4. Böhm-Bawerk e a teoria do capital
4.1. Introdução
O impulso teórico mais importante que teve lugar na Escola Austríaca depois de Carl Menger é devido ao seu mais brilhante discípulo, Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914), que foi catedrático de Economia Política primeiro em Innsbruck e depois em Viena, chegando a ser ministro do governo do Império austro-húngaro em várias ocasiões. Böhm-Bawerk não só contribuiu para o aperfeiçoamento e divulgação da teoria subjetiva que devemos originariamente a Menger, como também expandiu notavelmente a sua aplicação ao campo da teoria do capital e do juro. Assim, devemos a Böhm-Bawerk uma obra cimeira, Capital e Juro (1884-1902) que, apesar do seu título, é todo um tratado completo de economia em que, ao redor da teoria subjetiva e dinâmica dos preços, se constrói o coração da teoria austríaca do capital. Afortunadamente, as partes mais importantes deste tratado já foram publicadas em espanhol (Böhm-Bawerk; 1986 e 1998), pelo que os estudantes do nosso país poderão cobrir o tradicional gap dos planos de estudo das faculdades de Economia, nos quais a análise da teoria do capital, chave para entender o processo de mercado, brilha pela sua ausência.
Além de desenvolver a teoria do capital, Böhm- -Bawerk criticou de maneira demolidora todas as teorias pré-existentes sobre o aparecimento do juro, sendo especialmente acertada a sua análise crítica da teoria marxista da exploração e das teorias que consideram que o juro tem a sua origem na produtividade marginal do capital. Além disso, Böhm-Bawerk expôs toda uma nova teoria sobre o aparecimento do juro baseada na realidade subjetiva da preferência temporal a qual, como já vimos, tem a sua origem nas contribuições do tomista Lessines, posteriormente redescobertas por Martín de Azpilcueta no final do século XVI. Embora a contribuição de Böhm-Bawerk não seja completamente perfeita no que toca à explicação do juro e, no final, quase sem se dar conta, caia parcialmente nas malhas da teoria da produtividade marginal do capital que tão brilhantemente havia criticado no primeiro volume da sua obra, devemos, não obstante, a Böhm-Bawerk, a colocação dos alicerces essenciais de uma teoria do capital e do juro que seria depois depurada das suas imperfeições e levada até às suas últimas consequências teóricas por autores como Frank A. Fetter (Fetter, 1977) e Ludwig von Mises (Mises, 1995: 573-693). Em seguida, veremos os princípios essenciais da teoria do capital tal e qual a mesma foi inicialmente desenvolvida por Böhm-Bawerk e posteriormente aperfeiçoada pelos seus principais discípulos.
4.2. A ação humana como conjunto de etapas subjetivas
Em princípio, pode definir-se a ação humana como todo o comportamento ou conduta deliberada (Mises, 1995: 15). Como já vimos, o homem ao agir, pretende alcançar determinados fins, que para ele são importantes, utilizando uma série de meios que considera adequados para alcançar o seu fim. Valor e utilidade são conceitos de apreciação psíquica, que se projetam pelo agente relativamente aos fins e aos meios. Os meios, por definição, devem ser escassos, posto que se não fossem considerados escassos pelo agente face aos fins que pretende alcançar, nem sequer seriam levados em conta por este no momento de agir. Fins e meios não estão “dados”, uma vez que, pelo contrário, são o resultado da essencial atividade empresarial do ser humano, que consiste precisamente, como já se viu no capítulo 2, em criar, descobrir ou, simplesmente, dar-se conta de quais são os fins e os meios relevantes para o agente em cada circunstância da sua vida. Assim que o agente acredita ter descoberto quais são os fins que valem a pena, concebe uma ideia dos meios que acredita que se encontram ao seu alcance para os atingir, e incorpora uns e outros, quase sempre de forma tácita, num plano de atuação, que decide empreender e levar à prática como resultado de um ato de vontade.
O plano é, portanto, a representação mental de tipo prospectivo que o agente concebe sobre as diferentes etapas, elementos e possíveis circunstâncias que podem estar relacionadas com a sua ação. É que a ação humana desenrola-se sempre notempo, não entendido no seu sentido determinista ou newtoniano, ou seja, meramente físico ou analógico, mas sim na sua concepção subjetivista, ou seja, tal e qual o tempo é subjetivamente sentido e experimentado pelo agente dentro do seu contexto de ação (O’Driscoll e Rizzo, 1996: 52-70). O tempo é, portanto, uma categoria da Ciência Econômica inseparável do conceito de ação humana. Não é possível conceber uma ação que não se efetue no tempo, que não dure tempo. Da mesma forma, o agente sente precisamente o decurso do tempo à medida que atua e termina as diferentes etapas do seu processo de ação. A ação humana, que visa sempre alcançar um objetivo ou acabar com um mal-estar, ineludivelmente dura tempo, no sentido de que exige a realização e concretização de uma série de etapas sucessivas. Portanto, pode-se concluir que o que separa o agente da consecução do seu desejado fim é um período de tempo entendido como a série sucessiva de etapas que constituem o seu processo de ação.
Do ponto de vista prospectivo e subjetivo do agente, pode-se afirmar que existe sempre uma tendência a que, à medida que aumenta o período de tempo que leva uma ação (ou seja, aumenta o número e complexidade de etapas sucessivas que a constituem), o resultado ou fim da ação que se pretende alcançar adquire um valor maior para o agente. A demonstração lógica desta lei econômica, segundo a qual os processos de ação humana tendem a atingir fins de maior valor à medida que a sua duração temporal aumenta, é muito fácil de entender. De fato, se assim não fosse, ou seja, se não se valorizasse mais o resultado das ações que duram mais tempo, estas não seriam de forma alguma empreendidas pelo agente, que optaria por ações temporalmente mais curtas. O que separa o agente do fim que pretende alcançar é precisamente uma determinada duração de tempo (entendido como o conjunto de etapas no seu processo de ação), pelo que é evidente que o ser humano, em igualdade de circunstâncias, sempre pretenderá atingir os seus fins o mais rapidamente possível, e apenas estará disposto a adiar no tempo a consecução dos mesmos se subjetivamente considerar que dessa forma conseguirá alcançar fins de maior valor.
