A literatura marxista solidificou a ideia de que o valor de troca de uma mercadoria advém do trabalho efetuado para produzi-la. Sendo assim, segundo os marxistas, é impossível o capitalista gerar valor se ele próprio não tem de trabalhar. Por conseguinte, seus lucros só podem ter origem em uma apropriação indevida do valor gerado pelos seus alienados empregados.
Falando mais especificamente, dado que o capitalista possui o controle exclusivo dos meios de produção, ele tem o poder de não remunerar os proletários por toda a jornada de trabalho em que geram valor. Ou seja, o capitalista explora o trabalhador arrebatando deles a mais-valia.
Este é, em suma, o cerne da teoria marxista da exploração: o capitalista, que não efetua trabalho físico, retém para si uma parte do valor desses bens que os trabalhadores produziram, e ele consegue fazer isso graças ao seu monopólio dos meios de produção (os quais, vale dizer, são bens complementares indispensáveis ao trabalhador, sem os quais os trabalhadores nada conseguiriam produzir).
Ocorre que o ponto de partida dessa teoria é equivocado: ao contrário do que alegam os marxistas, a atividade econômica do capitalista de fato gera valor, e seu papel não pode ser simplesmente eliminado. Se eliminarmos os capitalistas da equação, alguém terá de concentrar todas as funções que hoje os capitalistas desempenham, e esse alguém mereceria a remuneração (mais-valia) que atualmente é dos capitalistas.
Vejamos um exemplo intuitivo para entender por quê.
Um mundo de pequenos burgueses
Imagine uma sociedade na qual todos os indivíduos são trabalhadores autônomos (ou seja, não existe trabalho assalariado), e todos eles possuem meios de produção avaliados em $ 100.000 — ou seja, possuem terras, instalações industriais, maquinários e matérias-primas valorados em $100.000 e adaptados à atividade profissional que realizam.
Nesta sociedade, a distribuição da riqueza é perfeitamente igualitária, de modo que não existem nem grandes capitalistas exploradores e nem pobres despossuídos que se veem obrigados a vender sua força de trabalho. Há simplesmente uma divisão do trabalho, a qual faz com que cada indivíduo se especialize em produzir determinados bens que serão trocados por outros bens produzidos por outros indivíduos.
Será que sob estas condições seria alcançado um equilíbrio econômico estável no qual a mais-valia e o trabalho assalariado desaparecem? Negativo. Mesmo que todos os indivíduos possuam idêntico poder de barganha, que todos tenham começado exatamente do mesmo ponto de partida (ou seja, nenhum começou já com alguma vantagem), e que ninguém tenha recorrida à violência, necessariamente alguns indivíduos mais competentes veriam seu patrimônio crescer e outros menos competentes veriam seu patrimônio estagnar ou mesmo encolher.
Comecemos constatando o fato de que, para manter o patrimônio, cada indivíduo tem necessariamente de reinvestir continuamente uma a fatia de suas receitas: as instalações industriais se depreciam, as máquinas se danificam e têm de ser substituídas (ou, no mínimo, têm de passar por manutenções recorrentes), as terras devem ser aradas e irrigadas etc. Ou seja, nem todos os bens adquiridos pelos autônomos são bens de consumo; é necessário também adquirir bens de capital. E, ao se adquirir bens de capital, a compra de bens de consumo tem necessariamente de ser reduzida — afinal, os autônomos deverão poupar uma fatia de suas receitas e dedicá-la à renovação de seus próprios bens de capital.
Nesse cenário, veremos três grandes grupos de indivíduos: aqueles que poupam estritamente o necessário para repor seu capital; aqueles que poupam mais do que o estritamente necessário; e aqueles que poupam menos que o necessário.
O primeiro grupo de indivíduos conseguirá conservar seu capital. O segundo grupo tenderá a aumentar seu capital (ele disporá de um maior número de bens de capital com os quais será capaz de fabricar uma maior quantidade de bens de consumo no futuro). E o terceiro grupo verá seu patrimônio encolher (as máquinas irão se danificar e não haverá reposição, as terras perderão sua fertilidade, as instalações industriais deixarão de ser funcionais etc.).
Mais ainda: é perfeitamente possível que haja indivíduos que tiveram um desejo tão premente de consumir agora e nenhuma vontade de poupar para o futuro, que optaram por vender seu patrimônio para outros indivíduos, os quais foram capazes de comprar esse patrimônio em decorrência de terem previamente poupado a maior parte de suas receitas (ou seja, alguns indivíduos consumiriam muito no presente à custa de se desfazer do seu capital, e outros aumentariam seu capital à custa de consumir muito pouco no presente)
Parece claro que, só por esta razão comportamental, ocorreram profundas alterações patrimoniais que levaram alguns indivíduos a se desfazer de todo o seu capital e, consequentemente, os obrigaram a, no futuro, a ter de trabalhar para outros indivíduos que ou mantiveram seu capital ou aumentaram seu capital.
