Será que Gandhi era um libertário?

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ghandiMohandas K. Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1869, em Porbandar, cidade portuária da Índia Ocidental, às margens do mar de Omã. O pai era oficial de alta patente no governo do pequeno principado que exercia o poder nominal das imediações; na prática, o Gandhi mais velho reportava-se aos príncipes locais, que por sua vez reportavam-se aos oficiais britânicos locais, que eram quem de fato administrava as coisas. O mais jovem tinha interesse em fazer carreira na medicina, mas abandonou a ideia para agradar aos pais, demonstrando sua humildade e obediência, e dar continuidade às tradições familiares: em 1888, com 18 anos, mudou-se para Londres, para estudar Direito.

De volta à Índia, depois de três anos, descobriu que não conseguiria viver uma vida digna trabalhando como procurador, pelo menos não no próprio país. Depois do fracasso das tentativas de se estabelecer no setor privado, em Bombaim, voltou a fixar residência em Porbandar, trabalhando sob a supervisão de advogados já estabelecidos, no exercício de uma função que hoje seria descrita como assistência jurídica. Na primavera de 1893, com 23 anos e, ao que parecia, incapaz de se sustentar exercendo a profissão que, a princípio, só tinha abraçado para satisfazer à família, as circunstâncias econômicas obrigaram-no a aceitar um cargo no departamento jurídico de uma empresa indiana da cidade de Durban, na costa leste da África do Sul, outra parte do Império Britânico.

Até esse período da vida, Mohandas Gandhi tinha sido um exemplo de espírito colaborativo, que relegava a si mesmo a segundo plano. Nas palavras de seu biógrafo, o finado B. R. Nanda, “ele ainda não tinha manifestado nenhum tipo de autoafirmação, nem de agressividade”. O próprio Gandhi, muito tempo depois, comentaria que tinha sido educado “para acatar as ordens dos mais velhos, não para tentar entendê-las”. E não tentava entendê-las; obedecia sem reclamar, nem questionar. Tampouco o jovem Mohandas Gandhi revelava o mínimo interesse em política e eventos públicos, o que Nanda explica nos seguintes termos:

Até os 18 anos de idade, raramente Gandhi lia os jornais. Nem quando estudante na Inglaterra ou advogado em ascensão na Índia, demonstrou muito interesse pela política. Na verdade, era tomado de um nervosismo assustador toda vez que se levantava para ler um discurso numa reunião social ou para defender um cliente perante o juiz.

Contudo, à época em que chegou na África do Sul, na primavera de 1893, as coisas tinham mudado. Seus pais tinham falecido, e embora outros parentes mais idosos continuassem vivos, ele estava a mais de 6 mil quilômetros de casa e já não podia ouvir seus comentários e conselhos.

Tenham sido essas algumas de suas razões ou não, o fato é que aquele Mohandas Gandhi, cuja humildade era famosa dentre todos que o conheciam no primeiros anos de sua vida na Índia e Inglaterra, desapareceu depois de se mudar para a África e nunca mais voltou a ser visto. Foi substituído por um Gandhi mais empedernido, um Gandhi que já estava saturado daquela vida de capacho dos outros, um Gandhi que se rebelaria ao extremo contra quem ousasse usar de força contra ele.

Nanda relaciona algumas das indignidades que Gandhi sofreu pouco depois de sua chegada, impostas com base em leis sul-africanas que sujeitavam a tratamento de segunda classe pessoas consideradas “de cor”. Um dia,

viajando de trem para Pretória, ele foi expulso sem cerimônia de uma cabine da primeira classe [pela qual tinha pago] e foi largado na Estação Pietermaritzburg, tremendo e se remoendo; em outro trecho da viagem, foi surrado por um cocheiro branco, que se recusou a viajar no estribo para dar lugar a um passageiro europeu; e, por fim, foi barrado em hotéis reservados “somente para europeus”.

Nanda escreve que, em resposta, Gandhi,

quase da noite para o dia, desabrochou como um habilidoso ativista político. Redigiu petições ao legislativo [colonial] e ao governo britânico, e coletou a assinatura de centenas de compatriotas. Ele … inspirou um espírito de solidariedade na heterogênea comunidade indiana. Inundou o governo, o legislativo e a imprensa de relatórios rigorosamente fundamentados, com queixas de indianos. Por fim, expôs aos olhos do restante do mundo o esqueleto que se escondia no armário do Império: a discriminação praticada contra os súditos indianos da Rainha Vitória em uma de suas colônias africanas.

