Se acontece até mesmo com poderosos impérios, por que não pode acontecer com simples nações?
Muito antes de pacotes governamentais de socorro a empresas, programas assistencialistas e inflação monetária se tornarem uma rotina, os romanos já haviam vivenciado esquemas semelhantes. Há mais de 2.000 anos.
Naquela época, o governo romano socorreu instituições falidas, perdoou dívidas, gastou enormes quantias em programas assistencialistas e incorreu em uma grande inflação monetária.
E o resultado não foi bonito.
Naquela época, assim como hoje, os políticos romanos escolheram, segundo critérios próprios, quem seria socorrido e quem seria esquecido, quem seriam os “ganhadores” e quem seriam os “perdedores”. Obviamente, os “ganhadores” foram aqueles que usufruíam boas conexões políticas — uma prática que hoje está no cerne do nosso arranjo político-econômico.
Como já observaram vários pesquisadores da época, tais esquemas baseados em “tirar de Pedro para dar a Paulo” foram cruciais para a falência da sociedade romana. Para mantê-los, o estado teve de recorrer a intervenções cada vez mais destrutivas. “Roma não foi construída em um dia“, como diria o velho ditado — e seria igualmente necessário um bom tempo para destruí-la. Quando a república se transformou em um despotismo imperial, os imperadores tentaram controlar toda a economia.
Perdoar dívidas na Roma antiga, embora fosse uma questão controversa, foi um ato que se repetiu diversas vezes. Um dos primeiros reformadores populistas romanos, o tribuno Licínio Stolo, aprovou uma lei, em 367 a.C, uma época de instabilidade econômica, que essencialmente declarava uma moratória sobre a dívida. A lei permitia aos devedores não mais pagarem os juros sobre principal caso o restante da dívida fosse pago dentro de um período de três anos.
Já em 352 a.C., a situação financeira de Roma continuava complicada, e o Tesouro resolveu arcar com inúmeras dívidas privadas que haviam sido caloteadas. À época, supunha-se que os devedores eventualmente reembolsariam o estado. E se você acredita que isso aconteceu, então você provavelmente deve pensar que emprestar para o atual governo grego é um investimento seguro.
Para se ter uma ideia, em 357 a.C., a maior taxa de juros permitida para empréstimos era de, aproximadamente, 8%. Dez anos depois, tal taxa foi considerada alta demais, e os administradores romanos reduziram o teto para 4%. Em 342 a.C., tais as reduções sucessivas aparentemente não foram capazes de acalmar os devedores ou de satisfatoriamente atenuar as tensões econômicas. Consequentemente, o governo teve a brilhante ideia de simplesmente abolir os juros.
O que houve então? O óbvio: várias pessoas passaram a não mais emprestar dinheiro. Tal situação perdurou até que essa lei que proibia juros simplesmente passou a ser ignorada.
Em 133 a.C., o então ambicioso e promissor político Tibério Graco decidiu que as medidas de Licínio ainda não eram suficientes. Ato contínuo, Tibério aprovou uma lei que concedia grandes extensões de terras cultiváveis do estado para os pobres. Adicionalmente, o governo financiou a construção de novas moradias e a compra de ferramentas para essas pessoas. Estima-se que 75.000 famílias receberam terras totalmente grátis devido a essa legislação. Esse foi um programa governamental que forneceu, “gratuitamente”, terra, moradia e até mesmo oportunidades de negócio, tudo financiado ou pelos pagadores de impostos ou pela pilhagem de nações recém-conquistadas.
Entretanto, tão logo foi permitido, muitos colonos ingratos venderam suas terras e retornaram à cidade. Mas Tibério não viveu para testemunhar esses beneficiários rejeitarem a generosidade de Roma, pois um grupo de senadores o assassinou em 133 a.C. Só que seu irmão mais novo, Caio Graco, assumiu seu manto populista e aprofundou suas reformas.