Quase sem nos darmos conta, demos entrada no parágrafo anterior à categoria lógica da preferência temporal, que estabelece que, ceteris paribus, o agente prefere satisfazer as suas necessidades ou atingir os seus objetivos o mais rapidamente possível. Ou, expresso de outra forma, que entre dois objetivos de idêntico valor do ponto de vista subjetivo do agente, este preferirá sempre o objetivo que mais proximamente se encontre disponível no tempo. Ou, ainda mais brevemente, que, em igualdade de circunstâncias, os “bens presentes” são sempre preferíveis aos “bens futuros”. Esta lei da preferência temporal não é mais do que outra forma de expressar o princípio essencial segundo o qual todo o agente, no seu processo de ação, pretende atingir os seus objetivos o quanto antes. A preferência temporal não é, portanto, uma categoria psicológica ou fisiológica, mas antes uma exigência da estrutura lógica de toda a ação que se encontra inserida na mente de cada ser humano. Por isso, a lei de tendência expressa mais acima, segundo a qual se empreendem ações de maior duração por parte dos agentes, pois estes através das mesmas esperam alcançar objetivos de maior valor, e a lei da preferência temporal que acabamos de enunciar, de acordo com a qual, em igualdade de circunstâncias, são sempre preferíveis os bens mais próximos no tempo, não são senão duas formas distintas de expressar a mesma realidade.
4.3. Capital e bens de capital
Denominam-se bens de capital as etapas intermediárias de cada processo de ação, subjetivamente consideradas como tal pelo agente. Ou, se se preferir, bem de capital será cada uma das etapas intermediárias, subjetivamente considerada como tal, nas quais se expressa ou materializa todo o processo produtivo empreendido pelo agente. Por isso, os bens de capital devem sempre ser concebidos num contexto teleológico, em que o fim perseguido e a perspectiva subjetiva do agente em relação às etapas necessárias para o atingir são os seus elementos definidores essenciais (Kirzner, 1996: 13-122).
Os bens de capital são, portanto, os “bens econômicos de ordem superior” sobre os quais já teorizara Carl Menger ou, se se preferir, os fatores de produção que se incorporam em cada uma das etapas intermediárias de um processo concreto de ação. Além disso, os bens de capital aparecem como a conjunção acumulada de três elementos essenciais: recursos naturais, trabalho e tempo, todos eles combinados ao longo de um processo de ação empresarial criado e empreendido pelo ser humano.
A condição sine qua non para produzir bens de capital é a poupança, entendida como a renúncia ao consumo imediato. De fato, o agente apenas poderá alcançar sucessivas etapas intermediárias de um processo de ação cada vez mais afastadas no tempo se, previamente, tiver renunciado a empreender ações com um resultado temporal mais próximo, ou seja, se tiver renunciado à consecução de fins que satisfazem antes necessidades humanas e que, portanto, são temporalmente mais imediatos (consumo). Com a finalidade de ilustrar este importante aspecto, vamos explicar em primeiro lugar, e seguindo Böhm-Bawerk, o processo de poupança e investimento em bens de capital que realiza isoladamente um agente individual, por exemplo Robinson Crusoé na sua ilha (Böhm-Bawerk, 1998: 198-221).
Suponhamos que Robinson Crusoé se encontra recém chegado à sua ilha e que, como único meio de subsistência, se dedica à colheita de amoras, que recolhe dos arbustos diretamente ao seu alcance. Dedicando todo o seu esforço diário à colheita de amoras, colhe frutos em tal quantidade que pode subsistir e ainda consumir algumas mais do que as estritamente necessárias para sobreviver cada dia. Depois de várias semanas com esse regime, Robinson Crusoé descobre empresarialmente que, se usasse uma vara de madeira com vários metros de comprimento, poderia chegar mais alto e longe, golpear os arbustos com força e conseguir colher as amoras de que necessita com muito maior abundância e rapidez. O único problema é que calcula que para encontrar uma árvore da qual possa arrancar a vara e prepará-la, retirando-lhe os seus ramos, folhas e imperfeições, pode chegar a demorar cinco dias completos, durante os quais terá forçosamente que interromper a colheita de amoras. É preciso, então, se é que quer proceder à construção da vara, que durante uma série de dias reduza o seu consumo de amoras, deixando separado o remanescente numa cesta, até que disponha de uma quantidade suficiente de modo a permitir-lhe subsistir durante os cinco dias que prevê que durará o processo de produção da vara de madeira. Depois de planificar a sua ação, Robinson Crusoé decide empreendê-la, para o que, com caráter prévio, deve poupar uma parte das amoras que colhe à mão cada dia, reduzindo nessa quantidade o seu consumo. É claro que isto supõe para ele um sacrifícioiniludível, mas ele pensa que o mesmo é claramente compensador em relação à ansiada meta que pretende alcançar. E assim, por exemplo, durante dez dias, decide reduzir o seu consumo (ou seja, poupar) acumulando amoras de sobra numa cesta até alcançar uma quantidade que calcule ser suficiente para o sustentar enquanto produz a vara.
Com este exemplo, Böhm Bawerk ilustra como todo o processo de investimento em bens de capital exige com caráter prévio a poupança, ou seja, a redução do consumo para um nível abaixo do potencial. Quando Robinson Crusoé já tem suficientes amoras poupadas, então, durante cinco dias, dedica-se a procurar o ramo do qual fará a vara de madeira, a arrancá-lo e a aperfeiçoá-lo. Como se alimenta durante os cinco dias que dura o processo produtivo de elaborar a vara, e que forçosamente o mantém afastado da colheita diária de amoras? Simplesmente, com as amoras que havia acumulado no cesto nos dez dias anteriores durante os quais poupou, passando alguma fome, a parte necessária da sua produção “manual” de amoras. Desta maneira, se os cálculos de Robinson Crusoé estiverem corretos, decorridos os cinco dias terá à sua disposição a vara (bem de capital), que não é senão uma etapa intermediária que está temporalmente mais afastada (em cinco dias de poupança) dos processos de produção imediata de amoras que até então Robinson Crusoé estava empreendendo. É importante entender que Robinson Crusoé deve tentar coordenar da melhor maneira possível o seucomportamento presente em relação ao seu previsível comportamento futuro. Assim, concretamente, deve evitar empreender processos de ação excessivamente longos em relação à poupança que realizou, pois seria trágico que no meio do caminho de um processo de elaboração de um bem de capital ficasse sem amoras (ou seja, consumisse tudo o que havia poupado) sem ter alcançado o fim proposto. Igualmente deve evitar poupar em excesso relativamente às necessidades de investimento que terá depois, posto que ao atuar dessa forma estaria sacrificando desnecessariamente o seu consumo imediato. É precisamente a estimação subjetiva da sua preferência temporal que permite a Robinson Crusoé coordenar ou ajustar adequadamente o seu comportamento presente relativamente às suas necessidades e comportamentos previstos no futuro. O fato de a sua preferência temporal não ser absoluta faz com que seja possível que possa sacrificar parte do seu consumo presente durante uma série de dias com a esperança de tornar possível dessa forma a produção da vara. O fato de a sua preferência temporal não ser nula explica que apenas esteja disposto a dedicar o seu esforço a um bem de capital que possa obter num período limitado de tempo e à custa de um sacrifício (poupança) realizado durante um número não muito elevado de dias. Em todo o caso, é preciso compreender que os recursos reais poupados, inicialmente materializados nas amoras depositadas na cesta, são o que precisamente permite que Robinson Crusoé subsista durante o período de tempo no qual se dedica a elaborar o bem de capital, mantendo-se afastado da colheita direta de amoras. Posteriormente, e de forma paulatina, uns bens de capital (as amoras poupadas) são substituídos por outros (a vara de madeira) conforme Robinson Crusoé mistura o seu trabalho com os recursos naturais através de um processo empresarial que leva tempo e que Robinson Crusoé pode suportar graças ao sustento que lhe proporcionam os bens de consumo inicialmente poupados.