A partir do outono de 1906, começou a usar outro instrumento, chamado “satyagraha”. Aqueles que Gandhi tinha organizado eram convocados a desafiar pacificamente toda lei considerada injusta e submeter-se a toda e qualquer penalidade resultante desse desafio. A tradução de Nanda para “satyagraha” é “devoção à verdade”, mas às vezes o vocábulo também é traduzido por “resoluta insistência na verdade” ou “persistência na busca da verdade”. Nanda escreve que se tratava de “uma nova técnica de reparar injustiças atraindo sobre si o sofrimento, em vez de infligi-lo; de resistir ao adversário sem rancor e combatê-lo sem violência”.

No livro The triumph of liberty, Jim Powell relata que

por volta de 1907, Gandhi promoveu campanhas na África do Sul contra as leis que proibiam os indianos de viajar, comerciar e viver em liberdade, e um amigo presenteou-o com uma cópia daDesobediência civil [de Henry David Thoreau], que ele leu nos três meses em que ficou preso em Pretória. Gandhi reconhece que

as ideias [de Thoreau] exerceram uma enorme influência sobre mim. Não só adotei algumas delas como recomendei o estudo do autor a todos os amigos que me ajudavam com a causa da independência da Índia. …

Antes de ler esse ensaio, ainda não tinha achado uma tradução adequada do vocábulo indiano Satyagraha para o inglês.

Especialista em Thoreau, Walter Harding escreve que, depois de ler A desobediência civil pela primeira vez, naquela prisão em Pretória, Gandhi “sempre levava uma cópia consigo, nas muitas vezes em que foi preso” nos anos seguintes.

Quando se menciona esse vínculo entre Thoreau e Gandhi, é quase garantido que alguém pergunte (seja em tom de queixa, em tom de sarcasmo ou movido por uma curiosidade genuína): “Mas Gandhi era libertário?” Ora, é claro que isso depende de como esses termos são definidos — o que se entende pelo vocábulo “libertário” e que tipo de evidência se considera válida quando se trata de decidir se determinado escritor, professor ou ativista político é ou foi “libertário”. Um número enorme de pessoas dispostas a dar crédito à reivindicação de Glenn Beck ou de Bob Barr, de serem “libertários”, mostra-se estranhamente avesso a estender o mesmo benefício da dúvida a – digamos — Emma Goldman ou Rudolf Rocker.

No caso de Mohandas Gandhi, os fatos são os seguintes:

B. R. Nanda relata que, em Durban, em janeiro de 1897, Gandhi

foi assaltado e quase linchado por uma turba de brancos … mas recusou-se a processar os assaltantes. Segundo disse, era um princípio que ele adotava: não querer reparar uma injustiça pessoal em um tribunal de justiça. … [A descrença no aparato do governo era quase tão arraigada em [Gandhi] quanto em Tolstoi. Ele teria concordado com a doutrina do século XIX segundo a qual ‘o melhor governo é o que menos governa’. … [E]ssa máxima de Jefferson era fundamental no pensamento de Gandhi. “Uma sociedade organizada e gerida com base na absoluta não violência”, declarou várias vezes, “seria a mais pura das anarquias. … Só é perfeito e não violento o estado onde as pessoas são menos governadas.” E mais: “O estado não violento ideal será uma anarquia organizada. O estado mais bem-governado é aquele menos governado.”

O historiador intelectual George H. Smith explica a questão de um jeito bem parecido. “A repulsa de Gandhi à opressão do estado”, escreve, “era tão apaixonada e sincera quanto a de qualquer libertário de hoje”. Ele menciona as palavras de Gandhi, que teria dito que “todo homem que sujeita a própria vontade à do estado abdica de sua liberdade, desse modo tornando-se um escravo”.

Conforme Smith,

Muitos analistas apontam que Gandhi seguia a tradição anarquista e que seu anarquismo era acentuadamente individualista. Em comparação com a filosofia que se atribui ao Oriente, segundo a qual o indivíduo não teria importância nenhuma, Gandhi argumentava que “o indivíduo é o mais importante objeto de consideração”. “Nenhuma sociedade”, escreveu, “pode ser erigida sobre a negação da liberdade individual.” É contrário à própria natureza humana. Assim como em um homem não crescem chifres nem rabo, tampouco ele existirá como homem a menos que seja dotado de um espírito próprio. Na verdade, mesmo quem não acredita na liberdade do indivíduo acredita na própria liberdade.”