Enquanto ainda era vivo, Tibério também aprovou o primeiro programa de alimentação subsidiada de Roma, o qual oferecia cereais a preços baixos para muitos cidadãos. Inicialmente, aqueles romanos que ainda se apegavam a ideais como auto-suficiência e independência ficaram estarrecidos com esse conceito de assistencialismo compulsório; no entanto, não demorou muito para que dezenas de milhares estivessem recebendo os cereais subsidiados, e não somente os necessitados. Qualquer cidadão romano que ficasse nas filas do posto de coleta de cereais tinha o direito à assistência estatal. Um cônsul rico chamado Lúcio Calpúrnio Pisão Frugi, que se opunha a esse programa, foi visto na fila. Ele alegou que, dado que era a sua riqueza que estava compulsoriamente financiando aquilo tudo, então ele pretendia obter sua fatia.
Já por volta de 300 d.C., esse programa já havia sido modificado diversas vezes. O cereal que até então era apenas subsidiado passou a ser totalmente gratuito; e, no auge, um terço de Roma já era contemplado pelo programa, o qual se tornou um privilégio hereditário, passado de pai para filho. Outros gêneros alimentícios, incluindo azeite de oliva, carne de porco e sal, foram continuamente adicionados ao programa. Este cresceu até se tornar o segundo maior gasto do orçamento imperial, atrás somente dos gastos militares. O que havia começado como um programa assistencialista provisório se transformou, como muitos outros programas governamentais, em uma forma permanente de assistencialismo voltado para um eleitorado que considerava isso um direito adquirido.
Voltando a 88 a.C., Roma ainda estava se recuperando da Guerra Social, um debilitante conflito com seus antigos aliados na península italiana. Um dos generais vitoriosos foi Lucio Cornélio Sula, que no final do mesmo ano tornou-se Cônsul (a posição política mais importante nos dias da república) e depois, Ditador.
Para amenizar a catástrofe econômica, Sula decretou que até 10% das dívidas de cada cidadão deveriam ser canceladas, o que colocou os credores em uma posição difícil. Ele também restaurou e reforçou a lei que decretava que uma taxa máxima de juros sobre empréstimos, provavelmente similar à lei de 357 a.C. A crise foi piorando continuamente, e, para “resolver de uma vez a situação”, em 86 a.C., outra lei que cancelava nada menos que 75% das dívidas privadas foi aprovada — sob o consulado de Lúcio Cornélio Cina e Mario Caio.
Menos de duas décadas após Sula (que morreu em 78 a.C.), Lúcio Sérgio Catilina, o infame populista radical e inimigo de Cícero, candidatou-se ao consulado com uma plataforma política de cancelamento total das dívidas. De alguma forma, ele foi derrotado, provavelmente pela oposição formada por banqueiros e por cidadãos romanos que já haviam quitado suas dívidas. Sua vida terminou logo depois em uma fracassada tentativa de golpe.
Em 60 a.C., o patrício Júlio César, uma estrela em ascensão, foi eleito cônsul, e continuou as políticas de vários de seus predecessores populistas, mas agora com algumas inovações pessoais. E, mais uma vez, Roma estava em meio a uma crise.
Neste período, alguns entes privados se dispuseram a cobrar os impostos para o estado, em uma espécie de terceirização. Tais entes participavam de licitações para ganhar os contratos. Nessas licitações, estipulavam-se os valores totais a serem coletados. Tudo o que ultrapassasse esse valor ficava como lucro para os contratantes. Só que, em 59 a.C, essa indústria estava no limiar do colapso. Não havia tido sucesso em suas coletas de impostos e, consequentemente, devia ao estado os valores prometidos. Ato contínuo, César perdoou praticamente 1/3 de suas dívidas para com o estado. Isso afetou severamente o orçamento do governo romano e possivelmente os próprios pagadores de impostos (que tiveram seus impostos elevados para compensar essa escassez de receitas). O fato de Cesar e seu comparsa Marco Licínio Crasso terem investido pesadamente neste setor do mercado certamente explica essa sua medida.
Em 33 d.C., meio século depois do colapso da república, o imperador Tibério enfrentou uma corrida aos bancos. Ele reagiu a isso com um grande pacote de socorro aos bancos por meio de empréstimos livres a juros zero na tentativa de estabilizar o mercado. Oitenta anos depois, o imperador Adriano unilateralmente perdoou 225 milhões de dinares em impostos atrasados, o que gerou um grande ressentimento entre as pessoas que já haviam dolorosamente se esforçado para pagar seus tributos por completo.