Pois bem, numa economia moderna, na qual existem múltiplos agentes econômicos que desempenham simultaneamente diferentes funções, denomina-se capitalista aquele agente econômico cuja função consiste precisamente em poupar, ou seja, em consumir menos do que cria ou produz, pondo à disposição dos trabalhadores, enquanto dura o processo produtivo no qual os mesmos intervêm, os bens de consumo de que necessitam para a sua subsistência (da mesma forma que Robinson Crusoé atua como capitalista poupando amoras que lhe permitem depois manter-se enquanto produz a sua vara de madeira). Portanto, o capitalista, ao poupar, libera recursos (bens de consumo) com recurso aos quais se podem manter aqueles trabalhadores que se dedicam às etapas produtivas mais afastadas do consumo final, ou seja, à produção de bens de capital.
De forma diferente do que ocorria com Robinson Crusoé, a estrutura dos processos produtivos da economia moderna é complicadíssima e, do ponto de vista temporal, enormemente prolongada. É constituída por múltiplas etapas, todas elas inter-relacionadas entre si e divididas em múltiplos subprocessos que se desenvolvem nos inúmeros projetos de ação que são continuamente empreendidos pelos seres humanos.
Assim, por exemplo, a estrutura produtiva do processo de produção de um automóvel pode ser considerada constituída por centenas e inclusivamente milhares de etapas que exigem um período de tempo muito prolongado (mesmo de vários anos), desde o momento em que, por exemplo, se concebe o desenho do veículo (etapa mais afastada do consumo final), passando pela encomenda aos fornecedores dos materiais correspondentes, pelas diferentes linhas de montagem, a encomenda das diferentes peças do motor e de todos os acessórios, e assim sucessivamente, até chegar às etapas mais próximas do consumo, como as de transporte e distribuição aos concessionários, o desenvolvimento de campanhas de publicidade e a exposição e venda ao público (Skousen, 1990).
É claro que, da mesma forma que a diferença entre o Robinson Crusoé “rico” com a vara e o Robinson Crusoé “pobre” sem ela radicava em que o primeiro dispunha de um bem de capital que havia conseguido graças a uma poupança prévia, a diferença essencial entre as sociedades ricas e as sociedades pobres não radica em as primeiras dedicarem mais esforço ao trabalho, nem sequer em disporem de maiores conhecimentos de um ponto de vista tecnológico, mas basicamente no fato de as nações ricas possuírem um maior emaranhado de bens de capital empresarialmente bem investidos, sob a forma de máquinas, ferramentas, computadores, programas informáticos, edifícios, produtos semi-elaborados etc., sendo que tal foi tornado possível graças à poupança prévia dos seus cidadãos. Acresce ainda que os bens de capital do complexíssimo emaranhado que constitui a estrutura produtiva real de uma economia moderna não são perpétuos, uma vez que são sempre transitórios no sentido de que se gastam ou consomem fisicamente ao longo do processo produtivo ou se tornam obsoletos. Significa isto que o agente econômico, se quer manter intacto o seu estoque de bens de capital, deve fazer frente à depreciação e desgaste dos mesmos, e se deseja incrementar ainda mais o número de etapas, alargar os processos e torná-los mais produtivos, será preciso que acumule poupança num montante superior ao mínimo necessário para fazer frente à estrita quota de amortização, como expressão quantificável da depreciação dos seus bens de capital.
Além disso, como regra geral, e isto é um aspecto importante a ter em conta na teoria austríaca dos ciclos econômicos, pode-se afirmar que os bens de capital dificilmente são reconvertíveis e que, quanto mais próximos estão da etapa final de consumo, mais dificilmente reconvertíveis são. De maneira que se se alteram as circunstâncias, o agente muda de opinião ou se se apercebe de que cometeu um erro, é bem possível que os bens de capital que havia elaborado até esse momento sejam de todo inutilizáveis, ou apenas possam ser utilizados depois de uma custosa reconversão.
Estamos agora em condições de introduzir o conceito de capital, que é distinto, do ponto de vista econômico, do conceito de “bens de capital”. De fato, pode-se definir o conceito de capital como o valor a preços de mercado dos bens de capital, valor que é estimado pelos agentes individuais que compram e vendem bens de capital num mercado livre. Vemos, portanto, que o capital é simplesmente um conceito abstrato ou um instrumento de cálculo econômico, ou seja, uma estimativa ou juízo subjetivo sobre o valor de mercado que os empresários creem que os bens de capital terão, e em função do qual, constantemente os compram e vendem, tentando conseguir em cada transação benefícios empresariais. Se não fosse através dos preços de mercado e da estimação subjetiva do valor capital dos bens que integram as etapas intermediárias dos processos produtivos, numa sociedade moderna seria impossível estimar ou calcular se o valor final dos bens que se pretende produzir com os bens de capital compensa ou não o custo em que se incorre nos processos produtivos, não sendo sequer possível organizar de maneira coordenada os esforços dos seres humanos que intervêm nos diferentes processos de ação.