Em defesa de seu argumento, Smith menciona a opinião do filósofo acadêmico indiano Raghavan Iyer, que passou a maior parte da vida adulta nos Estados Unidos, lecionando na Universidade da Califórnia. “Não seria um exagero”, escreveu Iyer, em 1973, “considerar Gandhi um dos individualistas mais revolucionários e um dos revolucionários mais individualistas.” Citando Iyer, Smith alega que Gandhi “custava a acreditar na prioridade moral de qualquer agente coletivo sobre o indivíduo.”

O próprio juízo de Smith é inequívoco. “Na ótica libertária, sob qualquer critério razoável — o mesmo com o qual se avalia um Sam Adams, um Thomas Paine ou um Lysander Spooner”, escreve, “Mohandas Gandhi atenderia aos requisitos de um herói.” Smith admite que “no imenso corpus de seus escritos, não se acha um único tratado sistemático sobre teoria política. Entretanto, dispersos em várias cartas e artigos, vêem-se indícios inconfundíveis de sua tendência anarquista.” “Em seu modo de ver as coisas”, garante Smith, “[Gandhi] foi predominantemente libertário.” Ao longo de sua carreira de ativista, orientou-se pela “concepção de uma sociedade anarquista.”

E isso não é tudo. “Diversas vezes, Gandhi declarou-se anarquista”, escreve Smith,

Recusou cargos no poder político … exigiu a abolição do Congresso indiano, depois da independência do país … criticou o governo de Nehru … aspirou à abolição do exército indiano e à manutenção de uma força policial mínima, se tanto. … seu programa social inteiro tinha por eixo o estabelecimento de “assembléias de aldeia” descentralizadas, que lançariam mão de sanções sociais para manter a ordem e estariam isentas do controle do estado. … Gandhi era opositor ferrenho do imperialismo … da guerra (inclusive da Segunda Guerra Mundial), da censura e de quase todo tipo de intromissão do estado.”

No fim das contas, é claro que o argumento definitivo em favor do libertarianismo de Mohandas Gandhi é o fato de ser ele um pacifista. Em fóruns on-line, onde bravateadores munidos de pouca informação falam, em tom categórico, de assuntos sobre os quais são particularmente desinformados, não é incomum deparar com a afirmação de que “libertarianismo não é pacifismo”. “Você deve ter confundido libertarianismo e pacifismo”, erguerá a voz uma sedizente autoridade, com ar de enorme confiança e convicção. E não deixa de haver um quê de verdade em toda essa atitude.

É claro que libertarianismo não é pacifismo — não necessariamente, pelo menos. Por outro lado, pacifismo é libertarianismo. Quando se renuncia a toda forma de violência, é preciso renunciar ao estado. Desse modo, embora nem todo libertário seja pacifista, todo pacifista é libertário, tenha ele consciência disso ou não (e, convenhamos, grande número de pacifistas não têm essa consciência). Ao que parece, Gandhi era um dos que tinham.

Como o mundo inteiro sabe, Mohandas Gandhi voltou para a Índia em 1914, com 44 anos de idade, pouco depois da eclosão do que viria a ser conhecida como a Primeira Guerra Mundial. Ao longo das três décadas seguintes, para libertar a Índia do controle britânico, organizou e liderou o movimento que acabou atingindo esse objetivo.

Em 30 de janeiro de 1948, em Deli, a caminho do palanque de onde discursaria para um grupo de oração, foi morto a tiros de pistola por um nacionalista hindu — assassinado” é o termo que se costuma usar, uma vez que Gandhi era tanto um ativista político, quanto uma figura pública. Tinha 78 anos de idade.

Será que ele merece um lugar na tradição libertária? Eu diria que sim.

 

 

Este artigo foi transcrito do podcast Libertarian Tradition (A tradição libertária), “Mohandas K. Gandhi (1869–1948)”.

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Jeff Riggenbach
Jeff Riggenbach é jornalista, autor, redator, locutor e educador. Membro da Organization of American Historians e membro sênior do Randolph Bourne Institute, escreveu para os jornais New York Times, USA Today, Los Angeles Times e San Francisco Chronicle; para as revistas Reason, Inquiry e Liberty; e para os websites LewRockwell.com, AntiWar.com e RationalReview.com. Graças à habilidade vocal aperfeiçoada em rádios de música clássica e de notícias, de Los Angeles, San Francisco e Houston, Riggenbach também narrou as versões em audiobook de inúmeras obras libertárias, muitas delas disponíveis em Mises Media. Envie um e-mail. Veja o arquivo com os artigos de Jeff Riggenbach.

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