O sistema monetário
A integridade do sistema monetário romano permaneceu relativamente intacta até o reinado do Imperador Nero(54-68 d.C.). Nero é mais conhecido por ter assassinado a própria mãe, por preferir as artes à administração civil, e por perseguir os cristãos. Mas ele também foi o primeiro a depreciar o padrão monetário que havia sido estabelecido por Augusto (27 a.C. – 14 d.C.), o primeiro imperador de Roma.
Já em 64 d.C., Nero exauriu os cofres romanos por causa do Grande Incêndio de Roma e também por causa de sua predileção pela gastança depravada (a qual construiu um espalhafatoso palácio).
Nero recorreu à inflação monetária para financiar o império, inicialmente reduzindo o teor de prata do denário, de 98% para 93%, o que permitiu que mais moedas fossem fabricadas com um mesmo volume de prata. Essa foi a primeira depreciação dessa magnitude em mais de 250 anos. Isso gerou uma relativamente alta inflação de preços e temporariamente abalou a confiança dos cidadãos romanos.
Após Nero, vários sucessivos imperadores continuamente reduziram o teor de prata do denário. A pior desvalorização ocorreu sob o imperador-filósofo Marco Aurélio (que reinou de 161 a 180 d.C.), que desvalorizou o denário para um teor de 79% de prata com o intuito de financiar suas constantes guerras e seus contínuos aumentos de gastos.
Esse era, até então, o mais impuro padrão monetário criado para o denário em toda a história romana. Mas as coisas ainda iriam piorar.
O filho de Marco Aurélio, Lucio Aurélio Cómodo (que reinou de 177 a 192 d.C.), que gostava de se apresentar como Gladiador no Coliseu, também foi, assim como o pai, um adepto da gastança desmesurada. Seguindo os mesmos passos dos seus antecessores, ele reduziu o teor de prata do denário para apenas 74%.
A cada desvalorização da moeda os preços eram pressionados para cima, e isso foi gradualmente diminuindo a confiança do povo no sistema monetário romano. O aviltamento da moeda e a subsequente expansão da oferta monetária forneciam, no curto prazo, um alívio para as finanças do estado, mas isso durava apenas até o momento em que os mercadores, os legionários e as forças de mercado se dessem conta do que havia acontecido.
Sob o Imperador Septímio Severo (que reinou de 193 a 211 d.C.), um número crescente de soldados começou a exigir que suas bonificações fossem pagas em ouro ou em mercadorias, para escapar da corrosão do poder de compra do denário. O filho de Severo, Caracala (que reinou de 198-217) — embora seja mais lembrado por seus sanguinolentos massacres, pelo assassinato do seu irmão, e por ter sido assassinado enquanto urinava —, aprofundou a política de desvalorização da moeda até reduzir o teor de prata do denário para 50%. Tudo isso para financiar a máquina de guerra romana e suas construções megalomaníacas.
Outros imperadores, como Pertinax e Macrino, tentaram retornar Roma a um sistema monetário mais sólido aumentando o teor de prata do denário e fazendo algumas reformas no sistema. Porém, sempre que um imperador fortalecia o denário, um rival conseguia conquistar a lealdade do exército, destruindo todo o progresso feito e frequentemente assumindo o trono.
Com o tempo, o denário de prata foi abandonado, e o mais jovem imperador de Roma, Gordiano III (238 – 244 d.C.), substituiu o denário pelo seu concorrente, o antoniniano.
No entanto, já no reinado do Imperador Cláudio II (que reinou de 268 a 270 d.C.), que é lembrado por suas proezas militares e por ter quebrado os dentes de um cavalo com um murro, o antoniniano foi reduzido a uma levíssima moeda que continha apenas 2% de prata. O antoniniano acabou sendo substituído pelo aurelianiano, e este acabou sendo substituído pelo nummo. Já em 341 d.C., o Imperador Constante I (que reinou de 337 a 350 d.C.) diminuiu o nummo para apenas 0,4% de prata.