Daqui decorre que numa economia socialista na qual não existam mercados livres nem preços de mercado, ainda que se possa considerar que existem bens de capital, não se pode pensar que exista capital. A ausência de um mercado livre e a intervenção coerciva do estado na economia, que constituem a essência do socialismo, em maior ou menor medida impossibilitam o exercício da empresarialidade no âmbito dos bens de capital e portanto tendem a gerar desajustamentos sistemáticos de tipo intertemporal. É nisto que consiste, precisamente, como veremos mais adiante, a essência do teorema sobre a impossibilidade do cálculo econômico socialista desenvolvido pelos teóricos da Escola Austríaca. É que, sem liberdade para exercer a função empresarial, nem mercados livres para os bens de capital e moeda, não é possível que se efetue o necessário cálculo econômico relativo à extensão horizontal e vertical das diferentes etapas do processo produtivo, o que dá lugar a um comportamento generalizadamente descoordenado que desestabiliza a sociedade e impede o seu desenvolvimento harmonioso. Nos processos empresariais de coordenação intertemporal assume um papel protagonista um importante preço de mercado: a saber, o preço dos bens presentes relativamente aos bens futuros, mais comumente denominado taxa de juro, que regula a relação entre o consumo, a poupança e o investimento nas sociedades modernas e que abordamos em detalhe no ponto seguinte.
4.4. A taxa de juro
Como já se viu, o ser humano, na sua escala valorativa, valoriza sempre mais, em igualdade de circunstâncias, os bens presentes do que os bens futuros. Não obstante, a intensidade psíquica relativa da referida diferença de valorização subjetiva varia muito de uns seres humanos para outros, e inclusivamente para um mesmo ser humano pode também variar muito ao longo da sua vida em função das suas circunstâncias particulares. Esta diferente intensidade psíquica da valorização subjetiva dos bens presentes em relação aos bens futuros, manifesta na escala de cada ser humano que age, dá lugar a que num mercado no qual existam muitos agentes econômicos, cada um deles dotado de uma distinta e variável preferência temporal, surjam múltiplas oportunidades para efetuar intercâmbios mutuamente benéficos.
Assim, aquelas pessoas que tenham uma baixa preferência temporal, estarão dispostas a renunciar a bens presentes em troca de conseguir bens futuros com um valor não muito maior, e efetuarão trocas entregando os seus bens presentes a outros que tenham uma preferência temporal mais alta e, portanto, valorizem com mais intensidade relativa o presente do que o futuro. O próprio ímpeto e perspicácia da função empresarial leva a que em sociedade tenda a determina-se um preço de mercado dos bens presentes relativamente aos bens futuros. Pois bem, do ponto de vista da Escola Austríaca, a taxa de juro é o preço de mercado dos bens presentes em função dos bens futuros.
A taxa de juro, portanto, é o preço determinado num mercado no qual os ofertantes ou vendedores de bens presentes são, precisamente, os aforradores, ou seja, todos aqueles relativamente mais dispostos a renunciar ao consumo imediato em troca de obter um maior valor de bens no futuro. Os compradores ou aqueles que estão do lado da procura de bens presentes são todos aqueles que consomem bens e serviços imediatos (sejam trabalhadores, proprietários de recursos naturais, de bens de capital, ou de qualquer combinação deles). Assim, o mercado de bens presentes e bens futuros no qual se determina o preço que denominamos taxa de juro é constituído por toda a estrutura produtiva da sociedade, onde os aforradores ou capitalistas renunciam ao consumo imediato e oferecem bens presentes aos proprietários dos fatores originais de produção (trabalhadores e proprietários dos recursos naturais) e aos proprietários dos bens de capital, em troca de adquirir a propriedade de um valor supostamente maior de bens de consumo assim que a produção dos mesmos se complete no futuro. Eliminando o efeito positivo (ou negativo) dos benefícios (ou perdas) empresariais puros, esta diferença de valor tende a coincidir precisamente com a taxa de juro.
É importante entender como os economistas austríacos ressaltam que o denominado mercado de crédito, no qual é possível obter empréstimos pagando a correspondente taxa de juro, é apenas uma parte, relativamente não muito importante, do mercado geral onde se trocam bens presentes por bens futuros e que é constituído por toda a estrutura produtiva da sociedade, no contexto da qual os proprietários dos fatores originais de produção e dos bens de capital atuam procurando bens presentes e os aforradores atuam oferecendo esses mesmos bens. Portanto, o mercado de empréstimos a curto, médio e longo prazo é apenas um subconjunto desse mercado muito mais amplo no qual se trocam bens presentes por bens futuros e a respeito do qual tem um mero papel subsidiário e dependente, e tudo isto apesar de, do ponto de vista mais popular, o mercado de crédito ser o mais visível e evidente.
Desta forma, no mundo exterior, os únicos valores diretamente observáveis são o que poderíamos denominar taxa de juro bruta ou de mercado (coincidente com a taxa de juro do mercado creditício) e os lucros contabilísticos brutos da atividade produtiva. A primeira é constituída pela taxa de juro tal e qual a definimos (às vezes também denominada taxa de jurooriginária ou natural), mais um prêmio de risco que corresponde à operação em questão, mais ou menos um prêmio pela inflação ou deflação esperada, ou seja, pela diminuição ou incremento esperado no poder aquisitivo da unidade monetária na qual se efetuam e calculam as transações entre bens presentes e bens futuros.
Em segundo lugar, também são diretamente observáveis no mercado os lucros contabilísticos brutos que se obtêm na atividade produtiva específica dentro de cada etapa do processo de produção e que tendem a igualar-se à taxa de juro bruta ou de mercado, tal como foi definida no parágrafo anterior, mais ou menos os benefícios ou perdas empresariais puros. Como em qualquer mercado há uma tendência a que os benefícios e perdas empresariais desapareçam, em resultado da concorrência entre os empresários, existe, portanto, uma tendência a que os lucros contabilísticos de cada atividade produtiva por período de tempo tendam a igualar-se com a taxa de juro bruta do mercado. Por isso, é possível que uma empresa, ainda que apresentando lucros contabilísticos, esteja na realidade incorrendo em perdas empresariais, caso estes lucros contabilísticos não alcancem o valor necessário para superar a componente implícita da taxa de juro bruta de mercado aplicada sobre os recursos investidos pelos capitalistas no seu negócio durante o exercício econômico.
