Certo dia, quando eu tinha uns 14 ou 15 anos de idade, minha mãe me chamou para me mostrar no jornal uma matéria sobre uma manifestação contra as escolas particulares. Eu aparecia numa foto.
Sobre a mesa, havia uma pilha de papéis. “Isso aqui são contas que eu preciso pagar todos os meses para manter a escola. Antes de pensar em comprar qualquer coisa para vocês e para nossa casa, eu preciso pagar funcionários, encargos sociais, sindicatos, impostos e diversos outros gastos que você nem imagina. Então, pense direito se você acha certo ir para a rua protestar contra o trabalho que te sustenta”, ouvi de minha mãe, que mantinha uma pequena escola que nunca teve mais que 60 alunos, mas que sempre teve mais de 10 funcionários.
Nunca senti tanta vergonha na vida.
Apesar de nunca ter ouvido nada sobre política dentro de casa, a partir daquele dia passei a prestar atenção no assunto e especialmente na luta (não há outra palavra) de minha mãe para sustentar os filhos sendo uma micro-empresária. A época era de caos econômico e da ascensão política de Lula, que se fazia presente quase todos os dias na televisão.
A violência de suas palavras, sempre cobrando que o estado se apropriasse de toda e qualquer propriedade privada, criava em mim um sentimento de que, seja lá o que fosse aquilo que ele representava, não era boa coisa.
Passaram-se os anos até que entrei na faculdade de arquitetura, primeiro em uma instituição particular, depois em uma federal.
Os intervalos entre as palestras da Conferência da Escola Austríaca, que ocorreu no fim de semana dos dias 6 e 7 de setembro, foram preenchidos justamente pelas lembranças daquela época: o ambiente acadêmico, as revoltas, o comportamento e as iniciativas minhas e de meus amigos de faculdade nos Encontros de Estudantes de Arquitetura e nos eventos da UNE dos quais participávamos em todo o Brasil.
Na faculdade, principalmente na federal, havia um consenso sobre o descaso, sobre o desleixo e até sobre a preguiça tanto de funcionários quanto de professores. Revoltava-nos o desperdício de dinheiro público entrelaçado às carências mais básicas, como o histórico problema com o bebedouro do curso — entrei e saí da faculdade sem vê-lo funcionar por mais de uma semana. Tanto desleixo administrativo avalizava o desleixo da maioria dos alunos, que literalmente levava o curso nas coxas.
Porém, sempre havia duas dúzias de alunos que se organizavam individualmente ou coletivamente para compensar o que a faculdade não nos oferecia. Promovíamos palestras, exposição, viagens, publicação de livros, pesquisas e até pequenas reformas do edifício onde estudávamos. Conseguíamos dinheiro para nossos projetos por meio de doações e de festas. Participando dos Encontros de Estudantes, exercíamos nossa potência de forma ainda mais intensa: sem estarmos sob qualquer autoridade, cada participante tinha a liberdade de fazer o que bem entendesse. Podia-se passar o dia nas atividades (palestras, oficinas e trabalhos nas favelas) ou no bar. Podia-se passar a noite na festa ou dormindo. Usava-se a roupa que quisesse. Transava-se com quem quisesse. Usava-se a droga que quisesse. Cada indivíduo era visto e tratado como indivíduo, não como membro desse ou daquele grupo.
Mesmo na ausência de qualquer autoridade formal, havia um completo respeito mútuo. Nos 55 Encontros de que participei, nunca houve sequer uma briga! Nunca houve a ostentação de uma única bandeira de partido político! Entre nós, o respeito era uma manifestação voluntária, não um dever.
O oposto acontecia nos eventos da UNE, quando presenciávamos verdadeiras guerras, com os militantes de partidos de esquerda se comportando como selvagens, agredindo uns aos outros verbal, moral e até fisicamente o tempo todo na tentativa de cada grupo (grupo!) de impor suas ideias aos demais.