No entanto, a verdadeira explicação para os grandes movimentos patrimoniais não está nas distintas propensões a poupar ou a consumir, mas sim no grau de acerto ou de erro com que o capital é reinvestido. Como já indicado, cada indivíduo com um determinado patrimônio deveria continuar reinvestindo nele conforme seus ativos vão se deteriorando com o passar do tempo. Só que — e isso é importante — essas decisões de reinvestimento não são automáticas: quando um indivíduo reinveste, ele tem de decidir em quê irá reinvestir; e, ao fazê-lo, ele tanto pode acertar (inclusive acertar extraordinariamente) quanto pode se equivocar (inclusive se equivocar estrepitosamente).
Assim, em uma economia caracterizada pela divisão do trabalho e pelas trocas comerciais voluntárias, uma das tarefas mais complicadas que existe é justamente a de selecionar os projetos de investimento mais exitosos: não se sabe de antemão o que produzir e nem qual é a melhor forma de fazê-lo (com efeito, a resposta para essas duas perguntas está continuamente mudando à medida que se alteram as preferências dos consumidores e o conhecimento das técnicas de produção disponíveis). Consequentemente, é necessário dedicar vultosos recursos intelectuais apenas para se descobrir isso.
Se, nos anos 1990, um indivíduo tivesse investido maciçamente em sua empresa de máquinas de escrever — ou, atualmente, em celulares que não sejam smartphones, ou em câmeras analógicas, ou em navegadores de internet que não se adaptam às crescentes exigências dos usuários — e continuasse reinvestindo suas receitas para tentar manter esse tipo de negócio, hoje ele estaria arruinado: seus ativos utilizáveis na fabricação de máquinas de escrever não valeriam nada hoje.
Por outro lado, se um indivíduo reinveste seu capital de maneira cada vez mais acertada, de modo que seus produtos vão abocanhando uma demanda crescente do público consumidor, sem que outros produtores sejam capazes de imitá-lo na produção de bens tão valorados pelos consumidores, seu capital irá se multiplicar continuamente, ainda que ele tenha partido de uma estrita posição de igualdade com o resto dos empresários (com efeito, os produtores menos competitivos que fabricam bens tidos como total ou parcialmente substituíveis vivenciarão uma queda na demanda, e seu capital perderá valor).
Novamente, portanto, chegamos a outro motivo que explica por que alguns indivíduos podem aumentar seu capital ao passo que outros podem se descapitalizar, tendo consequentemente de trabalhar para os primeiros (pelo menos até que consigam poupar de seu salário um capital suficiente para voltarem a ser produtores autônomos).
Mas há um terceiro motivo, em parte derivado do anterior, que explica como o patrimônio das pessoas poderia se tornar desigual: já vimos que, ao escolher onde ou em quê ele deve se especializar, um indivíduo está correndo um considerável risco de perda patrimonial. No entanto, nem todos os planos de negócios são igualmente arriscados: existem setores cujos padrões de demanda ou cujas técnicas produtivas são muito mais estáveis e previsíveis do que outros. Um restaurante de bairro, com uma clientela muito fiel, não é a mesma coisa que uma start-up biotecnológica.
Consequentemente, aqueles setores menos arriscados tendem a ser os preferidos dos investidores avessos ao risco: quase todos desejam investir neles, de modo que a concorrência se torna muito mais intensa e inevitavelmente os preços se igualam aos custos. Por outro lado, existem outros setores muito mais arriscados em que, justamente por isso, a concorrência é quase inexistente e, por conseguinte, os produtores bem-sucedidos que ali atuam podem cobrar preços maiores do que seus custos — ou seja, setores em que é possível obter lucros (e no qual os produtores malsucedidos acumulam prejuízos e perdem seu capital).
Com tudo isso em mente, é bastante provável que, da mesma maneira que a propensão para poupar não é a mesma para cada indivíduo, tampouco as predisposições para assumir riscos são idênticas, de modo que aqueles que obtiverem êxito nos setores mais arriscados verão seu capital crescer muito mais rápido do que aqueles que preferem o conforto dos setores menos arriscados.