Numa economia moderna, o ajuste entre os comportamentos presentes e futuros torna-se possível precisamente graças à capacidade exercida pela função empresarial no mercado no qual se trocam bens presentes por bens futuros e no qual se fixa, como preço de mercado de uns em função dos outros, a taxa de juro. Desta maneira, quanto maior for a poupança, ou seja, quanto mais bens presentes se vendam e ofereçam, em igualdade de circunstâncias, mais baixo será o seu preço em termos de bens futuros e, portanto, mais reduzida será a taxa de juro; isto indicará aos empresários que existe uma maior disponibilidade de bens presentes para aumentar a duração e complexidade das etapas do processo produtivo tornando-as, passe a redundância, mais produtivas. Pelo contrário, quanto menor for a poupança, ou seja, em igualdade de circunstâncias, quanto menos dispostos estejam os agentes econômicos a renunciar ao consumo imediato de bens presentes, mais alta será a taxa de juro de mercado. Portanto, uma taxa de juro de mercado alta indica que a poupança é escassa em termos relativos, e isso é um sinal imprescindível que os empresários terão de levar em consideração, para não alargar indevidamente as diferentes etapas do processo produtivo, gerando descoordenações ou desajustamentos muito perigosos para o desenvolvimento sustentável, são e harmonioso da sociedade. Em suma, a taxa de juro indica aos empresários quais as novas etapas produtivas ou projetos de investimento que podem e devem empreender e quais não, para manter coordenados, na medida do humanamente possível, os comportamentos de aforradores, consumidores e investidores, evitando que as distintas etapas produtivas sejam demasiado curtas ou se alarguem indevidamente. A taxa de juro como preço de mercado ou taxa social de preferência temporal joga um papel chave na coordenação do comportamento de consumidores, aforradores e produtores em toda a economia moderna. E precisamente, a teoria austríaca sobre as crises econômicas, tal e qual a mesma será desenvolvida por Mises e Hayek, baseia-se em analisar teoricamente os efeitos que a manipulação monetária da taxa de juro tem no que toca a descoordenar o comportamento dos agentes econômicos distorcendo gravemente a estrutura produtiva da sociedade e tornando inevitável o doloroso reajuste ou reconversão da mesma sob a forma de uma recessão econômica.
4.5. Böhm-Bawerk contra Marshall
Apesar da já comentada aliança conjuntural que teve lugar entre os teóricos e os neoclássicos no curso do debate sobre os métodos ou Methodenstreit, tiveram lugar adicionalmente uma série de debates paralelos de grande interesse que foram protagonizados por Böhm-Bawerk ao longo dos últimos anos do século XIX e dos primeiros anos do século XX.
A primeira destas polêmicas é a que Böhm-Bawerk manteve com Marshall. Böhm-Bawerk censura a Marshall o fato de ter impedido a plena recepção no mundo anglo-saxão da revolução subjetivista iniciada por Menger e de, em concreto, ter tratado de reabilitar o velho objetivismo de Ricardo, pelo menos no lado da oferta, para explicar a determinação dos preços mediante funções de oferta e de procura. Com efeito, Marshall utilizou a metáfora das famosas tesouras que, dotadas de dois braços (a oferta e a procura), fixariam conjuntamente os preços (de equilíbrio) no mercado. De maneira que, assim como se admitia que a procura seria determinada basicamente por considerações subjetivas de utilidade, o lado da oferta, para Marshall, seria determinado sobretudo por considerações “objetivas” relativas ao custo histórico (ou seja, “dado” e conhecido) de produção.
Böhm-Bawerk reagiu energicamente contra a doutrina de Marshall, respondendo ao economista inglês que este em última instância ignorava que o custo é também um valor subjetivo (ou seja, uma apreciação subjetiva dos fins aos quais se renuncia ao agir de determinada forma), e que os custos monetários não eram senão os preços de mercado dos fatores de produção que em última instância estavam determinados também pelas avaliações de utilidade referentes a todos os bens de consumo alternativos que se poderiam produzir com eles, pelo que era inquestionável que não apenas uma, mas ambas as partes da famosa tesoura de Alfred Marshall tinham a sua base em considerações subjetivas de utilidade (Böhm-Bawerk, 1959: volume III, 97-115; e 1962a: 303-370).
4.6. Böhm-Bawerk contra Marx
Igualmente importante é a crítica demolidora que Böhm-Bawerk realizou contra a teoria marxista da exploração ou da mais valia, que se encontra recolhida no volume I da obra Capital e Juro (Böhm-Bawerk, 1987: 101-201).
Böhm-Bawerk argumenta contra os marxistas, em primeiro lugar, o fato de que não é verdade que todos os bens econômicos sejam produto do fator trabalho. Por um lado, existem os bens da natureza que, sendo escassos e úteis para alcançar fins humanos, constituem bens econômicos ainda que não incorporem trabalho algum. Por outro lado, é evidente que dois bens, mesmo que incorporem uma quantidade idêntica de trabalho, podem ter um valor muito diferente no mercado se o período de tempo que dura a sua produção for distinto.
Em segundo lugar, o valor dos bens é algo subjetivo, pois, como já foi explicado anteriormente, o valor não é senão uma apreciação que o homem realiza ao agir projetando sobre os meios a importância que crê que tenham para alcançar umdeterminado fim. Por isso, bens que incorporem uma grande quantidade de trabalho podem ter um valor muito reduzido, einclusivamente nada valer no mercado, se posteriormente o agente se der conta de que carecem de utilidade para alcançarqualquer fim.
Em terceiro lugar, os teóricos do valor trabalho caem numa contradição insolúvel e no vício do raciocínio circular, uma vez que se o trabalho determina o valor dos bens econômicos e aquele, por sua vez, se encontra determinado, no que à sua valoração diz respeito, pelo valor dos bens econômicos necessários para o reproduzir e manter a capacidade produtiva do trabalhador, resulta que acabamos por raciocinar circularmente sem que nunca se chegue a explicar o que é que determina, em última instância, o valor.
