A etapa final do socialismo: a desintegração da Venezuela

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“O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”, disse Margaret Thatcher.  Na Venezuela, além do dinheiro, acabou também a paciência da população.

Cansada da escassez de produtos — falta de tudo: desde papel higiênico e jornais a produtos básicos de alimentação —, da inflação de preços galopante, da corrupção e da violência endêmica (a maior da América do Sul),dezenas de milhares de pessoas estão nas ruas protestando desde quarta-feira da semana passada.

O governo reprime as manifestações com violência.  Três pessoas foram assassinadas pelo governo e mais de 60 estão feridas.  A polícia está invadindo casas a esmo à procura do líder da oposição, que está foragido porque está jurado.

Há vários vídeos no YouTube descrevendo a situação e mostrando imagens do protesto.  Este, em espanhol e em inglês, resume o que está acontecendo na Venezuela.  Este mostra imagens dos confrontos e contém cenas fortes.  Aqui um manifestante é espancado pelas forças do governo.  E este mostra o exato momento em que um manifestante é assassinado.

Duas páginas foram criadas no Facebook para narrar e mostrar, em tempo real, tudo o que está acontecendo na Venezuela: SOS Venezuela e Somos más del 46% – Venezuela.  Ambas estão postando fotos das manifestações.

Segundo o jornal espanhol El País, jornais e redes de televisão venezuelanos estão limitando a veiculação de notícias sobre as manifestações, a mando do governo.

Praticamente nenhum canal de televisão está transmitindo imagens dos protestos.  Jornais impressos, que dependem da autorização do governo para a compra de papel, também têm dado pouco destaque às manifestações. Até o momento, três jornalistas que cobriam os protestos estão presos.

O jornal espanhol também denunciou ainda a suspensão, por parte de Maduro, dos serviços de metrô e ônibus que fazem o transporte entre Caracas e os municípios próximos, Sucre, Chacao e Baruta, governados pela oposição — e palco do início dos protestos.

O artigo a seguir é um compêndio de nossos artigos sobre a Venezuela, organizado de maneira cronológica.  Ele permite entender como as políticas econômicas do governo levaram a situação a este ponto.

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181-xx6M4.AuSt.55.jpegA turbulência econômica que fustiga a Venezuela tem recebido crescente atenção da mídia internacional ao longo dos últimos meses.

À medida que piora a situação econômica do país, seu governo vai se tornando cada vez mais autoritário.  No momento, ele está fazendo de tudo para solapar as bases do já extremamente deteriorado tecido social do país.

Em setembro de 2013, a contínua escassez de papel higiênico (que ocorreu após a escassez de alimentos e de apagões no setor elétrico) levou o governo a ocupar uma fábrica de papel higiênico, com o uso maciço de força militar, com o intuito de garantir uma “distribuição justa” dos estoques disponíveis.  Parece cômico, mas é imensamente trágico.

No início de novembro, após o presidente Nicolás Maduro acusar os fabricantes de manipulação de preços, ele ordenou que o exército ocupasse as lojas e confiscasse todos os bens com o intuito de vendê-los a “um preço justo”.  Ato contínuo, Maduro mandou prender os comerciantes e ainda enviou o alerta de que “este é apenas o início de tudo o que farei para proteger o povo venezuelano”.

Logo após esse confisco, multidões se aglomeraram, ao longo de todo o país, em frente às portas de várias lojas de eletrodomésticos com o intuito de saqueá-las, o que chegou a ocorrer em vários casos.

Maduro asseverou que o governo iria, dali em diante, supervisionar todas as redes varejistas do país para se assegurar de que os preços fossem significativamente reduzidos.  Também ordenou que todos os estoques das lojas deveriam ser liquidados.  Em um discurso televisionado, ele mandou a mensagem: “Não deixem que nada permaneça nas prateleiras”.

Também no início de novembro, imediatamente após ter criado o Ministério da Suprema Felicidade Social — em mais uma tentativa de garantir a “felicidade para todas as pessoas” —, Maduro anunciou que iria antecipar o natalpara o mês de novembro.  O intuito era “trazer felicidade para o povo e combater a amargura”.  Ato contínuo, o presidente começou a distribuir benesses natalinas, já pensando nas eleições municipais de dezembro.

Mas este populismo não era apenas uma questão de estratégia política.  A taxa de inflação de preços na Venezuela, como será demonstrado mais abaixo, já está nos três dígitos.  Em um cenário assim, os salários precisam ser distribuídos de forma rápida, antes que os preços subam ainda mais; daí a “antecipação” dos bônus natalinos.  Esse tipo de política não tem absolutamente nada de novo na história econômica do mundo: o atual episódio hiperinflacionário da Venezuela está se desenrolando de uma maneira muito semelhante ao da Alemanha da década de 1920.