Ao contrário dos nossos Encontros, aqueles eram eventos bancados com dinheiro público, com festas embaladas por artistas famosos. Meus amigos e eu víamos aquele ambiente como mais um símbolo da podridão da política, do quanto o estado e o dinheiro público era usados para fins ideológicos.
Pois bem. Do que nos serviu todas aquelas experiências?
Um dia desses, um amigo daqueles tempos, diante de meu empenho em divulgar o liberalismo, provocou-me dizendo (quase debochando) que eu estava apenas deslumbrado com essa “nova descoberta”. Sim, é uma novíssima e deslumbrante descoberta!
É sim motivo de alegria e orgulho descobrir que existe um movimento sério que tenta fazer as pessoas enxergarem que a sociedade deve ser moldada em função das liberdades e das potências individuais, diante da comprovação histórica de que a busca por objetivos individuais gera benefícios públicos, assim como fazíamos na faculdade — tentando melhorar nossa própria condição de estudo, acabávamos promovendo ações que agraciavam até aqueles que eram contra nós.
Mesmo após todos os anos de faculdade imersos naquela realidade, nem eu e nem meus amigos tínhamos sequer a noção do que éramos ou do que representávamos. Hoje, consigo ler aquele período afirmando com toda certeza de que éramos libertários do mais alto grau! Rejeitávamos qualquer coisa parecida com estado porque sabíamos que tínhamos condição de discernir sobre o que era bom para cada um de nós e como deveríamos realizar nossos projetos, fosse trabalhando em equipe, fosse cada um quieto em seu canto.
Éramos poderosos, autônomos e livres. Mas, naqueles tempos, tanto por inocência quanto por ignorância, enxergávamos apenas as alternativas esquerda ou direita, com a primeira sendo apenas “menos ruim” do que a segunda.
E então? Do que nos serviu todas aquelas experiências?
Hoje, a quase totalidade daqueles amigos se posiciona a favor justamente daquilo que lhes causava repulsa. Aqueles libertários que comprovavam através de si mesmos a eficiência da iniciativa privada agora enxergam a mesma iniciativa privada como uma desgraça e que toda solução deve vir do estado. Aqueles indivíduos que se orgulhavam da liberdade que exerciam agora acreditam que o estado deve formatar as pessoas em um único arquétipo intelectual. Aqueles estudantes autônomos que, em vez de esperar pela providência estatal, resolviam seus problemas por si mesmos, agora acreditam que o pobre é um ser incapaz, tão incapaz que deve ser mantido dependente dos humores dos arrecadadores de impostos. Aqueles indivíduos que antes se empenhavam voluntariamente (voluntariamente!) em trabalhos sociais agora creem que a caridade deve ser uma obrigação de todos, sob formas e custos arbitrados pelo governo.
Eu, provavelmente por meu distanciamento ao vir morar sozinho em outro estado e também pelo tempo que meu trabalho como artista plástico me oferece, pude me dedicar à literatura filosófica, que acabou me levando a descobrir, há poucos anos, o liberalismo e os autores da Escola Austríaca de Economia. E, nos dois dias em que estive na Conferência de Escola Austríaca organizada pelo Instituto Mises Brasil, tive uma certeza: a de que se tivéssemos tido, naqueles anos de faculdade, contato com esse movimento e com essas ideias, hoje não apenas eu me apresentaria como liberal, mas também muitos daqueles meus colegas.
Certo da idoneidade de cada um deles, também tenho a certeza de que se abrigaram sob o discurso fácil e “heróico” do socialismo por causa do recalque filosófico que ficou daqueles anos de faculdade — a perda da esperança em uma sociedade livre. Só me cabe lamentar.
Olhando para frente, o que eu gostaria de ver é o pensamento liberal sendo apresentado a outros círculos sociais e acadêmicos além do econômico, o que certamente ofereceria uma terceira alternativa a muitos jovens que adorariam encontrá-la.