Por último, em quarto lugar, para Böhm-Bawerk é evidente que os defensores da teoria da exploração desconhecem de maneira flagrante a lei da preferência temporal e, portanto, a categoria lógica de que, em igualdade de circunstâncias, os bens presentes têm sempre um valor superior aos bens futuros. Em resultado deste erro pretendem que se pague mais ao trabalhador do que este realmente produz, quando defendem que lhe seja entregue, quando desempenha o seu trabalho, o valor integral de um bem que apenas estará produzido depois de um período de tempo mais ou menos prolongado. De modo que apenas há duas opções, ou os trabalhadores decidem aguardar a duração do processo produtivo para ficar com a propriedade integral do produto final (tal seria o caso das cooperativas), ou podem empregar-se por conta alheia, em cujo caso receberão adiantado o valor descontado, precisamente pela taxa de juro, do valor final do produto. Mas pretender pagar aos trabalhadores hoje o valor integral de um produto que apenas estará concluído num amanhã distante é claramente injusto, uma vez que suporia pagar aos trabalhadores um valor muito superior ao que efetivamente tenham produzido.
Finalmente, Böhm-Bawerk, com caráter adicional, escreveu um artigo dedicado a tornar manifestas as inconsistências lógicas e as contradições em que Marx havia caído ao tentar resolver no volume III de O Capital os erros e as contradições da sua teoria da exploração tal e qual a mesma havia sido inicialmente desenvolvida no volume I da mesma (Böhm-Bawerk, 1962b: 201-302; 2000).
4.7. Böhm-Bawerk contra John Bates Clark e o seu conceito mítico de capital
Em geral, a Escola Neoclássica seguiu uma tradição que é prévia à revolução subjetivista e que considera um sistema produtivo no qual os diferentes fatores de produção dão lugar, de uma maneira homogênea e horizontal, aos bens e serviços de consumo, sem levar em conta a sua situação no tempo e no espaço ao longo de uma estrutura de etapas produtivas de natureza temporal, como tipicamente têm em conta os teóricos da Escola Austríaca. Este enquadramento estático foi escolhido e levado até às suas últimas consequências por John Bates Clark (1847-1938), professor de Economia na Universidade de Columbia em Nova Iorque, cuja enérgica reação antisubjetivista no campo da teoria do capital e do juro ainda hoje em dia continua a ser a base sobre a qual se apoia todo o edifício científico neoclássico-monetarista.
Com efeito, para Clark, a produção e o consumo são simultâneos, sem que existam etapas no processo produtivo nem a necessidade de esperar tempo algum para obter os correspondentes resultados dos processos de produção. Clark considera que o capital é um fundo permanente ou perpétuo que de maneira “automática” gera rendimentos sob a forma de juros. Para Clark, quanto maior for este fundo social que constitui o capital, mais baixa será a taxa de juro, sem que esta seja minimamente afetada pelo fenômeno da preferência temporal (Clark, 1893: 302 315; 1895: 257-258; 1907). Além disso, e como veremos no capítulo dedicado a Hayek, a concepção de Bates Clark é a que fielmente seguem Frank H. Knight, Stigler, Friedman e o resto dos teóricos da Escola de Chicago.
É fácil nos darmos conta de que a concepção do processo produtivo de Clark não é senão uma transposição para o campo da teoria do capital da concepção de equilíbrio geral de Walras. Como se sabe, Walras desenvolveu um modelo de economia em equilíbrio geral descrito através de um sistema de equações simultâneas que pretende explicar a formação dos preços de mercado dos diferentes bens e serviços. Na óptica austríaca, a principal deficiência da modelização de Walras é que na mesma se inter-relacionam conjuntamente, através de um sistema de equações simultâneas, magnitudes (variáveis e parâmetros) que não são simultâneas, mas que se sucedem de uma maneira sequencial ao longo do tempo à medida que avança o processo produtivo movido pelas ações dos agentes que participam no sistema econômico. Em suma, o modelo de equilíbrio geral de Walras é um modelo estritamente estático, que relaciona entre si magnitudes heterogêneas do ponto de vista temporal e que não considera o decurso do tempo, descrevendo antes de uma forma sincronizada inter-relações mútuas entre diferentes variáveis e parâmetros que nunca se dão de forma simultânea
na vida real.
Como é lógico, é impossível explicar os processos econômicos reais utilizando uma concepção da economia que carece de dimensão temporal e na qual o estudo da gênese sequencial dos processos de mercado brilha pela sua ausência. É surpreendente que uma teoria como a defendida por Clark tenha sido, apesar de tudo, a que de maneira mais generalizada se arraigou na Ciência Econômica até aos nossos dias, passando a integrar a maioria dos manuais introdutórios estudados pelos nossos alunos. Com efeito, em quase todos eles se começa por explicar o denominado modelo de “fluxo circular do rendimento”, no qual se descreve a interdependência que existe entre a produção, o consumo e os intercâmbios entre os diferentes agentes econômicos (economias domésticas, empresas etc.), fazendo uma completa abstração do papel que o tempo desempenha no curso dos acontecimentos econômicos. Ou seja, neste modelo supõe-se que tudo acontece ao mesmo tempo, uma suposta “simplificação” falsa e que carece de fundamento, que, além de impedir responder aos problemas relevantes que ocorrem na economia real, constitui um obstáculo quase insolúvel a que estes sejam descobertos e analisados por parte dos estudiosos da nossa ciência.
Böhm-Bawerk reagiu de imediato frente à posição objetivista de Clrak e da sua escola. Assim, Böhm-Bawerk qualificou demítico e mitológico o conceito de capital de Clark, indicando que todo o processo produtivo se leva a cabo não como consequência da participação de um misterioso fundo homogêneo, mas antes como resultado da conjugação de bens de capital concretos que têm de ser previamente concebidos, produzidos, selecionados e combinados pelos empresários no âmbito de um processo econômico com duração temporal. Böhm-Bawerk afirmou ainda que, para Clark, o capital é uma espécie de “value jelly“, ou conceito fictício, e advertiu com grande premonição que a sua utilização haveria de dar lugar a erros fatais no desenvolvimento futuro da teoria econômica. Com efeito, Böhm-Bawerk assinala com grande presciência que, de preponderar a visão estática e circular de Clark, surgiriam de novo inevitavelmente as doutrinas do subconsumo, já anteriormente refutadas pelos economistas, como de fato acabou por suceder quando apareceram Keynes e a sua escola (Böhm-Bawerk, 1895: 113-131).