O sistema monetário romano já estava em frangalhos e a inflação de preços já havia saído completamente do controle há muitas gerações.
Nesse ínterim, os gastos continuavam aumentando
No início do segundo século d.C., o imperador Trajano conquistou a Dácia (atual Romênia), lotando os cofres do estado romano com os esbulhos. Ao ver essa bonança, não tardou o lançamento de um novo programa social, oalimenta, o qual competia com instituições bancárias privadas ao oferecer empréstimos a juros baixos para proprietários de terras e utilizava os juros para beneficiar crianças desprivilegiadas. Os sucessores de Trajano deram continuidade a esse programa até que a supracitada desvalorização do denário colaborasse para a extinção do alimenta.
Em 301 d.C., enquanto o imperador Diocleciano estava reestruturando o governo, o exército e a economia, ele baixou o famoso Édito Máximo, que impunha um congelamento de preços. Ele estipulou um teto de preços para carnes, cereais, ovos, roupas e outros bens, e instituiu a pena de morte para qualquer um que vendesse seus artigos a um preço maior do que o estabelecido.
Roma havia se tornado um estado totalitário que colocava a culpa dos problemas econômicos sob as costas de supostos aproveitadores egoístas.
O resultado, como não poderia deixar de ser, foi que as pessoas simplesmente pararam de colocar seus bens à venda no mercado, dado que elas não mais poderiam obter um preço sensato por eles. Comerciantes estocaram seus bens, recusando-se a vendê-los pelo preço imposto pelo governo. Outros estocaram simplesmente para não correr o risco de serem erroneamente acusados de estarem vendendo a preços acima do determinado, ficando assim sujeitos a execuções. Os trabalhadores reagiram ao congelamento de salários desaparecendo do expediente ou simplesmente ficando sentados, sem fazer nada.
Isso aumentou acentuadamente a escassez.
Após a morte de várias pessoas, os romanos simplesmente passaram a ignorar esse decreto, até que a lei foi finalmente revogada.
Colossais programas assistencialistas também se tornaram a norma na Roma antiga. No seu auge, a maior despesa do estado era com um exército de 300.000 a 600.000 legionários. Os soldados perceberam seu papel e importância dentro da política romana, e consequentemente suas exigências aumentaram. Eles passaram a exigir programas de aposentadoria exorbitantes na forma de hectares de terras cultiváveis e de grandes bonificações em ouro equivalentes ao somatório de mais de uma década de seu salário. Eles também exigiam bonificações consideráveis e periódicas apenas para controlar as revoltas.
Ao final, em um período de aproximadamente 370 anos, o denário e todos os seus sucessores, para financiar toda essa depravação, foram continuamente desvalorizados. Uma moeda que começou com um teor de prata de 98% terminou com um teor de prata menor que 1%.
Os maciços programas de gastos do governo, todos eles feitos com o intuito de “ajudar” os romanos, acabaram por impor um terrível fardo sobre seus cidadãos.
Conclusão
A experiência romana nos ensina lições importantes. Como comenta Howard Kershner, um economista do século XX:
Quando um povo até então independente confere ao seu governo o poder de tirar de uns e dar a outros, o processo não cessará até a última gota de sangue do último pagador de impostos ser sugada.
Colocar a sua vida nas mãos de políticos corruptos compromete não somente sua independência pessoal, mas também a integridade financeira da sociedade. Uma vez iniciado, é difícil impedir o crescimento do estado. E, normalmente, as coisas não acabam bem.
Completamente debilitada, Roma, o outrora poderoso, temível e invencível Império, quedou-se perante seus invasores bárbaros em 476 d.C.
Mas o fato é que até hoje não sabemos quem eram os verdadeiros bárbaros: os invasores ou o povo romano que apoiava o estado e os políticos que debilitaram a economia ao ponto de o Império Romano cair como uma manga madura
Talvez os reais bárbaros eram os próprios romanos que haviam efetivamente cometido um suicídio econômico em câmera lenta.