A história da economia venezuelana e de sua decadente moeda, o bolívar, pode ser resumida na seguinte frase: “De mal a pior”.  Com efeito, a situação já extremamente deteriorada da Venezuela conseguiu dar uma guinada para pior.

A espiral decadente da economia venezuelana começou de fato quando Hugo Chávez decidiu impor seu “socialismo moreno” ao país, uma excentricidade que, à época, chegou a ser relativamente bem recebida por vários setores da grande mídia.  Durante anos, a Venezuela manteve um volumoso programa de gastos sociais combinado com controles de preços e salários e com um mercado de trabalho extremamente rígido, além de manter, como política externa, uma agressiva estratégia de ajuda internacional voltada majoritariamente para Cuba.  Todo este insano castelo de cartas conseguiu se manter solvente por um bom tempo unicamente por causa das receitas do petróleo.

Mas à medida que os custos deste populismo foram crescendo, o país teve de recorrer com cada vez mais frequência aos cofres da estatal petrolífera PDVSA e à impressora do dinheiro do Banco Central da Venezuela.  Isso resultou em um declínio contínuo do valor do bolívar — um declínio que se acelerou ainda mais após começarem a surgir notícias sobre o crítico estado de saúde de Hugo Chávez.

A morte de Chávez, no dia 5 de março de 2013, gerou um abalo sísmico em toda a economia venezuelana.  De maneira nada surpreendente, desde que seu sucessor Maduro assumiu o controle do país, o castelo de cartas venezuelano começou a desmoronar.  A taxa de câmbio do bolívar no mercado paralelo ilustra bem essa história.  Desde a morte de Chávez até novembro de 2013, o bolívar já perdeu 64,5% de seu valor em relação ao dólar no mercado paralelo, como mostra o gráfico abaixo.

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Gráfico 1: taxa de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo (linha azul) versus taxa de câmbio oficial declarada pelo governo (linha vermelha)

Essa acentuada desvalorização do bolívar, por sua vez, gerou uma extremamente alta inflação de preços na Venezuela.  Para economias altamente estatizadas, a desvalorização de uma moeda no mercado paralelo é o mensurador que melhor estima o real valor dessa moeda.  Com este mensurador, é possível inferir que a inflação de preços “reprimida” na Venezuela está atualmente nos três dígitos, alcançando o estonteante valor anual de 297%, como mostra o gráfico abaixo.

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Gráfico 2: inflação de preços oficial (linha vermelha) versus inflação de preços implícita (linha azul) acumuladas em 12 meses.

O governo reagiu exatamente como todos os governos populistas reagem aos aumentos de preços causados por suas próprias políticas: impondo controle de preços cada vez mais rígidos.  Obviamente, como Ludwig von Mises já havia explicado há várias décadas, estas políticas não apenas fracassaram completamente, como geraram um grande desabastecimento nos supermercados e uma constrangedora escassez de vários produtos essenciais, como papel higiênico.

De fato, como mostra o gráfico abaixo, do próprio Banco Central da Venezuela, aproximadamente 22,4% de todos os bens existentes no mercado simplesmente não mais estão disponíveis nas lojas e nos supermercados da Venezuela.  Esse índice parece um remix daquela clássica música de Paul McCartney: “Back in the USSR“.

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Gráfico 3: Índice de escassez de bens nas lojas e supermercados

Apesar dos congelamentos de preços e da escassez, nada foi feito para atacar a causa básica das aflições inflacionárias da Venezuela, que é o descontrole da oferta monetária.

Este gráfico mostra a evolução da quantidade de dinheiro na economia venezuelana (agregado M3) de acordo com as estatísticas do próprio Banco Central venezuelano.  Em sete anos, a quantidade de dinheiro na economia aumentou 93 vezes, ou incríveis 9.200%.

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Gráfico 4: evolução da quantidade de dinheiro na economia venezuelana

O governo Maduro reagiu a tudo isso recorrendo exatamente às mesmas táticas empregadas por outros regimes totalitários e com moedas destroçadas.  Do Zimbábue de Robert Mugabe à Coréia do Norte atual, o manual é simples: negar e enganar.

A verdadeira taxa de inflação de preços demonstrada no gráfico 2, de 297%, é cinco vezes maior do que a taxa oficial de inflação de preços, de 54%, que é divulgada pelo governo venezuelano e repetida pela imprensa internacional.

Com efeito, vejo no Financial Times este valor de “54%” e me pergunto: “Como eles acreditam nisso”?  Mas a resposta é cristalina: os censores venezuelanos são muito eficazes.  Talvez não tanto quanto os censores chineses, mas ainda assim eficazes.  Os jornalistas lotados em Caracas com os quais converso frequentemente me dizem que as agências de notícias já fazem voluntariamente todo o trabalho de auto-censura em prol do governo, pois querem evitar que seus jornalistas em Caracas sejam expulsos do país.