Mais ainda: é possível haver indivíduos tão avessos ao risco, que eles preferem vender todo o seu patrimônio não para consumi-lo, mas sim para investir diversificadamente em uma variedade de empresas muito pouco arriscadas. “Diversificação + pouco risco” implica que as probabilidades de perdas patrimoniais serão quase nulas. Só que, em troca dessa segurança, a renda que eles obterão desses investimentos também serão quase nulas.
Ou seja, pode haver indivíduos que, em troca de não quererem ver seu patrimônio exposto ao risco de projetos ruins, optem por renunciar à gestão de seu próprio patrimônio, ainda que não obtenham nenhuma renda em troca desta renúncia. Tais indivíduos também se converteriam inevitavelmente em trabalhadores assalariados: dado que colocaram seu patrimônio em algo que não gera renda (o equivalente a terem guardado o dinheiro embaixo do colchão), se quiserem obter receitas terão de trabalhar dentro dos planos empresariais de outros capitalistas.
As três funções essenciais do capitalista
Tendo em mente esse exemplo, é fácil inferir quais são as três funções econômicas valiosas desempenhadas por todo capitalista: adiamento do seu consumo próprio para financiar investimentos, seleção de projetos de investimentos bem-sucedidos, e concentração patrimonial de riscos.
Dito de outro modo, o empregado assalariado, à diferença do capitalista, pode consumir 100% de suas receitas, não tem de dedicar nada do seu tempo para avaliar os acertos ou os erros de seus empreendimentos, e, em caso de falência do empreendimento em que trabalha, perde seu emprego mas não perde seu patrimônio.
Apenas imagine o que aconteceria se, a cada vez que uma empresa quebrasse, seus empregados também perdessem o dinheiro em sua conta bancária e até mesmo tivessem penhorados seu imóveis totalmente quitados? É exatamente isso o que pode acontecer a um capitalista.
Evidentemente, a função econômica desempenhada pelo capitalista é custosa e valorosa: é custoso e valoroso que seja ele quem restringe seu consumo para financiar uma atividade, que sela ele quem dedica seu tempo e esforço para avaliar projetos empreendedoriais, que seja ele quem concentra os riscos dos investimentos.
Os capitalistas adiantam bens presentes (salários) aos trabalhadores em troca de receber, somente quando o processo de produção estiver finalizado, bens futuros. Existe necessariamente uma diferença de valor entre os bens presentes dos quais os capitalistas abrem mão (seu capital investido na forma de salários e maquinário) e os bens futuros que eles receberão (se é que receberão).
Os capitalistas, ao adiantarem seu capital e sua poupança para todos os seus fatores de produção (pagando os salários da mão-de-obra e comprando maquinário), esperam ser remunerados pelo tempo de espera, pela postergação do seu consumo, pela seleção do projeto de investimento e pelo risco assumido. Por outro lado, os trabalhadores, ao receberem seu salário no presente, estão trocando a incerteza do futuro pelo conforto da certeza do presente.
Ao contrário do que alegam os marxistas, o fato de o trabalhador não receber o “valor total” da produção futura nada tem a ver com exploração; simplesmente reflete o fato de que é impossível o homem trocar bens futuros por bens presentes sem que haja um desconto. O pagamento salarial representa bens presentes, ao passo que os serviços de sua mão-de-obra representam apenas bens futuros.
A relação trabalhista é apenas uma relação de troca entre bens presentes (o capital e a poupança do capitalista) por bens futuros (bens que serão produzidos pelos trabalhadores e pelo maquinário utilizado, mas que só estarão disponíveis no futuro).
Se essas atividades — postergação do consumo, seleção criativa de projetos de investimento e uso arriscado do patrimônio — não tivessem valor e o capitalista não pudesse “cobrar” por elas, simplesmente não haveria atividade econômica, não haveria produção e não haveria enriquecimento da sociedade.
E é essa remuneração que o marxismo chama de “mais-valia”, fruto da exploração capitalista. O curioso, no entanto, é que se o capitalista fosse obrigado a prestar essas atividades valiosas, mas fosse proibido de cobrar por elas, então seria ele o explorado.
Se o encanamento da sua casa estraga, você pode ou contratar um encanador (que irá levar parta de suas receitas) ou consertar o encanamento você próprio (mantendo assim a totalidade das suas receitas). Igualmente, para fazer frente às condições, aos riscos e às dificuldades de uma economia caracterizada pela divisão do trabalho, podemos ou nos deixar “explorar” por capitalistas ou nos converter em “autônomos auto-explorados”. Mas o que não podemos fazer é contratar um encanador e não lhe pagar nada, tornando-nos assim “autônomos heteroexploradores”. E é exatamente isso o que implicitamente defendem os muitos críticos da exploração capitalista.