Böhm-Bawerk considera também equivocadas as teorias que, como a de Clark, fundamentam o juro na produtividade marginal do capital. Com efeito, para Böhm-Bawerk, os teóricos que acreditam que a taxa de juro é determinada pela produtividade marginal do capital não podem explicar, entre outros aspectos, por que razão a concorrência entre os diferentes empresários não faz com que o valor presente dos bens de capital no mercado tenda a ser idêntico ao valor do seu correspondente produto esperado, com o qual não restaria qualquer diferencial de valor entre custos e produto ao longo do período de produção. É que, como com todo o acerto indica Böhm-Bawerk, as teorias baseadas na produtividade não são senão um resto da concepção objetivista do valor, de acordo com a qual este seria determinado pelo custo histórico incorrido no processo produtivo dos diferentes bens e serviços. Não obstante, os custos são determinados pelos preços e não o contrário, como sabemos, pelo menos, desde Luis Saravia de la Calle. Ou seja, incorre-se em custos porque os agentes econômicos pensam que poderão obter um valor pelos bens de consumo que produzam superior ao desses custos. O mesmo sucede relativamente à produtividade marginal de cada bem de capital, que é determinada em última instância pelo valor futuro dos bens e serviços de consumo que o mesmo ajuda a produzir e que, através de um processo de desconto, dá lugar ao valor atual de mercado do bem de capital em questão (que nada tem a ver com o seu custo de produção).
O juro, portanto, deve ter uma existência e gênese autônomas relativamente aos bens de capital que radica, como já se indicou, nas valorações subjetivas de preferência temporal dos seres humanos. É fácil compreender por que razão os teóricos da escola Clark-Knight caíram no erro de considerar que a taxa de juro é determinada pela produtividade marginal do capital, simplesmente observando que o juro e a produtividade marginal do capital se tornam iguais se se verificarem as seguintes circunstâncias: primeira, um ambiente de equilíbrio perfeito no qual não se produzem alterações; segunda, uma concepção de capital como fundo mítico que se autoreproduz sozinho, sem necessidade de tomar decisões empresariais específicas quanto à amortização do mesmo; terceira, uma concepção da produção como um “processo” instantâneo que, portanto, não envolve a passagem do tempo. Verificando-se estas três circunstâncias, tão absurdas como afastadas da realidade, a renda do bem de capital é sempre igual à taxa de juro. Explica-se agora perfeitamente que os teóricos imbuídos da concepção sincrônica e instantânea do capital se tenham deixado enganar pela igualdade matemática entre renda dos bens de capital e juro que se produz com esses pressupostos irreais, e a partir daí tenham dado o salto teoricamente inadmissível de afirmar que é a produtividade que determina a taxa de juro, e não o contrário, como precisamente afirmam os austríacos. Para estes, a maior ou menor produtividade marginal (ou seja, o valor do fluxo futuro de rendimentos) apenas determina o preço de mercado de cada bem de capital, que tenderá a igualar-se com o valor atual descontado (pela taxa de juro) do referido fluxo de rendimentos esperados. Paralelamente, um aumento (ou diminuição) da taxa de juro (determinada pela preferência temporal) dará lugar a uma diminuição (ou aumento) do valor atual (preço de mercado) de cada bem de capital (independentemente de qual tenha sido o custo histórico de produção), através do correspondente processo de desconto (utilizando a taxa de juro) do fluxo futuro de rendimentos esperados, e precisamente até àquele nível em que esta coincida com a taxa de juro (e a necessária quota de amortização) (Böhm-Bawerk, 1986: 132-213; Mises, 1995: 624).
Em suma, Böhm-Bawerk, oposto ao hiper-realismo dos historicistas, denuncia agora o hiporrealismo, ou melhor, a absoluta falta de realismo da conceitualização estática do capital de Clark e dos seus acólitos. Todo o processo de produção implica o decorrer do tempo e, antes de alcançar o seu fim, é necessário passar por uma série de etapas que se materializam num conjunto muito heterogêneo e variável de bens de capital que em caso algum se autoreproduzem automaticamente, mas que se constituem como resultado de ações empresariais concretas e de uma série de decisões que, se não fossem tomadas, implicariam inclusivamente o consumo e o desaparecimento dos bens de capital existentes.
Além disso, e como já vimos, para Böhm-Bawerk, o preço dos bens de capital não é determinado pelo seu custo histórico de produção, mas antes pela estimação do valor da sua produtividade futura descontado pela taxa de juro, de maneira que é sempre a produtividade que tende a seguir a taxa de juro (determinada pela preferência temporal) e não o contrário.
Os economistas neoclássicos acreditam que a taxa de juro em equilíbrio se determina de forma simultânea pela oferta e pela procura de capital; de maneira que a oferta seria determinada por considerações subjetivas relativas à preferência temporal, enquanto que a procura seria efetuada pelos empresários em função da produtividade marginal do capital (ou seja, tendo por base considerações predominantemente objetivas). Esta abordagem, que é paralela à desenvolvida por Marshall para explicar a determinação dos preços no mercado, é rejeitada por Böhm-Bawerk e pelos outros economistas austríacos que realçam como os empresários procuram fundos atuando como meros intermediários dos trabalhadores e dos proprietários dos fatores de produção (que são quem, em última instância, procura os bens presentes sob a forma, respectivamente, de salários e de rendas) em troca de transferir para os empresários a propriedade de um valor, eventualmente superior, de bens futuros (que apenas estarão disponíveis quando terminar o processo produtivo).
Por isso, para os economistas austríacos, ambos os lados, tanto a oferta como a procura de bens de capital, são determinados por considerações subjetivas de preferência temporal. Esta argumentação, no âmbito da determinação da taxa de juro, é paralela à que Böhm-Bawerk realizou a Marshall quando criticou o seu desejo de manter, pelo menos num dos lados do processo de determinação dos preços, a velha concepção objetivista e ricardiana da Escola Clássica.
4.8. Wieser e o conceito subjetivo de custo de oportunidade
Outro teórico da Escola Austríaca frequentemente citado é Friedrich von Wieser (1851-1926), cunhado de Böhm-Bawerk e também ele catedrático, primeiro em Praga e depois em Viena. Devemos a Wieser algumas contribuições interessantes, entre as quais sobressai o desenvolvimento da concepção subjetivista do custo de Menger, entendido como o valor subjetivo que o agente dá aos fins a que renuncia ao agir de determinada forma (conceito subjetivista de custo de oportunidade), assim como a expressão “utilidade marginal” ou “fronteiriça” (grenznutzen, de grenz, “fronteira” e nutzen, “utilidade”) que ele foi o primeiro a utilizar. No entanto, as últimas investigações vieram tornar manifesto que Wieser era um teórico mais influenciado pela Escola de Lausana do que pela própria Escola Austríaca. Com efeito, Mises chegou a escrever que “Wieser não foi um pensador criativo e, em geral, causou mais danos do que benefícios. Nunca compreendeu realmente o fundamento da concepção subjetivista da Escola Austríaca, carência esta que o levou a cometer infelizes erros. Assim, a sua teoria da imputação é insustentável. As suas ideias sobre o cálculo do valor justificam a conclusão de que, mais do que um membro da Escola Austríaca, deve ser considerado um membro da Escola de Lausana, ou seja, da escola de Walras e de todos aqueles que desenvolveram o conceito de equilíbrio econômico” (Mises, 1978: 38).