O problema é que, ao menos na Venezuela, tais políticas não são novidade nenhuma.  Há anos o governo controla os preços de vários bens.  Por exemplo, o preço do galão da gasolina prêmio está congelado em US$0,058, o que faz com que um galão de gasolina seja mais barato que um galão de água potável em Caracas.

Além da escassez, controles de preços podem levar a consequências políticas não imaginadas.  Uma vez que os controles de preços são implementados, é muito difícil revogá-los sem que isso gere inquietação popular — veja os distúrbios que ocorreram em 1989 na Venezuela, quando o presidente Carlos Perez tentou abolir o congelamento de preços.

Embora o congelamento mantenha os preços dos bens em níveis ostensivamente baixos no mercado oficial, eles inevitavelmente geram prateleiras vazias, privando vários consumidores de ter acesso a bens essenciais.  Controle de preços em conjunto com uma regulação da margem de lucro não pode gerar outra coisa senão o desabastecimento.  Como resultado, a escassez de produtos bateu recordes na Venezuela.

Recentemente, em uma reação estouvada às aflições econômicas do país, Maduro exigiu — e conseguiu — que o Congresso lhe concedesse poderes emergenciais e ditatoriais sobre toda a economia.  Sua primeira medida foi estipular um limite nos lucros das empresas.  Essa, no entanto, é apenas uma tática para gerar distração, pois a própria inflação de preços corrói os lucros e dilui a taxa de retorno dos investimentos.

Maduro também lançou um feroz ataque à indústria automotiva, assinando um decreto para regular a produção e os preços de automóveis “da porta da fábrica até os pontos de revenda”.  Como consequência, o governo começou a controlar os preços dos carros e a ameaçar de prisão todos aqueles que ousarem vender automóveis aos seus preços de mercado.  Será interessante ver quem Maduro irá culpar quando esta medida resultar em escassez de novos carros.

O governo venezuelano alega que a alta inflação de preços e o desabastecimento generalizado de produtos básicos são resultado tanto de uma “guerra econômica” feita pelos EUA quanto de maquinações maquiavélicas da “classe burguesa parasítica” da Venezuela.  Por isso, Maduro começou a mobilizar suas tropas contra estes “inimigos” e passou a encarcerar todos os comerciantes que pudessem ser enquadrados no crime de “usura” e “extorsão”.

Veja no vídeo abaixo o desespero de um comerciante ao ser preso pelo governo pelo simples fato de não ter reduzido seus preços como ordenava o governo:

Essa escolha entre preço “justo” e encarceramento é agora a norma para os empreendedores da Venezuela.  Herbert Garcia, chefe do Alto Comissariado para a Defesa Popular da Economia, disse bem claramente: “Temos de garantir que todas as pessoas tenham uma TV de plasma e uma geladeira de última geração”.

O único problema é que o governo não foi capaz de fazer com que sua rede estatal de energia elétrica fornecesse eletricidade o suficiente para alimentar os produtos eletroeletrônicos espoliados, e os constantes e volumosos apagões não estão deixando os espoliadores usufruírem os produtos de seus saques.

image.jpgComprovando sua ignorância econômica, Maduro disse que o Banco Central venezuelano tem de estar mais atento às maquinações dos empresários do país e divagou: “Se estamos baixando os preços dos produtos em quase 100%, isso deveria impactar a taxa de inflação, não?”  É claro que não.  Enquanto o Banco Central continuar criando dinheiro para financiar o governo (ver o gráfico 4), a inflação de preços continuará subindo.  E ao ativamente estimular os saques aos comerciantes, o governo está deliberadamente desestabilizando a sociedade venezuelana, muito provavelmente com o intuito de ter a justificativa para adotar medidas ainda mais radicais.

Em abril de 2013, quando Nicolás Maduro oficialmente assumiu a presidência após uma vitória bastante questionável nas urnas, várias pessoas especularam que ele seria mais conciliador e moderado que seu antecessor Chávez.  Ledo engano.  Já está claro agora que, sob Maduro, o chavismo foi elevado ao paroxismo e que o pior ainda está por vir na Venezuela.

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Steve Hanke
Steve Hanke é professor de Economia Aplicada e co-diretor do Institute for Applied Economics, Global Health, and the Study of Business Enterprise da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, EUA. O Professor Hanke também é membro sênior do Cato Institute em Washington, D.C.; professor eminente da Universitas Pelita Harapan em Jacarta, Indonésia; conselheiro sênior do Instituto Internacional de Pesquisa Monetária da Universidade da China, em Pequim; conselheiro especial do Center for Financial Stability, de Nova York; membro do Comitê Consultivo Internacional do Banco Central do Kuwait; membro do Conselho Consultivo Financeiro dos Emirados Árabes Unidos; e articulista da Revista Globe Asia.

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