurando aos políticos que o precipício fiscal irá produzir uma imediata recessão. A expiração automática dos cortes de impostos feitos por Bush em 2002 irá custar aos americanos aproximadamente US$423 bilhões apenas em 2013. E embora centenas de bilhões de dólares em cortes generalizados de gastos, inclusive para o setor militar, já tenham sido esboçados, nenhum político permitirá que isso ocorra.
É incrível como os membros do Congresso conseguem manter a cara limpa quando dizem querer atacar o problema do déficit ao mesmo tempo em que fazem de tudo para evitar qualquer ação substantiva. Não há dúvidas de que haverá um acordo conciliatório. Mas isso apenas irá substituir o atual precipício fiscal por outro ainda pior no futuro (o qual, por sua vez, também poderá ser facilmente desmantelado antes do decisivo e fatal precipício final). Será que as agências de classificação de risco irão aceitar este logro novamente? Se o país não possui a coragem política para enfrentar o precipício atual, por que alguém deveria crer que haverá estomago para o próximo, o qual será muito pior? Especialmente quando se leva em conta que, a cada vez que se adia um precipício, simplesmente se está aumentando o tamanho do próximo, tornando ainda mais difícil e doloroso seu enfrentamento.
Muitos comentaristas acreditam que o rebaixamento da classificação dos títulos americanos pela agência S&P no ano passado foi por causa da inação congressional que resultou no acordo do precipício fiscal. Mas a verdade é que a redução da nota provavelmente teria sido muito maior — e mais agências de classificação de risco provavelmente teriam se juntado à S&P — não fosse o acordo do precipício fiscal. Se novos rebaixamentos não ocorrerem quando este Congresso desmoralizado inevitavelmente inventar um novo acordo para empurrar com a barriga a solução do déficit, então as agências perderão qualquer credibilidade que ainda desfrutam. Em minha opinião, a única explicação para a inação das agências de classificação de risco é o seu temor de sofrer alguma retaliação regulatória do governo americano, que é quem as regulamenta.
Não creio ser nenhuma coincidência que, enquanto os bancos estão sofrendo uma fúria regulatória em decorrência de sua reconhecida culpabilidade pela crise hipotecária, as agências de classificação de risco permaneceram relativamente intocadas, sendo que elas tiveram um papel fundamental em criar e intensificar a crise hipotecária, pois foram elas que forneceram classificações questionavelmente altas para títulos lastreados em hipotecas insolventes. Meu palpite é que o governo americano simplesmente não quer cutucar esse vespeiro, uma vez que erros similares estão sendo cometidos por essas mesmas agências em relação à classificação dos títulos governamentais.
A verdade é que, independentemente de qual rótulo queiram utilizar, cair no precipício fiscal não é o problema, mas sim parte da solução. O Congresso na realidade deveria se empenhar para construir um precipício grande o bastante para restaurar o equilíbrio fiscal antes que desastre irreversível ocorra. Esse desastre virá na forma de uma crise do dólar ou da dívida soberana, que fará com que este atual precipício fiscal pareça apenas um simples amontoado de formigas.