4.9. O triunfo do modelo de equilíbrio e do formalismo positivista
Até aos anos trinta do século XX, o modelo de equilíbrio vinha sendo utilizado pelos economistas mais como uma ferramenta intelectual auxiliar que, por contraste, deveria facilitar a teorização sobre os processos reais de mercado. No entanto, durante os anos trinta, o equilíbrio deixa de ser considerado como uma mera ferramenta auxiliar e paulatinamente converte-se no único objeto de investigação considerado relevante e de interesse pela maioria dos economistas. Durante este período, o equilíbrio converte-se, pela mão dos economistas neoclássicos, no centro focal de investigação, abandonando-se generalizadamente o interesse por estudar os processos dinâmicos de mercado, pelo que os economistas austríacos vão ficando isolados com o seu programa de investigação, muitas vezes sem estarem conscientes, eles mesmos, da importante transformação que está sendo processada na corrente dominante da disciplina. Assim, Hicks chegou a afirmar que os austríacos, na realidade, não eram uma faccão específica, fora da corrente principal da economia, uma vez que, até esse período, eles eram a corrente principal da economia, sendo que eram os outros (os incipientes neoclássicos cultivadores do equilíbrio) que se encontravam fora do paradigma dominante (Hicks, 1973: 12).
É certo que, durante uma série de anos, a tensão entre o equilíbrio entendido como ferramenta auxiliar ou como centro focal de investigação se manteve latente. Prova disso é o caso de Pareto que, em 1906, reconheceu o caráter meramente auxiliar do equilíbrio ao afirmar que “a solução do sistema de equações descritivo do equilíbrio na prática se encontrava para lá da capacidade da análise de equilíbrio, sendo neste caso necessária uma troca de papéis, uma vez que as ciências matemáticas não poderiam continuar a ajudar a economia política, devendo, pelo contrário, ser a economia política a vir ajudar as ciências matemáticas. Por outras palavras, mesmo que todas as equações fossem conhecidas na realidade, o único procedimento para as resolver seria observar a solução real fornecida pelo mercado” (Pareto, 1906: epígrafe 217). Simultaneamente, na mesma obra, (Pareto, 1906: epígrafe 57), comentando o conceito de curva de indiferença que havia sido introduzido por Edgeworth, Pareto conclui que, para determinar o equilíbrio econômico, o processo real de mercado e inclusivamente o “ser humano podem desaparecer desde que nos deixe como herança a fotografia dos seus gostos representada pelo correspondente mapa de curvas de indiferença”.
Esta tensão (ou melhor, contradição) entre o realismo e o modelo de equilíbrio ilustra-se de forma ainda mais dramática se considerarmos a totalidade das obras de Pareto, que, como é sabido, além de teórico do equilíbrio geral, foi um notável sociólogo.
Para esta evolução do pensamento econômico contribuiu também o triunfo do panfisicalismo e do monismo metodológico inspirados por Schlick, Mach e restantes positivistas do denominado “Círculo de Viena”, que defendiam a aplicação do método da Física, com as suas relações funcionais constantes e experiências de laboratório, a todas as ciências, incluindo a Economia. Este objetivo metodológico, que Walras havia previamente declarado abraçar de maneira explícita após ler o tratado do físico Poinsot, foi também seguido de forma integral e sem qualquer matização por Schumpeter, logo desde 1908, no seu livro Sobre a essência e substância da economia teórica (Schumpeter, 1908).
Wieser, que pelo menos no âmbito metodológico continuava a defender as posições da Escola Austríaca, escreveu uma recensão profundamente crítica do panfisicalismo de Schumpeter (Wieser, 1911). Concretamente, Wieser critica Schumpeter por ter caído no instrumentalismo metodológico (que seria depois adotado por Milton Friedman e pelos positivistas da Escola de Chicago), assim como pela sua tentativa de aplicar à economia o método da física e da mecânica (vício que Hayek posteriormente batizaria com o termo “cientismo”). Especialmente ilustrativo deste vício é o caso de Leon Walras, que caiu nele depois de ler um tratado do físico Louis Poinsot, no qual este autor descrevia as diversas partes dos sistemas físicos interconectadas e em equilíbrio devido à ação de forças contrapostas. Walras conta que leu o livro de Poinsot em poucos dias e decidiu adotá-lo como modelo para o seu programa de investigação. O seu objetivo, a partir de então, seria fazer para a economia o mesmo que Poinsot havia feito para o mundo da física e da mecânica (Mirowoski, 1991).
Não é de estranhar que este caminho de investigação parecesse extremamente vicioso aos teóricos da Escola Austríaca, preocupados em construir uma teoria sobre os processos reais e dinâmicos que se dão no mercado e que nunca se encontram em equilíbrio. Além disso, Wieser culpa os panfisicalistas por não reconhecerem que as leis da economia teórica têm forçosamente de ser genético-causais e não funcionais, uma vez que a origem dos fenômenos se conhece por introspecção e que as relações funcionais são simultâneas, não consideram o fenômeno do tempo nem a criatividade empresarial e relacionam entre si quantidades heterogêneas do ponto de vista temporal.
Será todavia necessário esperar pelas contribuições de Mises e Hayek para que os teóricos da Escola Austríaca fiquem plenamente conscientes do abismo metodológico que os separa dos seus colegas neoclássicos defensores das teorias do equilíbrio. Esta tomada de consciência teve lugar a propósito de duas outras importantes polêmicas nas quais se viram implicados os austríacos: a polêmica sobre a impossibilidade do socialismo e a polêmica entre Hayek e Keynes. Nos próximos capítulos estudaremos com detalhe as principais contribuições de Mises e Hayek e a grande importância que estas polêmicas tiveram para o posterior desenvolvimento do paradigma austríaco.